Capítulo 9 No limite da solitude.

Evangeline despertou com uma dor de cabeça estrondosa, como se todas as preocupações e acontecimentos dos últimos dias tivessem se materializado naquilo. Os ecos do que acontecera, ou melhor, do que ela não conseguia entender, ecoavam pela sua mente, mas nada parecia fazer sentido. Nos dias que se seguiram, tudo continuava quieto, quase como se a tragédia tivesse sido engolida pela quietude da casa. Como se a velha senhora, Alaric, nenhum deles houvesse existido. Tudo parecia se ter desfeito no ar, dissipado.

Estava tão silencioso que, finalmente, podia ouvir os pássaros cantando novamente. A casa estava limpa, em paz... ou, melhor dizendo, em aparente paz. Porém, dentro de si, Evangeline sentia que algo ainda não estava certo. Uma estranha sensação a atraía, algo em sua alma, como uma lembrança vaga, um impulso instintivo. Ela sabia que algo a estava chamando do outro lado do muro do jardim, mas não sabia o quê. Não compreendia ainda o que ela buscava, nem o que sentia. Por mais que tentasse convencer-se de que estava tudo acabado, nada se resolvia em seu peito.

Mariah entrou no quarto mais cedo naquele dia.

- Senhorita Evangeline, o senhor Montclair pediu para vê-la - disse, com um tom de voz amável, mas formal, uma postura de dama de companhia ainda distante, quase mecânica.

Evangeline levantou-se lentamente da cama, ainda um pouco atordoada, sem saber bem o que fazer com a urgência do pedido.

- Hmm... já se passou tanto tempo, Mariah. Não sei se vale a pena - disse com um sorriso amargo, tentando encarar a situação de outra forma. - não precisa falar com tanta formalidade , já temos nossas rotinas, não é?

Mariah, que estava muito acostumada ao comportamento protocolar, arqueou uma sobrancelha com o comentário de Evangeline. Ela ficou parada por um momento antes de tentar suavizar o clima voltando o assunto para seu pai .

- Talvez o senhor Montclair precise de uma palavra amiga, Senhorita. Nada mais do que isso.

O que mais Evangeline poderia dizer a respeito do pai? Ele, que se esforçara por tantos anos para moldá-la à sua própria imagem e que, apesar de tudo, nunca foi capaz de ser realmente o que ela precisou como figura paterna. No entanto, mesmo com toda a ambiguidade desse laço, algo a movia, algo incompleto dentro dela que se recusava a deixá-lo partir.

Evangeline observou o pequeno espelho de sua escrivaninha por um longo tempo. A luz suave da manhã refletia nela mesma, mas algo havia mudado em seu olhar. Talvez fosse o peso da responsabilidade, a lembrança das conversas não ditas.

Depois de uma longa pausa, Evangeline falou baixinho para Mariah: - Acho que devo ir até ele, mesmo que eu não saiba por que me importo tanto.

Mariah fez um gesto para ela sair, dizendo suavemente, mas com firmeza: - Vou acompanhá-la, Senhora.

Mas Evangeline, com um sorriso que tinha algo de tristeza, a deteve. - Não, Mariah. Deixe-me fazer isso sozinha. Eu mesma lido com meus fantasmas.

Foi no momento em que ela se aproximou da porta dos aposentos do pai que um calafrio percorreu sua espinha. O cheiro abafado da madeira envelhecida, o som de um silêncio denso que parecia invadir tudo, foi tudo o que a envolveu enquanto ela observava a maçaneta. Sentiu uma tensão que a fez parar, indecisa, e seus dedos estavam à distância do metal como se o contato com ele fosse um símbolo de uma decisão que ela ainda não tinha capacidade para tomar.

"Por que me importo tanto?" Pensou. Ele, que jamais a tratara como uma filha verdadeira. Ele, que parecia tê-la criado não por amor, mas por mera conveniência e orgulho.

O coração de Evangeline se apertava e, sem perceber, ela afastou sua mão da porta, como que se retirando de um espaço perigoso, talvez sentindo que estava com medo demais de abrir essa porta e cair em mais uma armadilha emocional. Mas ao se virar, a porta do quarto ainda a atraía como uma presença que se negava a desaparecer. A indecisão ficava mais forte enquanto ela se afastava lentamente, sem saber o quanto a sua própria ausência talvez significasse mais do que sua presença.

Mais uma vez, ela desceu pelas escadas. Ela tentou se concentrar nos detalhes do dia - nas folhas que caíam no jardim, nos risos distantes das criadas, no brilho do sol entrando pelas janelas do corredor.

Nos dias que seguiram, Evangeline se dirigia ao riacho perto da propriedade. Mas nem o som constante da água fluindo sobre as pedras parecia capaz de afastar a neblina que se formava dentro de sua mente. Cada dia parecia igual ao anterior, sem mudanças ou respostas. Uma sequência sem fim, como uma espera constante. Nenhuma notícia, nenhuma revelação, nenhuma explicação, mas ela sentia a ausência mais forte a cada passo.

- É estranho sentir falta dos dias agitados? - perguntou, baixinho, a si mesma em um momento de silenciosa reflexão, enquanto caminhava sozinha mais uma vez ao longo do riacho. A sensação de algo incompleto a rondava, mas o que, ela ainda não sabia.

Então, com um sorriso no rosto, quase como uma tentativa de aliviar sua mente cansada, ela lembrou-se de um pequeno truque que Mariah sempre tentava. Algo simples, mas eficaz. Como uma piada para quebrar a tensão.

- E se , o Alaric , a senhora velha e seu pai fossem presos em um lugar distante ? - Ela se viu rindo um pouco consigo mesma, sabendo que, apesar de todos os horrores, a vida havia seguido em frente, ao menos por enquanto.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022