Capítulo 2 O Homem Misterioso

SAGE

O supermercado em Roseland cheira a fruta demasiado madura e a detergente barato. As luzes fluorescentes piscam de vez em quando, como se até elas estivessem cansadas deste bairro. Roseland é assim: prédios gastos, ruas onde o lixo se acumula nos cantos, carros com vidros partidos e gente que aprendeu a sobreviver com pouco. Mas é a minha casa, mesmo que às vezes me pergunte se algum dia vou conseguir sair daqui.

Hugo caminha ao meu lado, empurrando o carrinho com uma mão e segurando o telemóvel na outra. Ele é o meu melhor amigo e vizinho, sempre pronto a ajudar, mesmo quando não peço.

- E a tua avó, Sage? - pergunta ele, baixando a voz enquanto passamos pela secção dos enlatados.

Suspiro, sentindo o peso do mundo nos ombros.

- Está igual, Hugo. O Parkinson não dá tréguas. - Pego numa lata de sopa e olho para o preço. - Os medicamentos são caríssimos. Já não sei como vamos aguentar mais um mês assim.

Hugo encosta-se ao carrinho.

- Já procuraste trabalho?

- Já. Entreguei currículos em todo o lado, mas ninguém me chama. - A frustração cresce dentro de mim. - Preciso mesmo de um emprego, Hugo. Urgente.

Ele hesita, mordendo o lábio.

- Olha, eu conheço um sítio... Não sei se vais gostar. O ginásio Ringue Clandestino. O Mikhail, o dono, às vezes patrocina pessoas. Se calhar podias tentar.

Fico a olhar para ele, desconfiada.

- Esse ginásio não é de lutas clandestinas? Não sei, Hugo... Não quero meter-me em sarilhos.

Ele sorri, encorajador.

- Tu tens talento para o boxe, Sage. Não devias desperdiçar isso. Só pensa no assunto, sim?

- Vou pensar... - respondo, mas a dúvida fica a martelar-me por dentro.

Pagamos as compras e caminhamos juntos até casa, cada um perdido nos seus pensamentos. Quando entro, o cheiro a chá de camomila e pão torrado envolve-me. Ouço a avó Mila na cozinha, a cantarolar baixinho. Sorrio, mas o sorriso desaparece quando um estrondo ecoa pela casa.

- Avó?! - corro para a cozinha.

Encontro-a parada, trémula, com um jarro de água partido aos pés. Os olhos dela enchem-se de lágrimas.

- Desculpa, querida... - murmura, a voz a tremer.

Aproximo-me, ajoelho-me para apanhar os vidros.

- Já tomaste a tua medicação hoje?

Ela abana a cabeça, envergonhada.

- Acabou ontem à noite... Não quis preocupar-te.

- Avó, não podes ficar sem os comprimidos. - Limpo tudo rapidamente e ajudo-a a sentar-se. - Fica na sala, está bem? Eu vou à farmácia buscar mais.

Ela tenta protestar, mas não lhe dou hipótese. Pego no casaco, enfio o capuz e saio para a rua. Chove tanto que parece que o céu vai desabar. Roseland, à noite, fica ainda mais escuro e ameaçador. Apresso-me pelos dois quarteirões até à farmácia, desviando-me das poças e dos olhares desconfiados de quem passa.

Dentro da farmácia, há uma fila longa. Ponho os fones e deixo a música embalar-me, tentando esquecer o mundo à minha volta. Quando finalmente chega a minha vez, tiro os fones, dou um passo em frente e sorrio à atendente.

- Boa noite. Preciso destes medicamentos para a minha avó. - Mostro-lhe a receita.

A atendente é uma mulher de meia-idade, cabelo loiro apanhado num rabo-de-cavalo, óculos grossos e um ar cansado. Ela pega na receita, consulta o computador e desaparece para o armazém. Volta com duas caixas na mão.

- São oitenta e cinco dólares, querida.

Abro a carteira e começo a contar as notas e moedas. Faltam vinte dólares. O coração aperta-se-me no peito.

- Qual deles é mais importante? - pergunto, a voz embargada. - Se eu levar só um, a evolução do Parkinson da minha avó vai piorar muito?

A atendente hesita, olhando-me com pena.

- Ambos são essenciais... Mas a levodopa é a que mais ajuda nos sintomas motores.

Antes que consiga decidir, ouço uma voz rouca atrás de mim.

- Desculpe interromper.

Viro-me e vejo um homem imponente, uns vinte anos mais velho que eu. É musculado, quase como uma rocha, mesmo com o casaco de inverno dá para perceber a força nos braços. O cabelo e a barba são pretos, mas já com alguns fios grisalhos, e os olhos cinzentos parecem analisar tudo à volta com uma calma estranha.

- Quanto falta? - pergunta ele à atendente.

- Vinte dólares - responde ela, surpresa.

Ele tira uma nota do bolso e coloca-a no balcão.

- Aqui tem.

- Não é preciso, a sério... - começo eu, mas ele abana a cabeça, decidido.

- Não custa nada ajudar. Espero que a sua avó melhore.

Fico sem palavras. Apenas consigo murmurar:

- Obrigada. A sério.

Saio da farmácia com os medicamentos na mão, esquecendo-me de perguntar o nome daquele homem misterioso. A chuva continua, mas, por um instante, sinto que o mundo ficou um pouco menos pesado.

            
            

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