/0/14526/coverbig.jpg?v=20250425075954)
SAGE
O supermercado em Roseland cheira a fruta demasiado madura e a detergente barato. As luzes fluorescentes piscam de vez em quando, como se até elas estivessem cansadas deste bairro. Roseland é assim: prédios gastos, ruas onde o lixo se acumula nos cantos, carros com vidros partidos e gente que aprendeu a sobreviver com pouco. Mas é a minha casa, mesmo que às vezes me pergunte se algum dia vou conseguir sair daqui.
Hugo caminha ao meu lado, empurrando o carrinho com uma mão e segurando o telemóvel na outra. Ele é o meu melhor amigo e vizinho, sempre pronto a ajudar, mesmo quando não peço.
- E a tua avó, Sage? - pergunta ele, baixando a voz enquanto passamos pela secção dos enlatados.
Suspiro, sentindo o peso do mundo nos ombros.
- Está igual, Hugo. O Parkinson não dá tréguas. - Pego numa lata de sopa e olho para o preço. - Os medicamentos são caríssimos. Já não sei como vamos aguentar mais um mês assim.
Hugo encosta-se ao carrinho.
- Já procuraste trabalho?
- Já. Entreguei currículos em todo o lado, mas ninguém me chama. - A frustração cresce dentro de mim. - Preciso mesmo de um emprego, Hugo. Urgente.
Ele hesita, mordendo o lábio.
- Olha, eu conheço um sítio... Não sei se vais gostar. O ginásio Ringue Clandestino. O Mikhail, o dono, às vezes patrocina pessoas. Se calhar podias tentar.
Fico a olhar para ele, desconfiada.
- Esse ginásio não é de lutas clandestinas? Não sei, Hugo... Não quero meter-me em sarilhos.
Ele sorri, encorajador.
- Tu tens talento para o boxe, Sage. Não devias desperdiçar isso. Só pensa no assunto, sim?
- Vou pensar... - respondo, mas a dúvida fica a martelar-me por dentro.
Pagamos as compras e caminhamos juntos até casa, cada um perdido nos seus pensamentos. Quando entro, o cheiro a chá de camomila e pão torrado envolve-me. Ouço a avó Mila na cozinha, a cantarolar baixinho. Sorrio, mas o sorriso desaparece quando um estrondo ecoa pela casa.
- Avó?! - corro para a cozinha.
Encontro-a parada, trémula, com um jarro de água partido aos pés. Os olhos dela enchem-se de lágrimas.
- Desculpa, querida... - murmura, a voz a tremer.
Aproximo-me, ajoelho-me para apanhar os vidros.
- Já tomaste a tua medicação hoje?
Ela abana a cabeça, envergonhada.
- Acabou ontem à noite... Não quis preocupar-te.
- Avó, não podes ficar sem os comprimidos. - Limpo tudo rapidamente e ajudo-a a sentar-se. - Fica na sala, está bem? Eu vou à farmácia buscar mais.
Ela tenta protestar, mas não lhe dou hipótese. Pego no casaco, enfio o capuz e saio para a rua. Chove tanto que parece que o céu vai desabar. Roseland, à noite, fica ainda mais escuro e ameaçador. Apresso-me pelos dois quarteirões até à farmácia, desviando-me das poças e dos olhares desconfiados de quem passa.
Dentro da farmácia, há uma fila longa. Ponho os fones e deixo a música embalar-me, tentando esquecer o mundo à minha volta. Quando finalmente chega a minha vez, tiro os fones, dou um passo em frente e sorrio à atendente.
- Boa noite. Preciso destes medicamentos para a minha avó. - Mostro-lhe a receita.
A atendente é uma mulher de meia-idade, cabelo loiro apanhado num rabo-de-cavalo, óculos grossos e um ar cansado. Ela pega na receita, consulta o computador e desaparece para o armazém. Volta com duas caixas na mão.
- São oitenta e cinco dólares, querida.
Abro a carteira e começo a contar as notas e moedas. Faltam vinte dólares. O coração aperta-se-me no peito.
- Qual deles é mais importante? - pergunto, a voz embargada. - Se eu levar só um, a evolução do Parkinson da minha avó vai piorar muito?
A atendente hesita, olhando-me com pena.
- Ambos são essenciais... Mas a levodopa é a que mais ajuda nos sintomas motores.
Antes que consiga decidir, ouço uma voz rouca atrás de mim.
- Desculpe interromper.
Viro-me e vejo um homem imponente, uns vinte anos mais velho que eu. É musculado, quase como uma rocha, mesmo com o casaco de inverno dá para perceber a força nos braços. O cabelo e a barba são pretos, mas já com alguns fios grisalhos, e os olhos cinzentos parecem analisar tudo à volta com uma calma estranha.
- Quanto falta? - pergunta ele à atendente.
- Vinte dólares - responde ela, surpresa.
Ele tira uma nota do bolso e coloca-a no balcão.
- Aqui tem.
- Não é preciso, a sério... - começo eu, mas ele abana a cabeça, decidido.
- Não custa nada ajudar. Espero que a sua avó melhore.
Fico sem palavras. Apenas consigo murmurar:
- Obrigada. A sério.
Saio da farmácia com os medicamentos na mão, esquecendo-me de perguntar o nome daquele homem misterioso. A chuva continua, mas, por um instante, sinto que o mundo ficou um pouco menos pesado.