Capítulo 3 Favor Devolvido

THUNDER

O despertador toca e sinto logo o peso do dia a cair-me em cima. Olho para o lado e vejo o Leo, enroscado nas mantas, a dormir profundamente. Suspiro. Mais um dia de correria. Levanto-me, visto-me à pressa e começo a preparar o pequeno-almoço. O cheiro do café quente é o único conforto que tenho antes do caos começar.

- Leo, anda lá, acorda, campeão. Temos de nos despachar.

Ele resmunga, enterra a cara na almofada.

- Não quero ir à escola, pai...

- Eu também não queria ir trabalhar, mas alguém tem de pagar as contas, não é? Anda, veste-te.

Enquanto ele arrasta os pés até à casa de banho, preparo-lhe umas torradas. Ele senta-se à mesa, mas come devagar, como se mastigar fosse o maior sacrifício do mundo.

- Leo, anda lá, temos de sair daqui a cinco minutos. - Tento não perder a paciência, mas já sinto o stress a subir.

Finalmente, depois de muita insistência, conseguimos sair de casa. O frio de Chicago em novembro não perdoa, e o bairro de Roseland parece ainda mais cinzento e duro nestas manhãs. Apanhamos o metro - outra vez cheio, abafado, com gente a empurrar e a tossir. Odeio isto. Sinto falta da minha moto, da liberdade, mas agora não há volta a dar.

Corro com o Leo pela rua até à escola. Quando chegamos à portaria, o porteiro olha-me com ar cansado.

- Hoje há greve, pai do Leo. Não há aulas.

Fico a olhar para ele, incrédulo.

- Está a brincar comigo?

- Gostava, mas não. Só amanhã.

Puxo o telemóvel e ligo à Thelma.

- O que foi, Thunder?

- A escola está fechada, há greve. Preciso que fiques com o Leo.

- Não posso, estou a trabalhar. - O tom dela é seco, impessoal.

- Eu também preciso de ir trabalhar, Thelma. Não posso faltar.

- Não posso fazer nada, Thunder. Desenrasca-te.

Olho para o relógio desportivo. Já devia estar no ginásio há dez minutos. Desligo sem paciência.

- Anda, Leo. Vais comigo para o trabalho hoje. Mas tens de te portar bem, ouviste?

- Para onde vamos?

- Para o ginásio onde o pai trabalha. Vais ver, mas tens de ficar sossegado.

Chegamos ao Ringue Clandestino. Entro a correr, Leo pela mão, e sinto logo os olhares. Mikhail está ao fundo, de braços cruzados, a olhar para o relógio.

- Já viste as horas, Thunder? E agora trazes uma criança? Que merda é esta?

- Mikhail, desculpa, a escola está fechada, não tinha onde o deixar. Prometo que ele não vai incomodar.

Mikhail revira os olhos.

- Isto não é nenhuma creche, Thunder.

- Por favor, Mikhail. Só hoje. Amanhã já não se repete.

Antes que ele responda, a porta do ginásio abre-se e entra a jovem que vi ontem na farmácia. Reconheço-a logo: cabelo preto com madeixas azuis, corpo atlético mas com curvas, olhos castanhos vivos e pele bronzeada. Tem uma energia diferente, como se não se deixasse esmagar por nada.

Mikhail vira-se para ela.

- E tu, quem és?

- Chamo-me Sage Davis. Já treinei boxe e gostava de saber se tem alguma vaga para ser patrocinada. Preciso mesmo de uma oportunidade.

Mikhail abana a cabeça.

- Não há vagas. O ginásio está cheio.

Ela baixa os olhos, desiludida.

- Que pena... precisava mesmo de um emprego.

Lembro-me dela ontem, da pressa, do desespero. Olho para Mikhail.

- Não há mesmo nada? Nem para limpezas, receção, o que for?

Mikhail pensa um instante.

- Só para limpezas, a meio tempo. O salário é baixo.

Sage ergue o olhar, cheia de esperança.

- Qualquer dinheiro é bem-vindo. Aceito.

- Quatro da manhã. Quero o ginásio limpo antes de abrir. Percebido?

Ela arregala os olhos, mas sorri.

- Percebido. Obrigada.

Mikhail volta-se para mim.

- Agora trata do teu filho, Thunder. Isto não se repete.

Ele desaparece para o escritório. Passo a mão pelo rosto, cansado e frustrado. Sage aproxima-se.

- Se quiser, posso ficar com o Leo enquanto trabalha. Não me importo.

Fico surpreendido.

- A sério? Não quero incomodar...

- Não incomoda nada. Devo-lhe isso, pelo que fez ontem por mim na farmácia.

Olho para o Leo.

- Eu saio às seis. Se não se importar de ficar com ele até lá...

- Não há problema. Estarei aqui.

Ajoelho-me ao lado do Leo.

- Filho, esta é a Sage. Ela vai ficar contigo hoje, está bem? Porta-te bem.

Sage sorri e estende a mão ao Leo.

- Olá, como te chamas?

- Leonard. Mas toda a gente me chama Leo.

- Então, Leo, queres ir até à biblioteca? Posso ler-te umas histórias enquanto o teu pai trabalha.

Os olhos dele brilham.

- Quero!

Eles despedem-se de mim. Sinto um alívio enorme.

- Obrigado, Sage. A sério.

Ela sorri.

- Não tem de quê. Considere isto um favor devolvido.

Vejo-os afastarem-se e, por um momento, sinto que, apesar de tudo, talvez o dia não esteja totalmente perdido.

            
            

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