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THUNDER
O despertador toca e sinto logo o peso do dia a cair-me em cima. Olho para o lado e vejo o Leo, enroscado nas mantas, a dormir profundamente. Suspiro. Mais um dia de correria. Levanto-me, visto-me à pressa e começo a preparar o pequeno-almoço. O cheiro do café quente é o único conforto que tenho antes do caos começar.
- Leo, anda lá, acorda, campeão. Temos de nos despachar.
Ele resmunga, enterra a cara na almofada.
- Não quero ir à escola, pai...
- Eu também não queria ir trabalhar, mas alguém tem de pagar as contas, não é? Anda, veste-te.
Enquanto ele arrasta os pés até à casa de banho, preparo-lhe umas torradas. Ele senta-se à mesa, mas come devagar, como se mastigar fosse o maior sacrifício do mundo.
- Leo, anda lá, temos de sair daqui a cinco minutos. - Tento não perder a paciência, mas já sinto o stress a subir.
Finalmente, depois de muita insistência, conseguimos sair de casa. O frio de Chicago em novembro não perdoa, e o bairro de Roseland parece ainda mais cinzento e duro nestas manhãs. Apanhamos o metro - outra vez cheio, abafado, com gente a empurrar e a tossir. Odeio isto. Sinto falta da minha moto, da liberdade, mas agora não há volta a dar.
Corro com o Leo pela rua até à escola. Quando chegamos à portaria, o porteiro olha-me com ar cansado.
- Hoje há greve, pai do Leo. Não há aulas.
Fico a olhar para ele, incrédulo.
- Está a brincar comigo?
- Gostava, mas não. Só amanhã.
Puxo o telemóvel e ligo à Thelma.
- O que foi, Thunder?
- A escola está fechada, há greve. Preciso que fiques com o Leo.
- Não posso, estou a trabalhar. - O tom dela é seco, impessoal.
- Eu também preciso de ir trabalhar, Thelma. Não posso faltar.
- Não posso fazer nada, Thunder. Desenrasca-te.
Olho para o relógio desportivo. Já devia estar no ginásio há dez minutos. Desligo sem paciência.
- Anda, Leo. Vais comigo para o trabalho hoje. Mas tens de te portar bem, ouviste?
- Para onde vamos?
- Para o ginásio onde o pai trabalha. Vais ver, mas tens de ficar sossegado.
Chegamos ao Ringue Clandestino. Entro a correr, Leo pela mão, e sinto logo os olhares. Mikhail está ao fundo, de braços cruzados, a olhar para o relógio.
- Já viste as horas, Thunder? E agora trazes uma criança? Que merda é esta?
- Mikhail, desculpa, a escola está fechada, não tinha onde o deixar. Prometo que ele não vai incomodar.
Mikhail revira os olhos.
- Isto não é nenhuma creche, Thunder.
- Por favor, Mikhail. Só hoje. Amanhã já não se repete.
Antes que ele responda, a porta do ginásio abre-se e entra a jovem que vi ontem na farmácia. Reconheço-a logo: cabelo preto com madeixas azuis, corpo atlético mas com curvas, olhos castanhos vivos e pele bronzeada. Tem uma energia diferente, como se não se deixasse esmagar por nada.
Mikhail vira-se para ela.
- E tu, quem és?
- Chamo-me Sage Davis. Já treinei boxe e gostava de saber se tem alguma vaga para ser patrocinada. Preciso mesmo de uma oportunidade.
Mikhail abana a cabeça.
- Não há vagas. O ginásio está cheio.
Ela baixa os olhos, desiludida.
- Que pena... precisava mesmo de um emprego.
Lembro-me dela ontem, da pressa, do desespero. Olho para Mikhail.
- Não há mesmo nada? Nem para limpezas, receção, o que for?
Mikhail pensa um instante.
- Só para limpezas, a meio tempo. O salário é baixo.
Sage ergue o olhar, cheia de esperança.
- Qualquer dinheiro é bem-vindo. Aceito.
- Quatro da manhã. Quero o ginásio limpo antes de abrir. Percebido?
Ela arregala os olhos, mas sorri.
- Percebido. Obrigada.
Mikhail volta-se para mim.
- Agora trata do teu filho, Thunder. Isto não se repete.
Ele desaparece para o escritório. Passo a mão pelo rosto, cansado e frustrado. Sage aproxima-se.
- Se quiser, posso ficar com o Leo enquanto trabalha. Não me importo.
Fico surpreendido.
- A sério? Não quero incomodar...
- Não incomoda nada. Devo-lhe isso, pelo que fez ontem por mim na farmácia.
Olho para o Leo.
- Eu saio às seis. Se não se importar de ficar com ele até lá...
- Não há problema. Estarei aqui.
Ajoelho-me ao lado do Leo.
- Filho, esta é a Sage. Ela vai ficar contigo hoje, está bem? Porta-te bem.
Sage sorri e estende a mão ao Leo.
- Olá, como te chamas?
- Leonard. Mas toda a gente me chama Leo.
- Então, Leo, queres ir até à biblioteca? Posso ler-te umas histórias enquanto o teu pai trabalha.
Os olhos dele brilham.
- Quero!
Eles despedem-se de mim. Sinto um alívio enorme.
- Obrigado, Sage. A sério.
Ela sorri.
- Não tem de quê. Considere isto um favor devolvido.
Vejo-os afastarem-se e, por um momento, sinto que, apesar de tudo, talvez o dia não esteja totalmente perdido.