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Fotos do passado. Lembranças que sangram.
Observo as imagens, e é como uma viagem ao passado. Sou bombardeada por memórias, lembranças que resistiram aos anos e aos esforços conscientes para esquecê-las.
Tyler esteve presente em praticamente todos os momentos importantes da minha vida até os dezessete. Meus aniversários, minhas vitórias na escola, as férias que passei sem meus pais, ele estava lá. E agora as fotos estão ali. Espalhadas como um altar. Um museu da nossa infância.
Meus dedos tocam levemente a borda de uma moldura. É uma imagem da gente aos catorze, sentados na beira de um lago, sorrindo como se o mundo fosse um lugar seguro.
Nada é mais irônico do que ver aquela inocência emoldurada.
Uma retrospectiva pisca no fundo da minha mente.
O enterro da mãe de Tyler, minha mãe com os braços ao redor dele, seu rosto o retrato vivo da tristeza, os olhos fixos em mim, mesmo naquele momento, como se soubesse que eu seria seu porto seguro, já sabendo o quanto ele era importante para mim.
Atrás de mim, ouço passos suaves.
- Aqui está. - Diz, estendendo um copo. A bebida escura treme levemente no cristal.
Pego o copo, mesmo que não vá realmente beber, não abro mão do controle, nunca, mas o cheiro é reconfortante.
- Não imaginava que fosse o tipo de cara que guarda fotos antigas. Ainda mais essas.
- Guardei tudo. - Ele fala baixo, como se confessasse um crime.
- Por quê?
- Porque era tudo o que me restava de você. E lembrar sempre me deixa feliz.
Me viro devagar. Ele continua parado, agora a alguns passos de distância, vestindo uma camiseta escura e uma calça de moletom que parece mais íntima do que qualquer nudez.
- Não somos mais essas pessoas.
- Mas essas pessoas, em cada um desses momentos, são importantes, e amo saber que um dia já tivemos isso, um ao outro. Nosso passado fez de nós quem somos hoje e não há como mudar quem somos. - Sussurra.
- Isso não é normal Abbott, tenho certeza de que a equipe tem um profissional para recomendar. - Ele me encara assustado, como se eu fosse a louca.
- O que há de estranho em gostar de lembrar do passado? Em querer ter um pouquinho da mulher por quem sempre fui apaixonado? Acha que algum profissional vai me fazer esquecer de tudo que vivi, de tudo que já amei? De quem amei?
- Tudo isso - aponto para as fotos - é uma completa loucura, Abbott.
- Tyler, Ty. - Levanto as sobrancelhas. - Para de me chamar pelo sobrenome, não sou um estranho, essa distância, que está desesperada para criar, não existe.
- Sim, existe. Isso é nosso passado, hoje somos estranhos e não vou fingir o oposto. - Dou um passo para trás ao perceber o quanto estamos próximos. Você lembra da última coisa que me disse?
Ele não hesita.
- Está tudo acabado entre nós.
- E lembra da minha resposta?
Ele fica em silêncio por alguns segundos.
- Você não respondeu. Só sumiu.
- Porque eu não conseguia respirar, Tyler. Porque tudo doía. Porque o que você achava que sabia foi mais importante do que saber a verdade.
Ele dá um passo à frente. Eu ergo o copo. Uma barreira líquida entre nós.
- Eu sinto muito.
- Não. - minha voz é baixa, afiada. - Você não sente nem metade do que deveria.
Ele não responde. Só respira, como se cada palavra minha pesasse toneladas.
- Meus pais perguntaram de você por anos. Eles te amavam. Você desapareceu da vida deles também.
- Eu não conseguia lidar. Com nada.
- Você não quis lidar. - solto, e dessa vez, não seguro a raiva. - Era mais fácil acreditar que eu tinha te traído. Que era a vilã da sua história. Do que aceitar que o seu melhor amigo tinha me machucado. Do que pensar que eu estava implodindo enquanto você me apagava.
Ele fecha os olhos. Um segundo só. Quando abre, estão úmidos.
- Eu fui covarde.
- Você foi cruel.
O silêncio se estende entre nós. Não desconfortável. Só cheio. De tudo que nunca foi dito.
Observo Tyler. Os braços mais largos, os ombros mais retos, o maxilar mais marcado. O corpo mudou. Os olhos não. Ainda são aquele azul cortante que me olhava como se eu fosse tudo. E depois... nada.
- Então? - pergunto. - Agora que você sabe, vai fazer o quê? Pedir desculpas? Se redimir? Fingir que tudo pode voltar a ser como era antes?
Ele balança a cabeça.
- Eu não quero pedir nada. Só queria... ouvir você. Pela primeira vez.
- E agora que ouviu?
Ele engole seco.
- Agora eu carrego o que você carregou todos esses anos. E espero que um dia você me perdoe. Nem que seja em silêncio.
Coloco o copo cheio na mesa.
- Não espere nada de mim, Abbott.
Ele assente. E vai até o painel da porta. Digita a senha. O clique suave da tranca é quase gentil demais para a dor no ambiente.
Paro na soleira. Me viro por um instante.
- Queime as fotos. Ou esconda. Faça o que quiser. Mas não as mantenha aí como se fosse um altar. Isso aqui não é sagrado. É ruína.
E eu saio. Sem olhar pra trás.
.....
Assim que chego em casa, o celular vibra. Mensagem de Lincon:
Jantar com a equipe geral hoje às 19h. Você vem?
Obviamente o jantar não é exatamente obrigatório. Mas a presença, sim.
Por isso, mesmo irritada, horas mais tarde entro no restaurante como quem pisa em território neutro: não é meu, mas também não é deles. É um campo de observação. Um tabuleiro onde cada palavra é uma jogada e cada olhar tem um peso.
O lugar é elegante, funcional. Moderno, mas não íntimo. Paredes de vidro, luminárias pendentes, mesas retangulares em madeira escura. Pessoas importantes que fingem estar relaxadas, como se estivessem ali por acaso e não por contratos, egos e imagem.
Meus saltos fazem som sobre o piso polido. Cabeças se viram antes mesmo de eu me aproximar da mesa. Eles me veem. Claro que veem. Faz parte do jogo.
Terno preto, salto discreto. Cabelo preso. Nada é casual.
Lincon está no centro da mesa, rindo de algo que alguém disse. Quando me nota, o sorriso muda por meio segundo. Não some, mas se ajusta. Como se dissesse: Ela veio. E veio armada.
- Caitlin. - Ele se levanta como se não fosse tivesse me trancado na casa do meu ex.
Apenas inclino a cabeça. O necessário.
- Você está maravilhosa. - a frase parece real demais para um lugar onde tudo soa falso.
- E você está tentando ser perdoado. - respondo com um meio sorriso. - Boa tentativa.
A mesa silencia por um segundo. Alguns não sabem se devem rir. Outros fingem que não ouviram.
Um dos jogadores, um loiro com maxilar marcado e blazer mal ajustado, puxa uma cadeira. O nome me escapa. Não faz diferença.
- Sente-se aqui, gata. Tá entre os melhores.
- Prefiro sentar onde não precise ouvir apelidos genéricos vindos de homens que ainda confundem um jantar com uma balada. - Sorrio. Doce. Cortante.
James, que está do outro lado, ergue uma sobrancelha e aponta para o lugar vago ao seu lado.
- Aqui você pode sentar tranquila. Eu só chamo de gata quem tem pelo e ronrona. - O tom dele é seco, mas há humor real por trás.
Abro um pequeno sorriso ao aceitar, me sento ao lado dele.
- James, certo?
- Isso. E você é a mulher que fez o grupo de relações-públicas surtar, positivamente, antes que me acuse de algo. - Ele fala baixo, só pra mim.
- Eles não surtaram. Eles apenas entenderam que não vão me moldar.
- Melhor ainda. Eu gosto de gente que não aceita moldura.
A conversa segue em volta da mesa. Risos, taças, garçons discretos. Eu não bebo. Nunca bebo. O controle é meu e de mais ninguém.
Quando o garçom aparece ao meu lado, silencioso, com uma garrafa de água com gás importada, a que sempre peço quando viajo, sei que não foi aleatório.
O rótulo é específico. Discreto. Mas conhecido.
Não olho ao redor. Não pergunto quem mandou. Eu sei quem foi.
James nota meu silêncio.
- Tudo bem?
- Tudo. - pego o copo, sirvo a água e não digo mais nada.
Do outro lado da sala, Tyler está de pé, perto do bar. Conversando com alguém da equipe médica. Ele não olha pra mim nem por um segundo. Mas sei que me viu. Como sei que ele respira diferente quando está perto demais.
James também observa.
- Vocês têm muita história. - diz sem rodeios.
- Tínhamos.
- Entendi. - Ele não pressiona. Não finge. Não tenta consertar o silêncio.
Por um instante, é fácil estar ali. Como se meu corpo não estivesse em constante alerta. Como se eu não estivesse pronta para sair andando no segundo que sentir o chão ceder.
Lincon se aproxima. Puxa uma cadeira, mas não se senta.
- Posso falar com você um segundo? - Ele pergunta com a voz baixa. Pela primeira vez, não soa cheio de si.
Olho para James, depois volto o olhar para Lincon.
- Um minuto. - Digo.
Levanto. Ele me conduz para o lado do salão, onde o som dos talheres e vozes se tornam um pano de fundo seguro.
- Sei que passei dos limites.
Cruzo os braços.
- Você me colocou de frente com tudo que passei sete anos tentando enterrar. E ainda sorriu como se fosse só mais um briefing.
- Eu sinto muito. - E pela primeira vez, parece que ele sente mesmo. - Eu errei. E não vou justificar. Só queria que soubesse que, se eu pudesse voltar atrás, não faria aquilo.
Fico em silêncio por um momento.
- Você tem sorte de eu não estar armada.
Ele ri. Alívio e culpa misturados. Depois respira fundo.
- E agora?
- Agora você me dá espaço. E para de tentar me salvar. Eu não preciso disso.
- Tudo bem. Mas... - ele hesita - ainda quero estar aqui, quando você quiser alguém que esteja do seu lado. Sem tentar te consertar.
- Boa sorte esperando.
Volto à mesa com a cabeça erguida. Ninguém manda em mim. Nem os olhares, nem os contratos, nem as lembranças.
James me observa se aproximar. Está relaxado, mas alerta. Um tipo raro: homem que presta atenção sem querer possuir o que vê.
- Tudo certo? - pergunta quando me sento.
- Ainda em pé. - respondo, e é o suficiente.
Do outro lado da mesa, os outros jogadores estão presos em piadas internas, risadas ensaiadas. Um deles fala alto demais, talvez tentando compensar alguma insegurança que transborda no blazer caro. Reconheço o tipo. Já lidei com muitos.
James também nota.
- Não se preocupe, a testosterona é forte mas a inteligência não costuma durar mais que duas rodadas de bebida. - comenta, e arranca de mim um sorriso curto, involuntário.
- Você está sempre observando tudo com essa cara de quem já sabe como a história termina?
- Costumo acertar o final. Mas nunca as reações. Gente como você, por exemplo, é imprevisível. No bom sentido. - Ele apoia o cotovelo na mesa e inclina um pouco a cabeça. - Parece que está sempre decidindo se vale a pena gastar energia ou cortar pela raiz.
- Porque geralmente não vale. - respondo, pegando a garrafa de água e enchendo meu copo pela segunda vez. - E cortar pela raiz poupa tempo. E paciência.
- E coração?
- Esse já virou blindagem. - digo, e nossos olhares se cruzam por meio segundo. Ele não sorri. E não desvia. É raro. E desconfortável. Mas bom.
Uma mulher da equipe de imagem interrompe nosso momento. Seu cabelo está preso e o salto é fino demais para a postura natural. Ela está tentando parecer casual, mas é visível a tensão nos ombros.
- Caitlin, você teria um momento depois do jantar para discutirmos algumas entrevistas? As marcas querem entender seu papel nessa nova fase do time, e acho que podemos explorar seu impacto visual junto ao elenco...
- Querem que eu pareça uma assistente ou uma ameaça bem vestida? - pergunto direto, mas sem elevar a voz.
Ela engasga. James limpa a garganta, tentando disfarçar o riso.
- Só queremos mostrar o quanto você pode agregar ao time. A imagem da equipe está mais coesa com sua presença. Seu perfil está sendo comentado, positivamente, inclusive. Há um apelo...
- Entendo. - corto, sem grosseria, mas com precisão. - Podemos conversar amanhã. Agora estou fora do expediente.
Ela sorri, agradece e recua.
James encosta no encosto da cadeira, satisfeito.
- Foi... elegante. Mortal, mas elegante.
- Treinamento. - digo. - Anos tendo que parecer mais suave do que sou. Agora prefiro deixar claro quem sou logo de cara.
- Funciona. - ele comenta, e seu tom não tem nem sombra de segundas intenções. - Por isso os caras do time estão meio perdidos com você. Estão acostumados com mulheres que querem se encaixar. Você não quer.
- Eu não preciso. - completo.
O jantar avança com pratos sendo retirados, sobremesas chegando. Um garçom se aproxima com uma pequena caixa preta. Pousa com delicadeza ao meu lado. James ergue as sobrancelhas. Eu também.
- O que é isso?
- Um envio reservado. Foi deixado na recepção, com instruções para ser entregue apenas à senhorita Caitlin. - diz o garçom.
Abro com calma. Dentro, um pequeno chaveiro antigo, de couro surrado. Reconheço na hora. Era meu. Dado por mim ao Tyler, quando ele passou na primeira peneira do time de base, anos atrás.
Na parte de trás do chaveiro, uma fita dobrada. Ao abrir, apenas uma frase:
Eu guardei. Mesmo quando achei que tinha perdido tudo.
James percebe meu silêncio.
- Problema?
- Só o passado tentando me lembrar que ainda existe. - respondo. Fecho a caixinha, coloco de lado, como se não doesse. Como se não houvesse memória nenhuma presa ali, mas há e ela machuca.
James respeita meu silêncio. Não pergunta mais. Em vez disso, muda de assunto. Fala do treino da semana, de uma entrevista ruim que deu ano passado, de como odeia usar terno. E de como o mascote do time o persegue há três temporadas.
Eu rio. De verdade. Pela primeira vez desde que tudo recomeçou.
No canto da sala, Tyler ainda está lá. Sério. Imóvel. Como se o tempo entre nós não tivesse passado. Como se as memórias ainda o segurassem pelas bordas.
E não sou a única em pedaços. Eu só sou a que aprendeu a colar os cacos por fora.
........
A porta do apartamento se fecha com um clique abafado. O silêncio pela sala não é vazio, é denso. Carregado.
Jogo a bolsa sobre o balcão da cozinha e me descalço ali mesmo, sem pressa. Os saltos ficaram bonitos na mesa, nas fotos, no papel. Na realidade, são armas que machucam quem as usa.
Caminho até o sofá, sento devagar. Respiro.
Meu corpo ainda vibra da noite. Da tensão disfarçada, dos olhares, das palavras medidas. Da forma como Tyler olhou sem olhar. Como James viu sem invadir. E como Lincon, enfim, reconheceu que cruzou um limite.
As luzes da cidade entram pelas janelas. Azuladas. Quase frias.
O chaveiro está em minha mão. Gasto. Familiar. Doloroso. Passo o polegar pela costura velha como se fosse possível apagar a memória que ele carrega.
Eu guardei. Mesmo quando achei que tinha perdido tudo.
Me inclino para trás. Fecho os olhos.
Não há música. Não há drama. Só o som do meu próprio coração batendo firme, como se dissesse: Você ainda está aqui.
E eu estou.
Por mais um dia, estou.