Então, me preparando para mais um ano com todas suas obrigações e tarefas, eu me levantei da cama e desci até a cozinha. O cheiro forte do café conseguiu me despertar mais um pouco. Minha mãe e minha irmã estavam na cozinha e estavam tendo uma conversa animada sobre o primeiro de trabalho de Fernanda. O meu pai estava na sala, assistindo os noticiários da manhã. E eu estava me sentando na mesa, esperando o meu cérebro acordar.
As minhas férias foram ótimas. Coloquei minha leitura e séries em dias. Consegui descansar e aproveitar ao máximo a minha própria companhia. Mas o trabalho me chamava, e no fundo, eu estava infinitamente animada para poder dar aulas novamente. Conhecer rostinhos novos e fazer o máximo para inspirar aquelas crianças a serem melhores, a sonhar. Eu amava o que eu fazia! Eu não trocaria a minha profissão por nada e nem por todo o dinheiro do mundo que eu poderia ganhar fazendo qualquer outra coisa. Eu sempre preferia a educação.
- Animada com a volta às aulas? – Fernanda me perguntou enquanto mordia uma maçã.
Assenti com a cabeça lentamente, incapaz de conseguir formar uma frase coerente ainda.
- Eu estou bastante nervosa. Primeiro dia é sempre assim? – ela voltou a falar. – Tudo bem que eu já trabalhei antes, mas agora, exercendo o que eu realmente estudei e o que eu amo. Isso é tão... Uau! – a sua empolgação me fez sorrir.
- Eu estou feliz por você. Vai se dar muito bem. – Finalmente abri a boca.
Minha irmã também lecionava. Mas a sua área de conhecimento era bastante específica. História. Era uma matéria deveras importante, até gostava muito no meu tempo de escola, mas... Ela era corajosa, de toda forma.
- Nunca estive tão orgulhosa de vocês! – minha mãe sorriu e se sentou ao nosso lado da mesa. – Eu sempre me culpei por ter adiado, de alguma forma, a conquista de vocês. Mas olha agora, vocês conseguiram. E falta tão pouco, Fabíola. – ela sorriu e pegou minha mão.
Minha irmã e eu nos entreolhamos. Felizes por termos chegado longe. E superanimadas por aquele ano! Seria o nosso ano!
Eu havia me formado no ensino médio com dezoito anos e já comecei a trabalhar em uma creche em tempo integral. Eu queria fazer faculdade logo em seguida, mas meu pai perdeu o emprego na época, e minha mãe é diabética e precisava do plano de saúde. Como a faculdade pública de Pedagogia é integral e eu não teria tempo trabalhar, mas eu precisava, eu tive que adiar a entrada na faculdade e focar no meu emprego. Foram dois anos, eu e minha irmã "sustentando" todas as contas de casa. Minha mãe é costureira e teve problemas na visão e não estava podendo costurar, com isso levei três anos para entrar na faculdade particular porque ainda não podia parar de trabalhar. Então, eu trabalhava das 7:30h às 17:30h e ia pra faculdade de 18h:50 às 22:20h, e foi assim durante quatro anos.
Eu sempre levei minha carreira e meu trabalho a sério, então não tinha muito tempo para relacionamentos. E isso nunca me incomodou. Eu estava solteira, sempre fui solteira. E não estava desesperada nesse ponto da minha vida. Mas houve momentos nesse último ano que me fizeram questionar essa parte minha. O tempo estava passando e talvez, eu... Ok, não precisamos conversar sobre essa parte agora. Talvez nunca!
E quando se trata de mim, sempre tem a questão do medo. Ele me segue de uma maneira platônica.
Eu fui criada em uma família patriarcal. Meu avô dava a última palavra, meninas não podiam brincar com meninos, nem usar esmaltes vermelhos. Eu era vestida como princesinha. Aliás, eu e minha irmã fomos o sonho da minha mãe e de toda a família. Mamãe fez tratamento de cinco anos para engravidar, e ela conseguiu esse presente em dose dupla. Gêmeas. Fabíola e Fernanda. Logo após nosso nascimento, minha avó materna faleceu, o que fez com que ela superprotegesse eu e minha irmã. Minha adolescência foi um tanto... Intrigante! Mas nada importante demais para ser focado.
- Agora eu preciso ir cuidar. – Me despedi da minha irmã e da minha mãe na mesa depois de alguns minutos de conversa e café da manhã. – Vejo vocês mais tarde. Tenha um bom dia, mãe. E um ótimo dia de trabalho, Nanda.
E em passos rápidos, segui para o meu quarto. Me arrumei, peguei tudo que eu precisava para sobreviver ao primeiro dia de trabalho do ano e fui para mais um dia de glória/luta.
***
O primeiro dia foi do jeito que eu imaginava. Choro, gritaria, primeiras impressões, brincadeiras, pirulitos e muita, muita dor de cabeça. Estar de volta era isso!
Eu estava no intervalo e tomava mais uma xícara de café no refeitório dos professores - eu sobrevivia assim nesses dias - quando minha amiga chegou, com sua euforia sempre alta.
- Bíola, você não faz ideia do que eu irei fazer hoje á noite. – Sarah se sentou ao meu lado e me mostrou uma mensagem de texto que trocava com seu ficante do momento.
Li atentamente a mensagem só para sentir meu rosto queimar de vergonha.
- Pensei que iria para faculdade. As aulas começam hoje. – Eu ignorei o assunto um tanto... Quente em suas conversas.
Sarah deu de ombros e mexeu nos cachos de seus cabelos.
- Eu posso ir fazer os dois. – Ela sorriu de leve. – Vou para aula, e ele me pega na faculdade e nós iremos para algum lugar onde eu possa gritar à vontade.
Soltei uma risada. Era engraçado a maneira como ela conseguia fazer e falar tudo com naturalidade. Só de pensar e ouvir o que ela estava falando, eu ficava nervosa.
Eu sempre tinha a mania de fugir quando algo que pudesse me fazer sair da rotina aparecia. Eu gostava demais da calmaria, da ideia de não me machucar lá na frente. Mas minha amiga era diferente de mim. Na verdade, todo mundo ao meu redor era diferente mim. Todo mundo parecia tão mais... Destemido.
- E você, hein? – Sarah continuou a falar. – Seu último ano, acho que chegou a hora de finalmente...
- Sarah, cala a boca. – Eu a interrompi sabendo exatamente o que ela iria falar. – Eu estou muito bem. Eu estou adorável do jeito que eu estou. – Dei de ombros e terminei de tomar meu café. – Viva a sua vida e esqueça a minha.
- É exatamente por isso que você tem que transar! Que mau humor forte. Sua grossa. – Ela me deu uma tapa no braço.
Voltei a sorrir. Eu ouvia que estava grossa com frequência. Mas eu não era assim. Eu era amável, mas aquela menina... Se não fosse minha amiga, eu juro que mandava atropelar.
- Eu só não vou querer alguém que não supre as minhas expectativas. – Dei de ombros. – Olha ao redor, você acha que alguém aqui, irá me fazer ceder com todos os meus ideais românticos?
- Claro que não! – Sarah gritou. – Só tem criança ao seu redor, Bíola. E por favor, você nunca irá encontrar um Ian, Dante, Edward, Max, ou qualquer crush literário seu se não se permitir. Você só fica esperando um cavalheiro, numa armadura reluzente vir te salvar e não faz absolutamente nada! – ela parecia irritada comigo e eu me divertia. – E para ser sincera, isso não vai rolar. Você só ama esses caras porque eles estão nas páginas de uns livros. Na vida real, eles são... Bem, reais. – Ela deu de ombros.
Se eu ganhasse um real toda vez que eu ouvisse aqueles argumentos, eu provavelmente estaria mais rica que J.K. Rowling. Porque no fundo, eu sabia disso tudo. Mas eu não queria aceitar. Meu momento iria chegar e a magia ainda estaria ali. Mas eu já havia deixado de tentar argumentar sobre isso há muito tempo. Ninguém entenderia. Às vezes, nem eu mesmo entendo.
Mas esta sou eu. Uma mulher adulta com uma alma adolescente.
- Bom, Sarah, eu preciso ir trabalhar. – Me levantei daquela cadeira e olhei para minha amiga. – Enquanto eu não vivo, eu tenho certeza de que você está fazendo isso por mim ao quadrado.
Ela sorriu orgulhosa e abriu os braços como se tivesse acabado de fazer uma apresentação de teatro. Revirei os olhos e segui para fazer o meu resto do dia.
Minha vida estava bem, não estava? Tudo estava em seus trilhos, sem nenhum mal ocorrido. Mas por que, de repente, eu senti que precisava de uma adrenalina? Por que eu estava querendo ocupar os espaços vazios?
Você está pronta para isso?