Lia sentiu o chão fugir-lhe dos pés. Arruinado? No dia do casamento?
Ela amava Gonçalo. Segurou-lhe as mãos frias.
"Vamos ultrapassar isto, Gonçalo. Juntos."
Ele abraçou-a, mas o abraço pareceu-lhe estranhamente vazio.
Os cinco anos seguintes foram um inferno. Lia desdobrou-se em trabalhos para pagar as supostas "dívidas" de Gonçalo. Fazia limpezas em várias casas, de manhã à noite. Cozia bolos caseiros que vendia na feira local aos fins de semana, e bordava panos de cozinha até de madrugada.
Vasco, o filho deles, nasceu no primeiro ano daquele pesadelo. Desde cedo, o menino aprendeu a enfrentar as dificuldades. Aos quatro, já ajudava Lia a apanhar azeitonas nas bermas das estradas poeirentas. Com elas, Lia fazia um pouco de azeite para consumo próprio, um luxo que mal podiam pagar. Vasco também colhia flores silvestres e fazia pequenos arranjos que Lia tentava vender juntamente com os bolos.
Gonçalo raramente estava em casa. Dizia que procurava trabalho, que tentava reerguer-se, mas voltava sempre de mãos a abanar e com o cheiro a perfume caro que Lia não reconhecia. As discussões eram raras, porque Lia estava demasiado cansada para discutir. Ela apenas trabalhava.
No dia em que Vasco fazia cinco anos, Lia não tinha dinheiro nem para um bolo pequeno. Em vez disso, conseguiu um trabalho temporário. Um novo hotel rural de luxo ia abrir nos arredores, e precisavam de pessoas para distribuir panfletos. Pagavam ao dia.
Lia e Vasco vestiram-se com fatos de mascotes. Lia era um sobreiro frondoso, símbolo do Alentejo. Vasco era uma pequena cegonha, outra imagem da região. Os fatos eram quentes e desconfortáveis sob o sol de verão.
"Mamã, porque é que o pai não está aqui no meu aniversário?" perguntou Vasco, a sua vozinha abafada pelo fato de cegonha.
Lia engoliu em seco.
"O pai está a trabalhar muito, meu amor. Para nos dar uma vida melhor."
Mentira. Ela já nem sabia onde Gonçalo passava os dias.
Enquanto distribuíam panfletos na entrada imponente do hotel, uma mulher elegante, de óculos escuros e ar superior, aproximou-se.
"Vocês, as mascotes. Precisamos de animação para uma festa de aniversário. Ali dentro." Apontou para os jardins luxuriantes do hotel. "O meu filho faz anos. Pago bem."
Lia hesitou. Era o aniversário de Vasco. Mas o dinheiro...
"Quanto paga?" perguntou Lia, a voz alterada pelo fato de sobreiro.
A mulher riu. "Mais do que ganham num dia a torrar aí ao sol."
Lia olhou para Vasco. O menino abanou a cabeça pequena de cegonha, afirmativamente. Precisavam do dinheiro.
Entraram nos jardins do hotel. Era um mundo à parte. Piscinas azuis, relva impecável, convidados vestidos com roupas caras. Um contraste brutal com a vida deles.
A festa de aniversário decorria numa zona reservada. Balões, um palhaço, um bolo enorme. E no centro de tudo, um menino mimado abria presentes caríssimos, rodeado de outras crianças igualmente ricas.
Lia e Vasco começaram a dançar e a acenar, tentando animar as crianças, que mal lhes ligavam.
Lia sentia-se humilhada, mas precisava de aguentar. Pelo Vasco.
Foi então que ouviu uma conversa que a fez gelar, mesmo dentro do fato quente de sobreiro.
Duas mulheres, elegantemente vestidas, cochichavam perto dela, enquanto bebiam champanhe.
"A Beatriz tem o Gonçalo na mão, não tem? Ele dá-lhe tudo."
"Claro. Ouvi dizer que ele é um dos maiores produtores de azeite e cortiça do país. Podre de rico."
"E a tonta da mulher dele? Dizem que vive na miséria, a pensar que ele está falido."
"Que lata! Ele prometeu à Beatriz que a fortuna seria só para ela. Uma promessa antiga, de adolescência. Ele sempre foi obcecado por ela."
Lia parou de dançar. O mundo girou.
Gonçalo? Rico? Produtor de azeite e cortiça?
Não podia ser. A falência... as dívidas... a vida deles...
Então viu-o. Gonçalo.
Ele estava ali, ao lado da mulher que devia ser Beatriz. Sorria para ela com uma ternura que Lia nunca tinha visto no seu rosto. Acariciava-lhe o braço.
Beatriz era a mulher que os tinha contratado.
Lia sentiu o ar faltar-lhe. O seu Gonçalo, o homem por quem ela se matava a trabalhar, era um mentiroso. Um monstro.
A mulher que falava confirmou, olhando para Lia como se ela fosse uma idiota.
"Sim, querida. Aquele é o Gonçalo Vaz. Dono de metade do Alentejo, aparentemente."
Beatriz disse algo ao ouvido de Gonçalo, apontando para o filho dela, Martim, que fazia uma birra por causa de um presente.
Gonçalo ajoelhou-se ao pé de Martim, abraçou-o e disse, em voz alta para que todos ouvissem, mas olhando para Beatriz:
"Não te preocupes, meu amor. O Martim terá tudo o que quiser. A minha fortuna é para ti e para os teus caprichos. Sempre foi."
Lia sentiu uma dor aguda no peito. Humilhação pública.
Ela queria gritar, arrancar o fato ridículo e confrontá-lo. Mas não conseguiu. Estava paralisada.
Tinha de continuar a dançar. O filho de Beatriz, Martim, puxou-lhe uma das folhas do fato de sobreiro, rindo.
Lia continuou, as lágrimas a quererem saltar-lhe dos olhos.
Vasco, o seu pequeno Vasco, vestido de cegonha, aproximou-se dela. Ele tinha tirado a cabeça do fato. Os seus olhos grandes e inteligentes fixavam Gonçalo.
Ele percebeu. Mesmo com cinco anos, ele percebeu.
Martim, o filho de Beatriz, aproximou-se deles com um ar de gozo. Pegou num punhado de notas da mão da mãe e atirou-as para Lia e Vasco.
"Tomem, pobres. Animem melhor!"
O dinheiro esvoaçou e caiu aos pés deles.
Gonçalo e Beatriz riram. Riram com cumplicidade.
Lia olhou para o marido, o homem que ela pensava amar. A farsa. A promessa a Beatriz. Cinco anos de sacrifício. Para nada.
Uma memória antiga invadiu-a. Gonçalo e Beatriz, os reis do baile de finalistas. Lia, a filha do padeiro, a observá-los de longe, o coração apertado. Gonçalo sempre fora apaixonado por Beatriz. Beatriz, de família rica, mas cujos negócios, Lia soubera mais tarde, estavam em declínio.
Depois, Beatriz casara com outro, fora viver para longe. Gonçalo ficara destroçado.
Foi nessa altura que ele se aproximara de Lia. Vulnerável, triste.
"Lia," dissera ele, uma noite, "casa comigo. Ajuda-me a esquecê-la."
E Lia, ingénua, cega de amor, aceitara. Pensara que o seu amor o curaria. Que ele aprenderia a amá-la.
Que tola fora. Anos de sacrifício, de sofrimento, de esperança vã.
Agora, tudo fazia sentido. A "ruína" no dia do casamento. A ausência dele. O dinheiro que nunca havia.
Ele nunca a amara. Ele nunca quisera aquela vida com ela. Ela e Vasco eram apenas um empecilho, um erro de cálculo no seu plano de reconquistar Beatriz quando ela voltasse, viúva e com um filho.
A festa acabou. Lia e Vasco tiraram os fatos. O dinheiro que Beatriz lhes dera pareceu queimar nas mãos de Lia.
No caminho para casa, de autocarro, Vasco encostou a cabeça ao ombro dela.
"Mamã," disse ele, a voz embargada, "o pai não gosta de nós, pois não?"
Lia abraçou-o com força, as lágrimas a correrem-lhe finalmente pelo rosto.
"Não, meu amor. Não gosta."
A culpa esmagou-a. Tinha submetido o filho àquela miséria, àquela humilhação, por causa da sua cegueira.
Basta. Tinha de acabar.
Ia pedir o divórcio. Ia levar Vasco para longe daquele homem.
Lembrou-se dos presentes caros que Gonçalo dava a Beatriz e Martim, das viagens, dos jantares em restaurantes de luxo que via nas redes sociais de Beatriz, que ela passara a seguir em segredo, torturando-se. E para ela e Vasco? Migalhas. Trabalho duro. E a humilhação de hoje.
Chegou a casa, ao pequeno anexo alugado onde viviam. Estava determinada.
Assim que entrou, Gonçalo apareceu. Vinha impecavelmente vestido, cheirando ao perfume caro de sempre.
"Lia, onde te meteste? Tentei ligar-te." Ele falava como se nada fosse, como se não a tivesse visto no hotel.
"Estive a trabalhar," respondeu Lia, a voz fria.
Ele deu de ombros. "Olha, preciso que assines isto." Pousou uns papéis na mesa. "Coisas da quinta. Não te preocupes com os detalhes."
Lia olhou para os papéis. Contratos, licenças. Coisas de um homem rico, não de um falido.
Ele nem se sentou. O telemóvel tocou. Era Beatriz.
"Tenho de ir, Biazinha. Sim, já trato disso. Até já, meu amor."
Desligou, pegou numa caneta, assinou os papéis sem os ler e atirou-os para cima da mesa.
"Assina aí. Tenho pressa."
Lia pegou nos papéis. Eram os papéis do divórcio que ela própria mandara preparar por um advogado amigo, semanas antes, numa rara centelha de lucidez, mas que nunca tivera coragem de apresentar. Agora, estavam ali, à frente dele.
Ele nem reparou.
Saiu porta fora, apressado, para ir ter com a sua Beatriz.
Lia ficou a olhar para a porta fechada. Acabou.