De volta ao apartamento, Sofia começou a encaixotar as suas coisas.
Primeiro, as roupas. Depois, os livros de culinária.
No fundo de uma gaveta, encontrou uma pequena caixa de madeira.
Dentro, roupinhas de bebé. Minúsculas. Brancas.
Lembrou-se da alegria secreta quando descobriu a gravidez.
Dos sonhos que teceu para aquele filho.
Sonhos que Marcos esmagou.
"Não é o momento certo, Sofia. Pensa na minha carreira, na pressão. Lorena ficaria devastada."
Ele usara Lorena como desculpa. Como sempre.
A dor daquele aborto, que ele insistira ser a única solução, voltou com força.
Ele não queria aquele filho. Assim como não a queria a ela, de verdade.
Fechou a caixa com um nó na garganta.
Levou-a para o contentor do lixo na rua.
Um peso saiu-lhe dos ombros. Uma libertação dolorosa.
No dia seguinte, foi ao restaurante "Solar dos Andrade".
O restaurante que ela ajudara a transformar de um estabelecimento decadente numa estrela Michelin.
A cozinha era o seu santuário. Onde as suas mãos criavam magia.
Marcos estava no escritório, ao telefone, a rir.
Provavelmente com Lorena.
Sofia entrou sem bater.
"Marcos, vim despedir-me."
Ele desligou o telefone, surpreendido.
"Despedir-te? Como assim? Vais de férias?"
"Não, Marcos. Estou a despedir-me do restaurante. E de ti."
Ele levantou-se, a incredulidade no rosto.
"Sofia, não podes estar a falar a sério. Este restaurante és tu! Nós somos uma equipa!"
"Nós éramos uma equipa quando te convinha," disse ela, a voz firme. "Eu dei tudo por este lugar. Dei o meu talento, o meu tempo. Dei mais do que tu alguma vez vais saber."
Ele aproximou-se, tentou abraçá-la.
"Meu amor, o que se passa? É por causa do pedido interrompido? Eu compenso-te. Fazemos uma festa de noivado ainda maior."
Sofia recuou.
"Não há nada para compensar, Marcos. Acabou."
Ele parecia confuso, quase magoado.
"Mas... e o nosso futuro? O nosso casamento?"
Ao fundo, no seu computador, uma notificação de rede social piscou.
Uma foto de Lorena, sorridente, num iate luxuoso. A legenda: "A celebrar o futuro com o meu amor."
Sofia sorriu, um sorriso amargo.
"Parece que já tens o teu futuro planeado, Marcos."
Ela virou-se para sair.
Nesse momento, o seu telemóvel vibrou.
Uma mensagem de um número desconhecido.
Uma foto. Lorena, deitada numa cama de hospital, um penso na lateral do corpo. Idêntico ao que Sofia teve.
A legenda: "A recuperar bem. Obrigada ao meu dador anónimo e ao meu amor, Marcos, por cuidar tão bem de mim."
A raiva voltou, avassaladora.
O telemóvel de Sofia tocou novamente. Era Carlos.
"Sofia, preciso de ti. O Marcos... ele teve um acidente de carro. Parece que discutiu com a Lorena, saiu disparado. Está no hospital, precisa de sangue. O tipo dele é raro, B negativo."
B negativo. O mesmo tipo de Sofia.
O destino tinha um sentido de humor doentio.
"Estou a caminho," disse ela, a voz vazia.
No hospital, o ambiente era tenso.
Carlos esperava-a à porta da urgência.
"Ele está estável, mas perdeu muito sangue."
Sofia não disse nada. Entrou na sala de colheitas.
A enfermeira preparou o seu braço.
O sangue começou a fluir. Vermelho escuro. Vida.
A sua vida, a escorrer para salvar a dele.
Apesar de tudo.
Sentiu-se fraca, tonta.
A imagem de Lorena na cama do hospital, o sorriso de Marcos.
O seu rim. O seu sangue. O seu filho perdido.
Tudo se misturou numa onda de exaustão e dor.
Quando a bolsa de sangue ficou cheia, Sofia quase desmaiou.
Carlos amparou-a.
"Obrigado, Sofia. Tu salvaste-o."
Mais tarde, meio adormecida numa maca, ouviu a voz de Marcos no corredor.
Falava com um médico.
"...sim, a Sofia doou. Ela é assim, faz tudo por mim. Nunca me deixaria. Mesmo que eu pise na bola de vez em quando."
A arrogância dele era inacreditável.
Mesmo ali, à beira da morte, ele não via. Não entendia.
Aquela foi a gota de água.
A sua decisão, antes firme, tornou-se inabalável.
Ela ia partir. Para longe. Para sempre.