Desde que me entendo por gente, era assim. Clara era a luz dos olhos de minha mãe, a filha perfeita, a promessa de um futuro melhor. Eu era a sombra, a rebelde, a que não se encaixava.
A lista finalmente foi pregada no painel. Uma multidão se formou, e minha mãe, com uma agilidade que eu não sabia que ela possuía, arrastou Clara para a frente. Eu fiquei para trás, meu coração batendo descompassado.
Eu ouvi o grito de alegria de minha mãe antes de ver qualquer coisa.
"Clara! Minha filha! Eu sabia!"
Mas a voz dela vacilou. Alguém ao lado dela leu em voz alta:
"Bolsa integral para a Escola de Música do Rio de Janeiro... Ana de Sousa! Parabéns, Ana!"
O silêncio que se seguiu foi pesado. Todos os olhares se viraram para mim. Eu senti meu corpo tremer, uma onda de euforia e descrença me atingiu. Eu consegui. Meu sonho, minhas noites em claro compondo, minha voz que eu só soltava quando estava sozinha na beira da praia, tudo valeu a pena.
Atravessei a multidão e vi meu nome, ali, impresso em letras pretas e inconfundíveis. Abaixo, em uma posição muito inferior, estava o nome de Clara, com a nota mínima para aprovação, sem bolsa.
O rosto de minha mãe era uma máscara de fúria e decepção. Ela olhou para mim como se eu tivesse roubado algo dela.
"Isso deve estar errado," ela sibilou, baixo o suficiente para que apenas eu e Clara ouvíssemos.
Clara começou a chorar, um choro alto e desesperado que atraiu a atenção de todos.
"Mãe, eu tentei tanto... eu queria tanto te dar orgulho..."
Minha mãe a abraçou, lançando-me um olhar venenoso por cima do ombro da minha irmã. Naquele momento, a alegria da minha conquista se transformou em cinzas.
Nos dias seguintes, a tensão em casa era quase física. A carta oficial da escola de música chegou. Eu a vi na mesa da cozinha, um envelope pardo com o selo da instituição. Meu coração pulou. Era a confirmação, a prova real.
Mas eu não tive a chance de abri-la.
Naquela noite, enquanto eu lavava a louça do jantar, ouvi minha mãe e Clara cochichando no quarto. A curiosidade foi mais forte. Aproximei-me da porta e colei o ouvido na madeira.
"... tem certeza, mãe? E se descobrirem?" a voz de Clara era trêmula.
"Ninguém vai descobrir. Você merece isso, não ela. Ela é uma ingrata, só pensa em cantar essas músicas idiotas em vez de arrumar um bom casamento. Você vai para o Rio, vai se tornar uma grande artista e vai nos tirar dessa miséria. Eu já dei um jeito. O convite agora está no seu nome."
Meu sangue gelou.
Eu não conseguia respirar.
Empurrei a porta com força. As duas se viraram, assustadas. Em cima da cama, estava o envelope aberto. O papel timbrado da escola estava nas mãos de Clara, mas algo estava diferente. O nome. O nome havia sido alterado. Minha mãe, com uma habilidade que eu desconhecia, tinha falsificado o documento.
"O que vocês fizeram?" minha voz era um fio.
Minha mãe se recuperou do choque primeiro. Seu rosto se contorceu em uma fúria fria.
"O que era preciso ser feito. O que é justo. Essa oportunidade é de Clara."
"Justo? Eu ganhei a bolsa! Meu nome estava na lista! Isso é um crime!" eu gritei, a dor e a raiva rasgando minha garganta.
Clara se encolheu atrás da nossa mãe, choramingando.
"Ana, por favor, não faça um escândalo. Eu preciso disso..."
"Você não precisa disso! Você roubou de mim!"
Eu avancei para pegar o papel, mas minha mãe se interpôs. Ela era mais forte do que parecia. Ela me empurrou para trás com uma força brutal.
"Saia daqui! Sua egoísta! Sempre pensando só em você! Quer estragar o futuro da sua irmã por puro capricho?"
O confronto se tornou uma briga feia. Eu tentei pegar o que era meu, e minha mãe me segurou, seus dedos cravando em meus braços. A briga se espalhou para a sala. Vizinhos, atraídos pelos gritos, começaram a aparecer na porta.
Foi então que minha mãe jogou sua cartada final.
"Vejam! Vejam todos o tipo de filha que eu tenho!" ela gritou para a pequena multidão que se formava. "Ingrata! Tentei dar tudo para ela, e agora ela ataca a própria irmã por inveja!"
Ela tirou de uma gaveta um punhado de fotos. Meu estômago revirou. Eram fotos minhas, mas... distorcidas. Fotos de festas de aniversário da escola, recortadas e coladas para parecer que eu estava bêbada, abraçada a rapazes que eu mal conhecia, em poses sugestivas. Eram montagens grosseiras, mas para os olhos crédulos da nossa pequena comunidade, eram a prova da minha "má reputação".
"Ela vive na farra, com gente de má fama! E agora quer tirar a única chance da irmã decente de ter um futuro! Ela tem um comportamento vergonhoso!"
As pessoas olhavam para mim com desprezo. Sussurros se espalharam como veneno. "Sempre soube que essa menina não prestava." "Coitada da Maria, com uma filha dessas."
Clara, a mestra da manipulação, aproveitou o momento. Com lágrimas nos olhos, ela se agarrou ao braço de nossa mãe.
"Eu não queria a vaga dela, eu juro! Eu só... eu só queria que a mamãe ficasse feliz. Ana, me perdoa... eu sei que você me odeia."
A performance foi perfeita. Eu era a vilã. A invejosa, a promíscua, a filha má.
Minha mãe apontou para a porta.
"Fora da minha casa! Eu não tenho mais filha! Vá viver sua vida vergonhosa longe daqui! Ingrata!"
Ela me empurrou para fora e bateu a porta na minha cara.
Eu estava na rua, com a roupa do corpo e a humilhação queimando meu rosto. A vila inteira agora me via como um lixo. Ninguém me ofereceu ajuda. As portas se fecharam para mim. Pedro, meu único amigo de infância, estava viajando com seu pai pescador e não voltaria por semanas. Eu estava completamente sozinha.
Os dias que se seguiram foram um borrão de fome, frio e humilhação. Dormi em becos, comi restos que encontrava. Tentei arrumar trabalho, mas a fama que minha mãe criou para mim me precedia. "A filha da Maria? A desvergonhada? Não, obrigado."
Acabei me juntando a um grupo de músicos de rua que tocavam na cidade vizinha. Não era um sonho, era sobrevivência. Eles não se importavam com meu passado, apenas com o dinheiro que minha voz poderia trazer. Mas o ambiente era brutal. O pouco que eu ganhava era quase sempre tomado pelo líder do grupo, um homem violento e cruel.
Eu era um fantasma de mim mesma. A música, que antes era minha salvação, virou mais uma corrente.
Certa noite, após uma discussão sobre o dinheiro que eu havia escondido para tentar comprar uma passagem para qualquer lugar longe dali, a violência explodiu. Fui arrastada para um beco escuro. Os golpes vieram de todos os lados. Chutes, socos. A dor era excruciante.
Minha cabeça bateu com força no chão de paralelepípedos. A última coisa que senti foi o gosto de sangue na boca. A última coisa que ouvi foi uma risada.
"Deixa ela aí. Já era."
Minha consciência se esvaiu na escuridão fria, meu último pensamento um lamento silencioso pelo sonho que me foi roubado. Eu estava morrendo, sozinha e esquecida, em um beco sujo.
E então... nada.
...
Uma luz forte...
O som de vozes familiares...
Eu abri os olhos.
O sol do nordeste entrava pela janela do meu quarto. Minha mãe estava de pé, ao lado da minha cama, com uma expressão impaciente.
"Vamos, Ana, levanta! Hoje é o dia da formatura! Não me faça passar vergonha com seu atraso!"
Eu pisquei, confusa. Minha cabeça... não doía. Meu corpo... não havia feridas. Olhei para minhas mãos. Limpas, sem os calos e a sujeira da vida na rua.
Eu me sentei na cama, o coração disparado. Olhei para o calendário na parede.
Era o dia da formatura do ensino médio.
O dia em que a lista foi afixada.
O dia antes da troca dos convites. Antes da humilhação. Antes da minha morte.
Eu não estava morta.
Eu estava de volta.
Uma risada baixa, quase insana, escapou dos meus lábios. As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, mas não eram de tristeza. Eram de uma fúria fria e cristalina.
Desta vez, seria diferente.
Desta vez, eu não seria a vítima.
Desta vez, eles iriam pagar.
---