Pedi a Pedro para continuar observando, para anotar cada visita, cada conversa suspeita. Ele se tornou meu parceiro silencioso nessa guerra fria.
A minha oportunidade de ouro veio em uma terça-feira à tarde. Minha mãe e Clara foram à cidade vizinha, sob o pretexto de comprar "roupas adequadas para a capital" . Eu sabia que era uma mentira. Elas provavelmente foram encontrar o filho de Afonso ou fazer alguma outra maquinação.
A casa estava vazia.
Corri para o quarto de minha mãe. Desta vez, meu alvo não era a caixa de metal. Era algo que eu havia notado na minha vida passada, mas nunca dei importância: o celular de minha mãe.
Era um modelo um pouco mais moderno que o meu, um presente de Clara. Minha mãe mal sabia usá-lo para ligar, mas Clara o usava constantemente. Eu suspeitava que ela o usava para se comunicar com pessoas que minha mãe não aprovaria, mantendo sua própria rede de segredos.
A senha era fácil: a data de aniversário de Clara.
Abri o aplicativo de mensagens. O que encontrei foi ainda pior do que eu imaginava. Havia conversas de Clara com várias pessoas, inclusive com o filho de Afonso. Nelas, Clara zombava abertamente dele, chamando-o de "idiota rico" e "meu bilhete de loteria" . Ela falava sobre como o enrolaria até conseguir o que queria e depois o descartaria.
Mas a descoberta mais chocante foi uma conversa com um número desconhecido, salvo como "Serviço RJ" .
Eram mensagens trocadas com um falsificador no Rio de Janeiro.
Clara: "Conseguiu fazer o que eu pedi? A alteração no documento precisa ser perfeita."
Serviço RJ: "Trabalho de primeira, garota. Ninguém vai notar. Mas o preço subiu. Esse tipo de selo é difícil de replicar."
Clara: "Dinheiro não é problema. Minha mãe cuida disso. Só garanta que o nome 'Ana de Sousa' desapareça e 'Clara de Sousa' esteja no lugar."
Serviço RJ: "Considere feito. Me envie a foto do documento original assim que chegar. Faço a mágica e te envio o arquivo para impressão em alta qualidade."
Meu sangue ferveu. Elas não iam apenas trocar as cartas. Elas iam criar um documento falso e perfeito. Isso era um crime federal. Era muito mais sério do que eu pensava.
Fotografei cada tela da conversa com o meu celular. Cada mensagem, cada detalhe. Era a prova definitiva. A arma que destruiria as duas.
Enviei as novas fotos para o meu e-mail secreto e apaguei o histórico de navegação do meu celular. Depois, apaguei as fotos da minha galeria, garantindo que não houvesse vestígios.
Senti uma onda de poder. Eu não era mais a vítima reativa. Eu era a caçadora, pacientemente montando minha armadilha.
Naquela noite, enquanto eu estava no meu quarto, revisando mentalmente meu plano, Pedro me mandou uma mensagem.
Pedro: "Olhe pela janela."
Fui até a janela e o vi do outro lado da rua, perto do poste de luz. Ele fez um sinal para que eu descesse.
Desci em silêncio. Ele estava me esperando no portão.
"O que foi?" sussurrei.
"Eu não queria te contar por mensagem," ele disse, sua voz baixa e séria. "Eu segui sua mãe e Clara hoje. Elas não foram para a cidade vizinha. Elas foram a um cartório. E depois, a uma agência de viagens."
Meu estômago gelou.
"O que elas fizeram lá?"
"Eu não consegui ouvir tudo. Mas ouvi palavras como 'procuração' e 'passagem só de ida' . Ana... acho que sua mãe está planejando algo para você. Algo para te tirar do caminho de vez."
Uma procuração. Uma passagem só de ida. O plano delas era mais sinistro do que eu imaginava. Elas não iam apenas me expulsar de casa. Elas iam me mandar para longe, para algum lugar onde eu não pudesse mais interferir. Talvez para a casa de uma tia distante no interior, um lugar sem telefone ou internet. Elas iam me apagar.
"Obrigada, Pedro," eu disse, minha voz um pouco trêmula, apesar da minha resolução. "Isso é... mais do que eu esperava."
Ele viu o medo em meus olhos, mesmo que eu tentasse escondê-lo. Ele estendeu a mão e, hesitantemente, tocou meu rosto. Seu polegar roçou minha bochecha.
"Você não está sozinha nisso, Ana," ele disse suavemente. "Eu não vou deixar nada de ruim acontecer com você."
O toque dele era quente, real. Em meio a toda a frieza da minha vingança, aquele pequeno gesto foi um farol. Eu me inclinei em sua mão por um breve segundo, absorvendo sua força.
"Eu sei," respondi.
Eu precisava agir rápido. O carteiro geralmente passava pela manhã. A carta da escola de música poderia chegar a qualquer momento. E o telefonema do Professor Almeida também.
Eu precisava de mais um aliado. Alguém com autoridade. Alguém que pudesse ser uma testemunha oficial quando tudo viesse à tona.
Pensei no Sargento Silva, o chefe da pequena delegacia da cidade. Um homem justo, amigo do meu pai. Minha mãe sempre o evitou, chamando-o de "intrometido" . Perfeito.
No dia seguinte, inventei uma desculpa para ir à cidade e fui direto para a delegacia. Contei ao Sargento Silva uma versão editada da história. Falei sobre a bolsa, sobre a hostilidade da minha família e sobre minha suspeita de que minha irmã e minha mãe poderiam tentar fraudar os documentos quando chegassem. Mostrei a ele o e-mail impresso da escola, falando sobre a verificação por telefone.
"Isso é uma acusação muito séria, Ana," ele disse, seu rosto grave.
"Eu sei, sargento. É por isso que estou aqui. Eu não quero acusá-las ainda. Eu só quero que o senhor esteja ciente. E talvez... se o senhor pudesse estar por perto amanhã de manhã. Apenas para garantir que tudo corra bem."
Ele me olhou por um longo tempo, seus olhos experientes avaliando a situação. Ele conhecia minha mãe. Ele conhecia a reputação que ela tentava manter. E ele conhecia meu pai.
"Vou mandar um oficial fazer uma ronda na sua rua amanhã de manhã," ele disse finalmente. "Apenas uma patrulha de rotina. Ninguém precisa saber de nada."
"Obrigada, sargento. Muito obrigada."
Eu saí da delegacia sentindo o peso do meu plano se solidificando. As peças estavam se movendo para suas posições. O palco estava sendo montado.
Faltava apenas o ato principal.
E eu estava pronta para a minha performance.
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