Clara trabalhava como secretária na empresa dele na cidade, e o caso deles começou antes mesmo da morte de Helena. Para Pedro, a conta era simples: minha mãe era uma destruidora de lares, uma oportunista que causou a morte da mãe dele, e eu era a cria indesejada daquela união. Ele me odiava porque odiava a minha mãe, e eu era um alvo muito mais fácil.
Eu passei a maior parte do dia trancada no quarto, tentando consertar meu livro com fita adesiva. Cada pedaço de fita era uma lembrança da violência dele. Eu tinha medo de encontrá-lo. Eu sabia que para sobreviver ali, eu precisava ficar o mais longe possível dele. Evitá-lo se tornou minha principal estratégia de sobrevivência. Se eu não o visse, ele não poderia me machucar.
Mas a casa, apesar de grande, tinha seus pontos de encontro inevitáveis. A cozinha era um deles. No final da tarde, minha barriga roncava de fome. Eu não tinha almoçado, com medo de sair do quarto. Criei coragem e fui até a cozinha, esperando que não houvesse ninguém. Luzia estava lá, lavando louça, e me deu um sorriso cansado.
"A menina precisa comer," ela disse em voz baixa.
Ela me serviu um prato de comida e eu me sentei em um pequeno banco no canto. Enquanto eu comia, a porta da cozinha se abriu. Era Pedro. Meu corpo inteiro ficou tenso. Ele me ignorou e foi até a geladeira, pegou uma garrafa de água. Quando ele se virou, seus olhos pousaram em mim. Ele caminhou lentamente na minha direção, como um predador.
Ele parou na minha frente e olhou para o meu prato. Depois, olhou para as botas dele, que estavam sujas de lama.
"Minhas botas estão sujas," ele disse, com a voz calma e ameaçadora. "Limpe-as."
Luzia parou o que estava fazendo e olhou para ele, assustada.
"Senhor Pedro, eu posso..."
"Cale a boca," ele a interrompeu, sem tirar os olhos de mim. "Eu não falei com você. Eu falei com ela."
Eu olhei para ele, sentindo o sangue ferver nas minhas veias. Limpar as botas dele, ali, na frente de Luzia, como uma serva. A humilhação era o objetivo. Eu queria dizer não, queria jogar o prato de comida na cara dele. Mas eu vi o olhar de Luzia, um olhar de súplica, pedindo para que eu não piorasse as coisas. E eu me lembrei das palavras do Senhor Antônio: "Não provoque meu filho."
Com as mãos tremendo, eu coloquei meu prato no chão. Peguei um pano de chão que estava perto do balde e me ajoelhei na frente dele. O cheiro de lama e couro invadiu minhas narinas. Eu comecei a limpar a bota dele, sentindo cada grama da minha dignidade se esvair. Ele observava de cima, com um sorriso satisfeito nos lábios.
Quando terminei a primeira bota, levantei a cabeça.
"A outra," ele ordenou.
Eu limpei a segunda bota. Quando acabei, continuei ajoelhada, sem coragem de olhar para ele.
"Pronto," eu murmurei.
Ele não se moveu. Eu esperei. Depois de um longo silêncio, ele disse:
"Agora pode voltar a comer sua comida de cachorro."
Ele se virou e saiu da cozinha. As lágrimas que eu segurei com tanta força finalmente escaparam. Elas caíam silenciosas no chão sujo. Luzia se aproximou e colocou a mão no meu ombro.
"Não chore, menina. Ele é assim mesmo. Você precisa ser forte."
Mas eu não me sentia forte. Eu me sentia quebrada. Voltei para o meu quarto e me deitei na cama. Eu não conseguia mais chorar. Eu apenas olhava para o teto, pensando. Sobreviver aqui não seria apenas evitar o Pedro. Seria engolir humilhações. Seria me tornar pequena, invisível. Seria aprender a morrer um pouco a cada dia para continuar viva. Eu precisava aguentar. Precisava estudar em segredo, passar no vestibular e fugir. A fuga era meu único objetivo. A liberdade era a única coisa que importava. Eu ia suportar tudo. Eu tinha que suportar.