Quando o Amor Vira Fumo
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Capítulo 1

Quando acordei, o cheiro forte de desinfetante invadiu as minhas narinas, e uma dor aguda no meu abdómen lembrou-me que eu tinha perdido o meu filho.

O meu corpo estava fraco, mas forcei-me a sentar.

O quarto do hospital estava silencioso, exceto pelo som da televisão na parede, que noticiava o incêndio devastador que tinha consumido o nosso prédio de apartamentos horas antes.

"Incêndio no Edifício Atlântico deixa dezenas de feridos. A causa ainda está a ser investigada."

O meu telemóvel estava na mesa de cabeceira. Peguei nele com as mãos a tremer e disquei o número do Pedro, o meu namorado.

Precisava de uma explicação. Precisava de saber porquê.

O telefone chamou, uma, duas, três vezes. Quando estava prestes a desistir, ele finalmente atendeu. A sua voz soava irritada, cansada.

"Ana? O que foi? Estou exausto, passei o dia todo a correr."

Antes que eu pudesse dizer uma palavra, ouvi outra voz ao fundo, uma voz feminina, suave e um pouco manhosa.

"Pedro, querido, o Miau está assustado. Podes vir aqui um bocadinho?"

Era a Sofia, a sua amiga de infância.

A voz do Pedro suavizou instantaneamente.

"Claro, Sofia. Já vou. Só um minuto."

Depois, de volta para mim, o seu tom tornou-se duro outra vez.

"Olha, não posso falar agora. A Sofia está muito abalada, e o gato dela, o Miau, quase não sobreviveu. Inalou muito fumo. Estamos no veterinário de emergência."

Senti um nó na garganta.

"Pedro," comecei, a minha voz a falhar, "o nosso bebé... eu perdi o nosso bebé."

Houve um silêncio do outro lado da linha, mas não foi o silêncio de choque ou tristeza que eu esperava. Foi um silêncio pesado, quase aborrecido.

"Eu sei," disse ele finalmente. "A minha mãe ligou-me. Olha, é uma pena, mas estas coisas acontecem. Agora não é uma boa altura. A Sofia precisa mesmo de mim."

Uma pena? O nosso filho, o filho que planeámos, era apenas "uma pena"?

"Tu deixaste-me lá," sussurrei, as lágrimas a escorrerem pelo meu rosto. "O prédio estava a arder, eu liguei-te, gritei por ti, e tu não vieste. Onde é que estavas, Pedro?"

"Eu estava a ajudar a Sofia!" ele explodiu, a sua paciência a esgotar-se. "O apartamento dela era logo por cima do nosso, o fogo estava a espalhar-se depressa! O gato dela estava preso debaixo da cama! O que é que querias que eu fizesse? Deixasse o pobre animal morrer?"

"E eu?" a minha voz subiu, misturando-se com um soluço. "Eu sou a tua namorada! Eu estava a carregar o teu filho!"

"Tu és uma adulta, Ana! Podes cuidar de ti mesma! Um bombeiro acabou por te tirar de lá, não foi? Então qual é o problema? Deixa de ser tão dramática."

Dramática. Ele chamou-me dramática.

"Acabou, Pedro," disse eu, a voz fria e vazia. "Quero terminar."

Ele riu, um riso amargo e desdenhoso.

"Terminar? Não sejas ridícula. Estás apenas chateada por causa do bebé. Vais superar isso. Agora tenho mesmo de ir. Falamos mais tarde."

E desligou.

Olhei para o telemóvel na minha mão, incrédula. Ele não só me tinha abandonado num incêndio para salvar o gato da sua amiga, como também achava que a minha dor era um exagero.

O nosso bebé tinha desaparecido, o nosso futuro tinha virado cinzas, e tudo o que ele conseguia pensar era no gato da Sofia.

As minhas lágrimas secaram, substituídas por uma frieza que se espalhou pelo meu peito. Ele tinha razão numa coisa. Eu ia superar isto.

Ia superar a perda do meu filho.

E ia, definitivamente, superá-lo a ele.

            
            

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