Recebi alta do hospital dois dias depois.
Dois dias em que o Pedro não ligou, não mandou uma única mensagem. Era como se eu tivesse desaparecido da sua vida, e ele não se importasse minimamente.
A sua mãe, a Dona Helena, também não deu mais sinal de vida. Provavelmente estava demasiado ocupada a consolar a "pobre" Sofia.
O meu pai e a Clara levaram-me para a casa deles, um lugar onde eu não vivia desde que tinha saído para a universidade. O meu antigo quarto estava exatamente como eu o tinha deixado, mas agora parecia o quarto de uma estranha.
A Clara preparou-me uma canja de galinha e certificou-se de que eu estava confortável na cama.
"Descansa, Ana," disse ela, a sua voz suave. "Não te preocupes com nada. Nós tratamos de tudo."
O meu pai ficou encostado à porta, a observar-me com uma expressão sombria.
"Amanhã," disse ele, com o tom de quem toma uma decisão final, "vamos ao teu apartamento. Ou ao que resta dele. Precisamos de ver o que se pode salvar e tratar da papelada com o seguro."
A ideia de voltar àquele lugar fez o meu estômago dar um nó. Voltar ao lugar onde os meus sonhos tinham virado fumo.
"Eu não sei se consigo, pai."
"Não tens de ir sozinha," disse ele. "Eu vou contigo."
Na manhã seguinte, o meu pai levou-me até ao Edifício Atlântico. A área estava isolada com fita da polícia. O cheiro a queimado ainda pairava no ar, forte e nauseante.
O nosso andar, o quinto, tinha sido um dos mais atingidos. As janelas estavam partidas, as paredes enegrecidas pela fuligem.
Um bombeiro acompanhou-nos até ao que tinha sido o meu lar.
Estava tudo destruído. O sofá, a mesa de jantar, as fotografias na parede... tudo reduzido a um monte de cinzas e destroços.
Caminhei pelos restos da nossa vida, sentindo um vazio avassalador.
Foi então que vi. No meio da destruição, algo estava intacto.
A caixa de madeira que o Pedro guardava debaixo da cama. Ele sempre disse que eram recordações de infância, coisas sem importância. Eu nunca lhe tinha ligado muito.
Mas a caixa tinha sobrevivido ao fogo, embora estivesse chamuscada.
Com a ajuda do meu pai, abrimo-la.
O meu coração parou.
Lá dentro não havia soldadinhos de chumbo ou cromos de futebol.
Havia dezenas de fotografias. Fotografias do Pedro e da Sofia.
Eles na praia, a rir. Eles num jantar à luz das velas. Eles a abraçarem-se, a beijarem-se. Havia cartas de amor, bilhetes de cinema, uma coleção de momentos que claramente não eram de uma simples amizade.
Eram anos de um relacionamento que ele tinha escondido de mim.
O meu pai olhou para as fotografias e depois para mim, a sua cara uma máscara de fúria contida.
"Este tempo todo..." sussurrou ele. "Ele esteve a enganar-te este tempo todo."
Eu peguei numa fotografia. Nela, o Pedro e a Sofia estavam a beijar-se apaixonadamente, com a Torre Eiffel ao fundo. A data no verso era de há seis meses, quando ele me disse que tinha ido a Paris numa viagem de negócios.
O ar faltou-me nos pulmões.
A traição não tinha começado no dia do incêndio. O incêndio apenas a tinha trazido à luz.
Eu não era a namorada dele. Eu era a outra. A tola que ele mantinha por conveniência, enquanto o seu coração pertencia a outra.
Uma raiva fria e lúcida apoderou-se de mim.
Peguei na caixa.
"Pai," disse eu, a minha voz firme. "Vamos embora. Já vi tudo o que precisava de ver."