O Legado da Verdadeira Herdeira
img img O Legado da Verdadeira Herdeira img Capítulo 5 O Contrato da Aurora
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Capítulo 10 A Noiva do Silêncio img
Capítulo 11 A Voz da Verdadeira Herdeira img
Capítulo 12 A Mancha img
Capítulo 13 O Peso do Coração img
Capítulo 14 O Peso do Anel img
Capítulo 15 Sob os Olhos da Farsa img
Capítulo 16 O Suspiro img
Capítulo 17 As Sombras e o Sussurro img
Capítulo 18 A Noiva Louca img
Capítulo 19 Entre o Riso e o Suspiro img
Capítulo 20 O Murmúrio img
Capítulo 21 O Eco do Silêncio img
Capítulo 22 O Veneno e o Suspiro img
Capítulo 23 O Elo e a Ruína img
Capítulo 24 O Peso da Palavra img
Capítulo 25 O Despertar no Silêncio img
Capítulo 26 O Segredo no Quarto img
Capítulo 27 O Segredo Revelado img
Capítulo 28 O Despertar Negado img
Capítulo 29 Vozes e Provas img
Capítulo 30 O Olhar Entreaberto img
Capítulo 31 O Sussurro e o Alvoroço img
Capítulo 32 A Voz Entre as Sombras img
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Capítulo 5 O Contrato da Aurora

A manhã nasceu cinzenta, como se o céu também ponderasse sobre decisões que não podiam mais ser adiadas. Ela atravessou o hall da mansão com passos firmes, o som dos saltos marcando o compasso de um coração que já não vacilava. Sobre a mesa do escritório do pai, espalhou pastas, rascunhos e o caderno onde vinha anotando o mapa minucioso de sua nova vida: datas, nomes, rotas de fuga e de ataque. No alto da página, em traço decidido, escreveu: Blindagem Castellani.

O pai entrou sem fazer barulho, levando consigo o aroma de café recém-passado. Parou diante da filha e a observou em silêncio, como se adivinhasse que algo dentro dela havia mudado de maneira irreversível.

- Você acordou antes do sol - comentou, tentando um sorriso que não escondia a preocupação. - O que está tramando nesse exército de papéis?

Ela respirou fundo, escolhendo as palavras com a precisão de quem está prestes a assinar a paz ou declarar guerra.

- Pai, eu preciso que confie em mim... mais do que nunca. - Bateu de leve no caderno. - Existe um herdeiro que está prestes a perder tudo porque os próprios parentes estão devorando seu patrimônio. Eu quero protegê-lo. E, ao protegê-lo, proteger a nós.

Os olhos do pai se estreitaram.

- Isso tem a ver com nossas alianças de negócios?

- Tem a ver com o que somos. - Ela ergueu o rosto, a coragem erguendo junto as palavras. - E com o que podemos nos tornar.

Ele não insistiu. Apenas assentiu, como quem reconhece numa filha a chama herdada em silêncio. Ao sair, deixou a porta entreaberta, e o vento trouxe o murmúrio das árvores do jardim. Ela não perdeu tempo: convocou o advogado da família, dr. Navarro, para uma reunião discreta no final da manhã. Não haveria anúncios precipitados, tampouco confidências desnecessárias. A estratégia exigia sigilo.

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O escritório de Navarro era um aquário de vidro no centro financeiro da cidade. De lá, via-se o trânsito cor de aço e as pessoas correndo sem olhar para cima. O advogado a recebeu com as formalidades de sempre, mas bastou o primeiro minuto para perceber que não era uma consulta trivial.

- Curatela provisória, auditoria forense, bloqueio de deliberações societárias e outorga de mandato com poderes plenos - ela disse, empurrando uma pasta para o outro lado da mesa. - Preciso de tudo isso hoje.

Navarro ajeitou os óculos, surpreso, mas atento.

- A senhora está pedindo a suspensão preventiva de um conselho inteiro e o resguardo de um conglomerado que não é seu... ainda. - Girou a caneta entre os dedos. - O que lhe dá legitimidade?

Ela não desviou o olhar.

- Tenho a concordância expressa do principal interessado, ainda que ele não possa falar por si. E terei o resto por determinação judicial. - Pausou. - Vou me casar com ele.

O silêncio se alongou, pesado como chumbo. O advogado deixou a caneta repousar sobre a mesa.

- Sabe que um casamento nessa circunstância exigirá autorização judicial, parecer médico, manifestação do Ministério Público... - enumerou, metódico. - E haverá contestação da família colateral.

- Deixe que contestem. - A voz dela não falhou. - Preciso que hoje mesmo ingresse com o pedido de curatela provisória para gestão de bens, apresente laudos que comprovem a ausência de capacidade momentânea e a urgência de blindar o patrimônio. Em paralelo, quero uma medida cautelar para impedir transferências, vendas e votações que alterem a estrutura acionária. - Empurrou outra pasta. - Aqui estão relatórios que "ainda" não existem aos olhos deles: movimentações atípicas, contratos de fachada, consultorias superfaturadas. Se o senhor puxar os fios, o novelo vem inteiro.

Navarro a estudou com uma atenção nova - não a da menina da alta sociedade, mas a da mulher que já sangrou e, por isso, aprendeu a falar a língua dos lobos. Ao final, inclinou-se um pouco.

- Isso vai abalar prédios, senhorita.

- Então que tremam.

Ele recolheu as pastas.

- Providenciarei uma audiência de urgência ainda hoje. Traga a documentação pessoal, e... - hesitou - certidões negativas. E prepare-se para perguntas cruéis.

- Fui treinada nelas.

Voltou ao hospital antes do crepúsculo. As luzes do corredor formavam uma linha de estrelas artificiais até o quarto de Gael. Quando entrou, o ar estava morno e silencioso, perfumado por flores que não pediram licença para enfeitar a dor. Aproximou-se da cama com a reverência de quem se ajoelha diante de um altar que é também promessa.

- Eu disse que voltaria - sussurrou, pousando os dedos sobre a mão imóvel. - E voltei com papéis, advogados e um fogo que ninguém entende. Hoje pedi ao Estado o direito de cuidar de você. - Sorriu de leve. - Desculpe não perguntar, mas aprendi do jeito amargo que algumas decisões, para proteger, precisam ser tomadas antes do mundo descobrir o plano.

As máquinas responderam com seus bipes uniformes. No fundo, uma memória cintilou: dois adolescentes deitados na grama do orfanato, olhando o céu e nomeando constelações tortas. "Se um dia eu tiver um nome grande, vai ser para te carregar dentro dele", ele dissera, quase brincando. Agora, o nome dele pesava em placas de latão, contratos e manchetes. E ela, carregando o peso, escolhia devolvê-lo intacto ao dono.

Sentou-se e abriu o caderno. Riscar linhas, naquela altura, era como desenhar pontes sobre precipícios. Escreveu:

Etapa 1: Curatela provisória.

Etapa 2: Bloqueio societário.

Etapa 3: Holding-escudo - transferência das ações dele para um cofre fiduciário com cláusulas anti-diluição e direito de veto.

Etapa 4: Cerimônia discreta. Aliança visível, silêncio estratégico.

Parou. Apalpou, sem perceber, o lugar onde um anel deveria morar. O casamento não era romance, não ainda. Era tática, muro, guarda-chuva e espada. Era uma maneira de dizer "ninguém mais te toma".

- Você está me ouvindo? - perguntou, baixinho. - Há quem diga que as pessoas em coma sentem, lembram, viajam por dentro. Se for verdade, então me escute: vou assinar meu sobrenome no seu abismo para que não te joguem lá de novo. Quando acordar, me cobre. E, se não quiser... - tragou seco - ainda assim terá tudo de volta.

Por um segundo que ela não soube medir, a pele sob seus dedos estremeceu com um calor leve, talvez imaginação, talvez milagre cotidiano. Ela fechou os olhos, como quem faz uma prece e sela um contrato invisível.

A audiência de urgência foi marcada para a noite, na sala austera de um fórum antigo onde o som dos passos parecia ecoar séculos. Navarro aguardava com o olhar de quem conhece tempestades. Do outro lado, dois tios de Gael surgiram com ternos impecáveis e expressões de falsa generosidade.

- Boa noite, meritíssimo - cumprimentaram, untuosos, ao juiz que tomou assento. - Somos a família.

Ela não abaixou a cabeça. Ajustou o casaco, alinhou a respiração e entregou ao oficial a pasta com o pedido. Enquanto os autos passavam de mão em mão, escutou as objeções: "aproveitadora", "interesseira", "sem vínculo", "romance fantasioso". Cada palavra, uma pedra atirada para derrubar um corpo que aprendeu a ficar em pé no vento.

Quando chegou sua vez, não recitou poemas. Falou fatos.

- O paciente encontra-se incapaz de gerir os próprios bens, cercado por administradores que, nos últimos noventa dias, autorizaram saídas atípicas e contratos sem lastro econômico. - Indicou os documentos, a voz firme. - Requeiro curatela restrita aos atos de administração patrimonial, auditoria independente e suspensão temporária de deliberações que impliquem alienação de controle. Comprometo-me a prestar contas mensais ao juízo e a não realizar qualquer ato de disposição sem autorização expressa. - Pausa. - Quanto ao vínculo, apresento os registros do orfanato Santa Cecília, onde convivemos por dois anos. - As fotos em preto e branco pousaram na mesa, tímidas e irrefutáveis. Dois rostos jovens, a mesma grama, as mesmas constelações tortas.

Um dos tios riu, curto.

- Memórias de infância não dão legitimidade para tomar um império, excelência.

Ela o olhou, sem arrogância e sem medo.

- Não vim tomar. Vim guardar o que vocês estão vendendo aos pedaços.

O juiz folheou os papéis com a paciência de quem sabe que decisões erradas custam caro. Pediu o parecer do Ministério Público. O promotor, após ler os anexos, ergueu os olhos.

- Pela concessão parcial, com controle rigoroso deste juízo.

O ponteiro do relógio caminhou um minuto a mais, e o silêncio coube inteiro dentro de uma respiração. Então, o juiz falou:

- Defiro curatela provisória em favor da requerente, limitada à gestão e proteção do patrimônio do curatelado. Determino auditoria independente em caráter imediato, bloqueio de deliberações do conselho por trinta dias e vedação de transferências patrimoniais não ordinárias sem autorização judicial. Ficam as partes cientes. - Baixou a caneta, seco. - E, doutor Navarro, providencie também, se houver, o pedido de habilitação matrimonial, que será apreciado oportunamente.

O papel carimbado pousou na mesa como um selo de chumbo e luz. Os tios de Gael empalideceram sob a educação dos termômetros frios. Navarro agradeceu, contendo o brilho nos olhos. Ela apenas assentiu, como quem recebe não um troféu, mas uma responsabilidade.

Ao sair do fórum, o ar noturno pareceu novo, cortante e limpo. O telefone vibrou: mensagem do hospital - "Variação discreta nos parâmetros. Paciente estável." Sorriu sem se permitir euforia. A batalha seguia.

No carro, acendeu a luz interna e escreveu no caderno:

Conseguimos o escudo. Amanhã: comunicar discretamente aos executivos-chave, substituir os dois diretores-fantasmas, suspender contratos de fachada, travar cartões corporativos. Depois: flores no quarto dele e silêncio.

Guardou a caneta. Olhou pela janela a cidade que, tantas vezes, a deixou cair. Desta vez, seria diferente. O contrato que ela acabara de assinar com o mundo - e com a própria coragem - tinha cláusulas invisíveis, mas inquebráveis: ninguém toca no que eu jurei proteger.

E, em algum lugar entre o sono e o aço, um homem adormecido soube, sem saber, que alguém acabara de acender uma luz no corredor mais escuro de sua vida.

            
            

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