O pai entrou sem fazer barulho, levando consigo o aroma de café recém-passado. Parou diante da filha e a observou em silêncio, como se adivinhasse que algo dentro dela havia mudado de maneira irreversível.
- Você acordou antes do sol - comentou, tentando um sorriso que não escondia a preocupação. - O que está tramando nesse exército de papéis?
Ela respirou fundo, escolhendo as palavras com a precisão de quem está prestes a assinar a paz ou declarar guerra.
- Pai, eu preciso que confie em mim... mais do que nunca. - Bateu de leve no caderno. - Existe um herdeiro que está prestes a perder tudo porque os próprios parentes estão devorando seu patrimônio. Eu quero protegê-lo. E, ao protegê-lo, proteger a nós.
Os olhos do pai se estreitaram.
- Isso tem a ver com nossas alianças de negócios?
- Tem a ver com o que somos. - Ela ergueu o rosto, a coragem erguendo junto as palavras. - E com o que podemos nos tornar.
Ele não insistiu. Apenas assentiu, como quem reconhece numa filha a chama herdada em silêncio. Ao sair, deixou a porta entreaberta, e o vento trouxe o murmúrio das árvores do jardim. Ela não perdeu tempo: convocou o advogado da família, dr. Navarro, para uma reunião discreta no final da manhã. Não haveria anúncios precipitados, tampouco confidências desnecessárias. A estratégia exigia sigilo.
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O escritório de Navarro era um aquário de vidro no centro financeiro da cidade. De lá, via-se o trânsito cor de aço e as pessoas correndo sem olhar para cima. O advogado a recebeu com as formalidades de sempre, mas bastou o primeiro minuto para perceber que não era uma consulta trivial.
- Curatela provisória, auditoria forense, bloqueio de deliberações societárias e outorga de mandato com poderes plenos - ela disse, empurrando uma pasta para o outro lado da mesa. - Preciso de tudo isso hoje.
Navarro ajeitou os óculos, surpreso, mas atento.
- A senhora está pedindo a suspensão preventiva de um conselho inteiro e o resguardo de um conglomerado que não é seu... ainda. - Girou a caneta entre os dedos. - O que lhe dá legitimidade?
Ela não desviou o olhar.
- Tenho a concordância expressa do principal interessado, ainda que ele não possa falar por si. E terei o resto por determinação judicial. - Pausou. - Vou me casar com ele.
O silêncio se alongou, pesado como chumbo. O advogado deixou a caneta repousar sobre a mesa.
- Sabe que um casamento nessa circunstância exigirá autorização judicial, parecer médico, manifestação do Ministério Público... - enumerou, metódico. - E haverá contestação da família colateral.
- Deixe que contestem. - A voz dela não falhou. - Preciso que hoje mesmo ingresse com o pedido de curatela provisória para gestão de bens, apresente laudos que comprovem a ausência de capacidade momentânea e a urgência de blindar o patrimônio. Em paralelo, quero uma medida cautelar para impedir transferências, vendas e votações que alterem a estrutura acionária. - Empurrou outra pasta. - Aqui estão relatórios que "ainda" não existem aos olhos deles: movimentações atípicas, contratos de fachada, consultorias superfaturadas. Se o senhor puxar os fios, o novelo vem inteiro.
Navarro a estudou com uma atenção nova - não a da menina da alta sociedade, mas a da mulher que já sangrou e, por isso, aprendeu a falar a língua dos lobos. Ao final, inclinou-se um pouco.
- Isso vai abalar prédios, senhorita.
- Então que tremam.
Ele recolheu as pastas.
- Providenciarei uma audiência de urgência ainda hoje. Traga a documentação pessoal, e... - hesitou - certidões negativas. E prepare-se para perguntas cruéis.
- Fui treinada nelas.
Voltou ao hospital antes do crepúsculo. As luzes do corredor formavam uma linha de estrelas artificiais até o quarto de Gael. Quando entrou, o ar estava morno e silencioso, perfumado por flores que não pediram licença para enfeitar a dor. Aproximou-se da cama com a reverência de quem se ajoelha diante de um altar que é também promessa.
- Eu disse que voltaria - sussurrou, pousando os dedos sobre a mão imóvel. - E voltei com papéis, advogados e um fogo que ninguém entende. Hoje pedi ao Estado o direito de cuidar de você. - Sorriu de leve. - Desculpe não perguntar, mas aprendi do jeito amargo que algumas decisões, para proteger, precisam ser tomadas antes do mundo descobrir o plano.
As máquinas responderam com seus bipes uniformes. No fundo, uma memória cintilou: dois adolescentes deitados na grama do orfanato, olhando o céu e nomeando constelações tortas. "Se um dia eu tiver um nome grande, vai ser para te carregar dentro dele", ele dissera, quase brincando. Agora, o nome dele pesava em placas de latão, contratos e manchetes. E ela, carregando o peso, escolhia devolvê-lo intacto ao dono.
Sentou-se e abriu o caderno. Riscar linhas, naquela altura, era como desenhar pontes sobre precipícios. Escreveu:
Etapa 1: Curatela provisória.
Etapa 2: Bloqueio societário.
Etapa 3: Holding-escudo - transferência das ações dele para um cofre fiduciário com cláusulas anti-diluição e direito de veto.
Etapa 4: Cerimônia discreta. Aliança visível, silêncio estratégico.
Parou. Apalpou, sem perceber, o lugar onde um anel deveria morar. O casamento não era romance, não ainda. Era tática, muro, guarda-chuva e espada. Era uma maneira de dizer "ninguém mais te toma".
- Você está me ouvindo? - perguntou, baixinho. - Há quem diga que as pessoas em coma sentem, lembram, viajam por dentro. Se for verdade, então me escute: vou assinar meu sobrenome no seu abismo para que não te joguem lá de novo. Quando acordar, me cobre. E, se não quiser... - tragou seco - ainda assim terá tudo de volta.
Por um segundo que ela não soube medir, a pele sob seus dedos estremeceu com um calor leve, talvez imaginação, talvez milagre cotidiano. Ela fechou os olhos, como quem faz uma prece e sela um contrato invisível.
A audiência de urgência foi marcada para a noite, na sala austera de um fórum antigo onde o som dos passos parecia ecoar séculos. Navarro aguardava com o olhar de quem conhece tempestades. Do outro lado, dois tios de Gael surgiram com ternos impecáveis e expressões de falsa generosidade.
- Boa noite, meritíssimo - cumprimentaram, untuosos, ao juiz que tomou assento. - Somos a família.
Ela não abaixou a cabeça. Ajustou o casaco, alinhou a respiração e entregou ao oficial a pasta com o pedido. Enquanto os autos passavam de mão em mão, escutou as objeções: "aproveitadora", "interesseira", "sem vínculo", "romance fantasioso". Cada palavra, uma pedra atirada para derrubar um corpo que aprendeu a ficar em pé no vento.
Quando chegou sua vez, não recitou poemas. Falou fatos.
- O paciente encontra-se incapaz de gerir os próprios bens, cercado por administradores que, nos últimos noventa dias, autorizaram saídas atípicas e contratos sem lastro econômico. - Indicou os documentos, a voz firme. - Requeiro curatela restrita aos atos de administração patrimonial, auditoria independente e suspensão temporária de deliberações que impliquem alienação de controle. Comprometo-me a prestar contas mensais ao juízo e a não realizar qualquer ato de disposição sem autorização expressa. - Pausa. - Quanto ao vínculo, apresento os registros do orfanato Santa Cecília, onde convivemos por dois anos. - As fotos em preto e branco pousaram na mesa, tímidas e irrefutáveis. Dois rostos jovens, a mesma grama, as mesmas constelações tortas.
Um dos tios riu, curto.
- Memórias de infância não dão legitimidade para tomar um império, excelência.
Ela o olhou, sem arrogância e sem medo.
- Não vim tomar. Vim guardar o que vocês estão vendendo aos pedaços.
O juiz folheou os papéis com a paciência de quem sabe que decisões erradas custam caro. Pediu o parecer do Ministério Público. O promotor, após ler os anexos, ergueu os olhos.
- Pela concessão parcial, com controle rigoroso deste juízo.
O ponteiro do relógio caminhou um minuto a mais, e o silêncio coube inteiro dentro de uma respiração. Então, o juiz falou:
- Defiro curatela provisória em favor da requerente, limitada à gestão e proteção do patrimônio do curatelado. Determino auditoria independente em caráter imediato, bloqueio de deliberações do conselho por trinta dias e vedação de transferências patrimoniais não ordinárias sem autorização judicial. Ficam as partes cientes. - Baixou a caneta, seco. - E, doutor Navarro, providencie também, se houver, o pedido de habilitação matrimonial, que será apreciado oportunamente.
O papel carimbado pousou na mesa como um selo de chumbo e luz. Os tios de Gael empalideceram sob a educação dos termômetros frios. Navarro agradeceu, contendo o brilho nos olhos. Ela apenas assentiu, como quem recebe não um troféu, mas uma responsabilidade.
Ao sair do fórum, o ar noturno pareceu novo, cortante e limpo. O telefone vibrou: mensagem do hospital - "Variação discreta nos parâmetros. Paciente estável." Sorriu sem se permitir euforia. A batalha seguia.
No carro, acendeu a luz interna e escreveu no caderno:
Conseguimos o escudo. Amanhã: comunicar discretamente aos executivos-chave, substituir os dois diretores-fantasmas, suspender contratos de fachada, travar cartões corporativos. Depois: flores no quarto dele e silêncio.
Guardou a caneta. Olhou pela janela a cidade que, tantas vezes, a deixou cair. Desta vez, seria diferente. O contrato que ela acabara de assinar com o mundo - e com a própria coragem - tinha cláusulas invisíveis, mas inquebráveis: ninguém toca no que eu jurei proteger.
E, em algum lugar entre o sono e o aço, um homem adormecido soube, sem saber, que alguém acabara de acender uma luz no corredor mais escuro de sua vida.