Na mansão Castellani, Sabrina caminhava pelos corredores com passos firmes, ignorando os olhares desconfiados das empregadas e os cochichos abafados dos parentes que se reuniam em cantos escuros. Já não se permitia tremer. Cada olhar de desprezo era combustível para a chama que ardia em seu peito. Ao abrir a porta do quarto de Gael, encontrou-o do mesmo jeito: imóvel, sereno, preso ao silêncio das máquinas. Mas, para ela, havia vida em cada detalhe.
Sentou-se ao lado da cama e segurou-lhe a mão.
- O mundo inteiro pode rir de mim, Gael. - Sua voz estava baixa, mas carregada de convicção. - Que riam. Quando você acordar, verá que não restou nada deles. Só nós.
Por um instante, jurou sentir os dedos dele moverem-se sob os seus, mas talvez fosse apenas sua imaginação teimando em criar sinais. Ainda assim, esse detalhe bastou para reacender sua determinação.
Naquela tarde, reuniu-se novamente com o advogado Navarro, desta vez acompanhada de um juiz de paz e de um representante do cartório. A sala estava repleta de papéis, carimbos e olhares sérios. A decisão que tomava não era apenas simbólica: era legal, irrevogável, e arriscava transformá-la em alvo de ataques ainda mais ferozes.
- Entende bem o que está pedindo? - perguntou o juiz, os olhos fixos nela. - Um casamento com alguém em estado de coma exige justificativas sólidas.
Ela respirou fundo.
- Justificativas? - Um sorriso triste surgiu em seus lábios. - Eu as tenho em excesso. Ele não tem voz agora, mas eu vou ser essa voz. Se preciso enfrentar tribunais, colunas sociais ou a fúria dos próprios deuses, eu enfrentarei. Porque eu sei quem ele é. Sei quem sempre foi.
O silêncio da sala se fez denso. Navarro, discreto, inclinou-se para frente.
- Meritíssimo, já apresentamos registros da convivência entre ambos desde a infância. Há também a concordância da curatela e a manifestação expressa da família da requerente, que apoia a decisão.
O juiz suspirou, cético, mas assentiu.
- Muito bem. Prosseguiremos. Mas prepare-se, senhorita: haverá contestação.
- Eu já me acostumei a ser contestada. - respondeu ela.
No mesmo dia, enquanto deixava o prédio, encontrou-se com os tios de Gael. Eles a esperavam como predadores à espreita.
- Você enlouqueceu - disse Domingos, a voz carregada de fúria. - Casar-se com um homem em coma? Isso é ridículo.
Ela não parou de andar, mas suas palavras foram afiadas como navalha.
- Ridículo é roubar a herança de alguém que não pode se defender.
- Você está cavando a própria sepultura. - O outro tio, mais contido, apertou os olhos. - A sociedade não perdoa escândalos.
Ela se virou, encarando-os com a serenidade de quem já havia conhecido a morte.
- Eu já estive no fundo de uma sepultura. E garanto: lá não havia vocês para me amedrontar.
Seguiu adiante, deixando-os paralisados pela firmeza de sua resposta.
Os preparativos começaram em silêncio. Não haveria festa, nem convites espalhados, nem flores enfeitando catedrais. O casamento seria discreto, realizado apenas para selar o vínculo legal. Mas, em segredo, ela cuidava de cada detalhe como se fosse um ritual sagrado.
Na primeira noite em que entrou na capela do hospital, sozinha, ajoelhou-se diante do altar vazio. O cheiro de incenso antigo e madeira encerada a envolveu, e pela primeira vez em muito tempo deixou as lágrimas rolarem sem contenção.
- Eu não estou fazendo isso por conveniência - murmurou, olhando para as velas apagadas. - Estou fazendo porque você foi o único que se importou quando todos me abandonaram. Mesmo que tenha sido tarde demais.
Acendeu uma vela e deixou que a chama tremulasse. Era como se selasse um pacto silencioso com o destino.
Nos dias seguintes, a pressão social aumentou. As colunas sociais estampavam seu nome ao lado de termos como "aliança improvável" e "noiva insana". Jovens de famílias tradicionais cochichavam ao vê-la em eventos, e até alguns parentes distantes começaram a questionar sua sanidade. Mas ela não cedia. Cada vez que sentia o peso da dúvida, corria até o hospital e passava horas ao lado de Gael, lendo relatórios em voz alta, contando-lhe cada vitória, cada golpe frustrado dos inimigos.
- Eles pensam que você está sozinho, mas não está. - dizia, segurando sua mão. - Cada contrato que assino, cada documento que carimbo, é mais uma parede que construo ao seu redor. Até que desperte.
E, embora ele não respondesse, havia algo em seu rosto imóvel que a fazia acreditar que ouvia.
Na véspera da cerimônia, foi chamada às pressas para uma reunião do conselho. Os tios de Gael exigiam explicações, tentando atrasar o casamento.
- Isso é uma farsa - gritou Domingos, batendo na mesa. - Você está se casando apenas para controlar os bens!
Ela permaneceu sentada, calma, e respondeu:
- Sim, é para controlar os bens. Mas não para mim. Para ele. - Apontou para o retrato de Gael na parede. - O que vocês esqueceram é que este império tem dono. E eu sou apenas a guardiã até que ele desperte.
O silêncio tomou a sala. Pela primeira vez, alguns dos conselheiros desviaram os olhos dos tios, como se começassem a enxergar nela a liderança que faltava.
Na madrugada, voltou ao quarto de Gael. Sentou-se à beira da cama, segurou sua mão e apoiou a testa sobre ela.
- Amanhã seremos marido e mulher, ainda que você não saiba. - sussurrou. - Não sei se um dia vai me agradecer ou me odiar por isso. Mas não me arrependo. Eu quero estar ao seu lado, de todas as formas possíveis.
As lágrimas caíram silenciosas, molhando os lençóis. Por um instante, jurou sentir uma leve pressão em seus dedos, como se Gael, em algum lugar de seu sono profundo, tivesse ouvido e respondido.
Ela fechou os olhos e sorriu entre lágrimas.
- Amanhã, Gael. Amanhã começamos juntos.