Cada aplauso soa como uma sentença, cada olhar pesa sobre meus ombros. Meu pai, com os olhos marejados, segura meu braço com delicadeza, mas eu sei que por dentro ele sangra. Sempre fomos nós dois contra o mundo. E agora, diante de centenas de convidados, ele me entrega a outro homem. Eu deveria estar feliz, mas por que meu coração bate tão descompassado, como se pressentisse que algo sombrio está prestes a começar?
Meu pai para diante de Marlon Shert, aquele que a partir de hoje será meu marido. Sua voz embargada me parte ao meio:
- Marlon, cuide da minha princesa... ela é o meu maior amor, tudo o que tenho na vida.
Quase não respiro. A mão do meu pai se desprende da minha, e logo a de Marlon a toma para si. Quero acreditar que aquele gesto traz segurança, mas o que sinto é apenas frieza.
As palavras do juiz ecoam pelo salão, e eu respondo "SIM" com um sorriso encantado, sem imaginar que acabo de selar minha própria sentença. O que penso ser o começo de um conto de fadas se revela como o primeiro passo rumo a um abismo que ainda não enxergo. Quando o juiz anuncia que somos marido e mulher, meu coração espera um beijo apaixonado, mas Marlon apenas encosta os lábios em minha testa. Uma carícia paternal. Um gesto público de... rejeição? Humilhação?
Tento sorrir. Tento parecer feliz. Mas por dentro, a sensação de vazio me esmaga. Não significo nada para ele. Sou apenas um contrato, uma formalidade entre duas famílias. Agora sou oficialmente a senhora Shert.
Enquanto alguns convidados nos cumprimentam, outros conversam animadamente, logo o buffet é servido.
Tiramos inúmeras fotos, como se fôssemos o casal perfeito, apaixonado. Todos sorriem para nós, acreditando na mentira. E então começa a valsa dos noivos.
Marlon me conduz com leveza, quase como se flutuássemos pelo salão. Por um instante, quase me deixo iludir. Mas então percebo uma mulher me observando fixamente. Ela não sorri. Seus olhos não estão em mim, mas nele. Marlon. O jeito como ela o fuzila com o olhar me arrepia. Quem é ela? Por que tanto ódio?
Os convidados logo se juntam a nós na pista. Meu pai, para o meu alívio, até dança com sua secretária e minha amiga de balada, Lílian. É a primeira vez que vejo um sorriso em seu rosto naquela noite.
Depois de todas as formalidades, o buquê lançado, os brindes feitos, finalmente chega a hora de fugir. Marlon segura minha mão com firmeza e diz em tom baixo:
- Está na hora, precisamos fugir daqui.
A viagem até a mansão é silenciosa, quase sufocante. Cada vez que olho para Marlon, só consigo lembrar do beijo frio em minha testa. Eu me pergunto o que acontece dentro da cabeça dele, mas sua expressão é um muro intransponível. Quando o carro para, diante de uma construção imponente, iluminada por refletores e rodeada por jardins perfeitos, sinto um arrepio percorrer meu corpo. Essa será minha nova casa. A casa de um homem que acha me conhecer...
Ele abre a porta para mim e entra à frente, a postura ereta, quase militar. Eu o sigo, com o vestido volumoso arrastando pelo chão, e meu coração bate tão alto que tenho certeza de que ecoa nas paredes.
Marlon me mostra o andar superior. Abre a porta de um quarto imenso, com uma cama "king size" e um closet que parece uma loja inteira.
- Esse é o seu quarto, diz com a voz firme, quase impessoal. - O meu fica ao lado. Sinta-se à vontade.
Olho para ele, incrédula.
- Ao lado? Repito, quase rindo de nervoso. - Então, na nossa noite de núpcias, cada um no seu canto?
Ele desvia o olhar, como se não quisesse encarar a ironia.
- É o melhor. Assim... não teremos confusões.
Reviro os olhos e suspiro.
- Ótimo, mas tem um pequeno detalhe, querido marido, eu não consigo tirar esse vestido sozinha.
Vejo quando ele se amaldiçoa em alguns murmúrios, os músculos do maxilar travados, as mãos fechadas em punhos. Aproxima-se devagar, como se tocasse fogo. Seus dedos roçam minhas costas enquanto abrem o zíper lentamente. A cada centímetro que ele desce, minha pele queima sob o toque quase involuntário.
Quando o vestido desliza pelo meu corpo, percebo o quanto Marlon respira fundo, como se lutasse contra si mesmo.
Ele vira de costas rápido.
- Eu... estarei lá embaixo.
E sai quase em fuga.
Sozinha, escolho uma roupa confortável, retoco a maquiagem, solto os cabelos e desço. A mansão parece ainda maior à noite, os corredores longos e silenciosos, mas sigo o som de um copo se chocando contra a mesa. Encontro Marlon na área de lazer, sentado diante da piscina iluminada, segurando uma dose generosa de uísque.
Aproximo-me e sorrio de canto.
- Aceito uma dose.
Ele ergue os olhos para mim, visivelmente surpreso.
- Você?
- Pois é... me sirvo, levando o copo aos lábios sem medo.
- Tem muita coisa sobre mim que você ainda vai descobrir.
Ele inclina a cabeça, intrigado.
- Nunca imaginei você desse jeito.
- Eu também nunca imaginei que seria sua esposa, dou um sorriso amargo.
- A vida gosta de pregar peças.
Por alguns segundos, o silêncio paira, apenas quebrado pelo som da água na piscina. Finalmente, ele ergue o copo e diz:
- Que seja, então... brindemos ao inesperado.
- Ao inesperado, repito, brindando com ele.
O uísque desce queimando pela garganta, e talvez seja isso que eu preciso. Sinto a coragem nascer no peito.
Marlon me fita de um jeito diferente agora. Mais suave.
- Lara... eu sei que não foi o casamento dos seus sonhos, mas eu quero que saiba de uma coisa. Eu vou cuidar de você. Vou te proteger, aconteça o que acontecer.
E então ele me abraça.
Fecho os olhos, deixando aquelas palavras me envolverem. Pela primeira vez naquela noite, sinto algo próximo de conforto.
Mas então, um barulho forte quebra a calmaria. Uma voz estridente ecoa pelo espaço, carregada de veneno.
- Então é isso?!
Abro os olhos, me afasto dele e vejo a mulher do casamento. A mesma que me fuzilava com o olhar durante a valsa. Ela avança na nossa direção, o rosto deformado de raiva.
- Marlon! Grita.
- Como você pode? Eu aqui, vendo essa palhaçada... e você com essa garotinha mimada, com idade para ser sua filha!
Meu coração dispara. Fico paralisada, mas quando ela vira para mim e me lança palavras cruéis, algo em mim explode. Não penso.
- ELE NÃO É MEU PAI!!!
- Cala essa boca!
Avanço contra ela. A raiva toma conta. Xingo de volta, ergo a mão e acerto um tapa estalado em seu rosto. O impacto a desequilibra, e em questão de segundos ela cai direto na piscina, a água transbordando ao redor.
Ofegante, sinto meu peito arder. A cena parece em câmera lenta. Ela emerge, molhada, gritando e me olhando com ódio mortal. Marlon permanece em silêncio, entre a surpresa e a fúria, e percebo que algo está muito, muito errado.
Afinal, quem é aquela mulher? Por que ela invade a nossa noite?