Capítulo 2 No.2

O som do carimbo a bater no papel do Registo Civil soou como um tiro de misericórdia.

O funcionário público olhou para o casal ímpar à sua frente com estranheza. A mulher ainda vestia um vestido de noiva de trinta mil dólares, agora com a bainha suja de poeira, e o homem na cadeira de rodas exalava uma aura de autoridade que não condizia com a sua suposta invalidez.

- Assine aqui, Sr. Sterling - disse o funcionário.

Victor pegou na caneta. A sua caligrafia era agressiva, pontiaguda, ocupando mais espaço do que o necessário. Audrey observou a mão dele. Era uma mão grande, com veias salientes e dedos longos. Não parecia a mão de um homem fraco.

Quando chegou a vez de Audrey, a sua mão tremia tanto que a assinatura saiu quase ilegível. A adrenalina do momento na igreja estava a dissipar-se, deixando para trás um vazio frio e o terror do que ela acabara de fazer. Ela acabara de se casar com um estranho.

- Feito - disse Victor, sem emoção. Ele nem olhou para ela. - Vamos.

Eles saíram para o sol da tarde. O motorista de Victor, um homem de meia-idade com cabelos grisalhos chamado Bruno, abriu a porta de trás de um Mercedes preto antigo. Era um modelo clássico, quadrado, de uma era passada, com a pintura bem cuidada mas denunciando a idade.

Audrey viu Bruno ajudar Victor a transferir-se da cadeira para o banco do carro. Victor fez uma careta de dor, os músculos do pescoço tensos, enquanto arrastava as pernas "inúteis" para dentro.

Audrey sentiu uma pontada de culpa. Ele sofre, pensou ela. E eu usei-o.

Dentro do carro, o silêncio era espesso. O interior cheirava a couro velho e nostalgia. O carro deslizou pelas ruas, o motor ruidoso contrastando com os veículos modernos ao redor.

Victor quebrou o silêncio sem olhar para ela, mantendo os olhos na janela.

- Não esperes luxo, Audrey. Ou aceitação.

- Eu sei - disse ela, abraçando os próprios braços. - Ouvi dizer que a tua família cortou o teu acesso ao fundo fiduciário.

Victor soltou uma risada seca, sem humor.

- Cortaram tudo. Este carro e a mansão são heranças da minha mãe, protegidos por cláusulas antigas que impedem a venda, mas não geram dinheiro. Bruno trabalha por lealdade à memória dela, porque eu não tenho como lhe pagar um salário. És a senhora de uma ruína.

Audrey olhou para o perfil dele. A mandíbula tensa, a cicatriz pequena perto da orelha. A realidade da situação financeira dele parecia palpável naquele carro antigo.

- Eu não casei contigo pelo dinheiro, Victor. Eu trabalho. Nós vamos dar um jeito.

Ela estendeu a mão e tocou levemente no dorso da mão dele, um gesto instintivo de conforto.

Victor retirou a mão bruscamente, como se ela fosse feita de fogo. Ele virou-se para ela, os olhos negros faiscando com uma hostilidade repentina.

- Regra número um: não me toques com essa piedade nojenta.

Audrey recolheu a mão, assustada com a violência verbal.

- Desculpa.

O carro atravessou os portões de ferro forjado da Mansão Sterling. Era uma estrutura imponente de pedra cinzenta, com gárgulas nos beirais e hera a subir pelas paredes. Parecia uma casa saída de um romance gótico, bela mas triste, e estranhamente vazia.

Higgins, o mordomo, esperava na porta. Ele era um homem idoso, com postura militar e um rosto que parecia talhado em granito.

- Bem-vindo a casa, Sr. Sterling - disse Higgins, sem demonstrar surpresa ao ver a noiva. - Devo preparar o quarto de hóspedes para a senhora?

Audrey suspirou de alívio internamente. A última coisa que ela queria era partilhar uma cama com este homem volátil.

Victor percebeu o alívio dela. Os olhos dele estreitaram-se. Ele estava a testá-la desde o momento na igreja. Queria saber se ela era apenas mais uma oportunista que fugiria ao primeiro sinal de dificuldade ou intimidade com um "inválido".

- Não - disse Victor, a voz cortante. - Leva as coisas dela para o quarto principal.

Os olhos de Audrey arregalaram-se. O coração dela começou a bater contra as costelas como um pássaro preso.

- Victor... - ela começou.

- Somos casados, não somos? - Victor desafiou-a, um sorriso cruel a brincar nos lábios. - Ou o contrato era apenas para as câmaras?

Higgins piscou, a única quebra na sua máscara profissional, mas assentiu.

- Como desejar, senhor.

Eles entraram no hall. Era frio, mal iluminado por um lustre de cristal coberto de pó. Um enorme retrato da família Sterling dominava a escadaria. Mostrava o pai de Victor, a madrasta Eleanor, o meio-irmão Julian, e Victor ao fundo, quase nas sombras, com uma expressão sombria.

- Tens olhos tristes na foto - comentou Audrey, tentando desviar o foco do pânico de dormir com ele.

Victor travou a mandíbula. Ela via demasiado.

O telemóvel de Audrey, que ela segurava com força na mão, começou a vibrar. O nome "Blake" apareceu no ecrã.

Ela olhou para o aparelho, sentindo a náusea voltar.

- Não vais atender? - perguntou Victor, observando-a como um falcão.

Audrey recusou a chamada e desligou o aparelho completamente.

- Não há nada para dizer.

- Ótimo - Victor fez sinal para Higgins empurrar a cadeira. - Bem-vinda ao inferno, Sra. Sterling.

            
            

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