*Olha para ela. A rainha de gelo. Acha que é dona dele.* O pensamento não era meu, mas eu podia praticamente ouvi-lo irradiando dela.
Dante agarrou o volante com tanta força que o couro gemeu sob seus nós dos dedos.
"Ela não tem para onde ir, Helena. Os russos incendiaram o prédio dela."
"Então a coloque em um hotel", contestei, minha paciência se esgotando. "O Fasano. O Emiliano. Somos donos de metade da cidade, Dante. Por que ela precisa estar em nosso santuário?"
"Porque ela é um alvo", disse Dante, sua voz caindo para um registro que vibrava com autoridade sombria. "O marido dela morreu por esta família. Eu devo proteção a ela."
*Eu prometi a ele. Em seu leito de morte, eu prometi que cuidaria dela.*
O voto não dito pairava pesado no ar, carregado de uma culpa que tinha gosto de cinzas.
Não era amor. Ainda não. Era honra.
Mas honra era um terreno escorregadio quando uma mulher como Sofia estava envolvida.
"Existem apartamentos de segurança", insisti. "Apartamentos que mantemos fora dos registros."
Dante me lançou um olhar, sua irritação aguda.
"Eles são frios. Vazios. Ela está de luto."
"E eu sou sua esposa", eu disse, virando-me no assento para encará-lo completamente. "Você acha apropriado ter outra mulher dormindo no corredor do quarto onde dormimos?"
Dante não respondeu.
Ele não precisava. Seu silêncio era um veredito ensurdecedor.
"Tudo bem", eu disse, cortando a palavra. "Se não um hotel, então o antigo apartamento da Clara. Está mobiliado. É seguro. Fica em um prédio cheio de nossos soldados."
Dante franziu a testa, a confusão cintilando em suas feições. "Clara?"
"A esposa do Lucas", eu disse. "Ela se mudou na semana passada. Está com a irmã."
Observei a surpresa se registrar em seus olhos. Ele não sabia.
Ele não prestava atenção às tragédias silenciosas das mulheres na organização. Éramos meramente um ruído de fundo para sua sinfonia de violência.
"Ligue para ela", Dante ordenou.
Peguei meu celular e disquei para Clara. Ela atendeu no segundo toque, sua voz soando fina, desgastada.
"Helena?"
"Preciso de um favor", eu disse. "Seu apartamento ainda está vazio?"
"Sim", disse Clara. "Por quê?"
"Dante precisa de um lugar seguro para uma... convidada. Uma viúva."
Houve uma pausa, pesada de compreensão.
"É a Sofia?", perguntou Clara.
Eu pisquei. "Como você sabia?"
"As notícias correm", disse Clara secamente. "E o Lucas mencionou que o Dante estava... distraído ultimamente."
Meu estômago se contorceu em um nó. Até os soldados sabiam.
"Podemos usá-lo?", perguntei, forçando minha voz a permanecer neutra.
"Pegue as chaves", disse Clara. "Não vou voltar para lá. Muitos fantasmas."
"Onde você está?"
"Estou na padaria 24 horas na Paulista. Venha buscá-las."
Dirigimos até a padaria. Dante ficou no carro com Sofia. Claro que ficou.
Entrei no estabelecimento encharcado de neon, o ar cheirando a café velho e arrependimento.
Clara estava sentada em uma cabine nos fundos, encarando uma xícara de café preto como se contivesse os segredos do universo.
Ela parecia não dormir há dias. Havia um hematoma em seu pulso, desbotando para um amarelo doentio.
Ela me viu olhando e puxou a manga bruscamente para baixo.
"Aqui", disse ela, deslizando um conjunto de chaves pela mesa de fórmica.
"Obrigada", eu disse.
Clara olhou para mim, seus olhos escuros e fundos.
"Tenha cuidado, Helena", ela sussurrou.
"Com a Sofia?"
"Com o Dante", disse ela. "Esses homens... eles não nos veem. Eles só veem o que podemos fazer por eles. Ou o que representamos."
Ela se inclinou para mais perto, sua voz caindo para um murmúrio conspiratório. "Se você tiver uma saída... aproveite."
Peguei as chaves, o metal frio contra minha palma. "Eu não fujo, Clara", eu disse. "Eu luto."
Clara sorriu tristemente, um fantasma de expressão. "Foi o que eu pensei também."
Voltei para o carro, as chaves cravando em minha mão.
Dante estava inclinado sobre o banco de trás, conversando com Sofia. Ele estava sorrindo.
Um sorriso pequeno e raro que suavizava as linhas duras e marmóreas de seu rosto - um sorriso que eu não via há meses.
Ele se afastou quando me viu, a máscara voltando ao lugar instantaneamente.
"Você as pegou?", ele perguntou.
Joguei as chaves em seu colo. "Ela fica lá", eu disse. "Esta noite."
Dante ligou o motor.
*Ela não tem coração. Uma princesinha mimada que nunca conheceu a perda.* O pensamento me atingiu como um tapa físico, embora ele não tivesse dito uma palavra.
Olhei pela janela, observando a cidade se transformar em rastros de luz. Ele achava que eu não tinha coração.
Ele não sabia que meu coração era a única coisa que me ancorava a esta vida miserável.
Deixamos Sofia. Ela se agarrou à mão de Dante por um momento a mais antes de sair.
"Obrigada, Dante", disse ela, sua voz tremendo perfeitamente. "Não sei o que faria sem você."
*Vou tê-lo na minha cama em um mês.* A projeção foi tão alta, tão viciosa, que quase recuei.
Dante esperou até que ela estivesse segura dentro do prédio antes de partir. O silêncio no carro era sufocante, denso de palavras não ditas.
"Você foi grosseira com ela", disse Dante finalmente.
"Eu fui prática", retruquei.
"Ela é da família", rosnou Dante. "O marido dela era um dos meus homens."
"E eu sou sua esposa!", gritei, a represa finalmente se rompendo. "Isso não significa nada para você?"
Dante pisou no freio em um sinal vermelho, o SUV parando com uma sacudida violenta.
Ele se virou para mim, seus olhos ardendo com um fogo frio.
"Casamento é um dever, Helena. É um contrato. Não confunda com um romance de banca de jornal."
*É um passivo. Uma distração que não posso me permitir.* Seus pensamentos eram claros. Brutalmente, dolorosamente claros.
Ele não via uma parceira. Ele via uma corrente.
Olhei para ele, realmente olhei para ele. O homem que eu tentei amar. O homem que eu esperava que visse além dos rumores e da fachada fria.
E percebi que Clara estava certa.
Ele não me via. E nunca veria.
Sentei-me de volta no meu assento, a luta se esvaindo de mim como água de um vaso rachado.
"Dirija", sussurrei.
Enquanto o carro avançava, minha mão foi para o meu bolso. Meus dedos roçaram a borda do meu celular.
Eu disse que não fugiria. Mas não se pode lutar uma guerra por um homem que já te entregou.
Abri o navegador e digitei duas palavras.
Rio de Janeiro.