Suas palavras desencadearam uma torrente de memórias, nítidas e dolorosas, daquele dia, dois anos atrás.
O noticiário berrava: "Bilionário da tecnologia Theo Montenegro desaparecido após acidente de escalada." O pânico me dominou. Ele estava lá fora, sozinho, ferido, em meio a uma nevasca na traiçoeira Serra da Mantiqueira. As equipes de resgate estavam com dificuldades, as condições eram severas demais. Mas eu não podia esperar. Eu conhecia seu local de escalada favorito e isolado, um lugar que ele, uma vez, em um raro momento de abertura, compartilhou comigo.
Arrumei uma pequena mochila, ignorando as ligações frenéticas de sua equipe de segurança, e dirigi pela tempestade furiosa. A neve era um cobertor espesso e implacável, engolindo as estradas, borrando as linhas entre a terra e o céu. Abandonei meu carro a quilômetros da base, calçando raquetes de neve e uma lanterna de cabeça. O vento uivava como uma alma penada, rasgando minhas roupas. Cada passo era uma batalha contra os elementos, contra o medo que roía minhas entranhas.
Eu o encontrei encolhido sob uma saliência, semiconsciente, sua perna torcida em um ângulo antinatural. Seu rosto estava pálido, os lábios azuis, seu corpo tremendo incontrolavelmente. Meu coração se partiu. Enrolei-o em meu cobertor de emergência, aquecendo suas mãos frias, murmurando palavras de conforto contra o vento. Forcei-o a comer géis de alta energia, tentei estancar o sangramento em sua perna com tiras de minhas próprias roupas. Pelo que pareceu uma eternidade, eu fui sua única defesa contra o abraço gelado da montanha.
Acenei para um helicóptero de resgate distante, agitando minha lona de emergência laranja brilhante até meus braços queimarem. Ele pousou, seus rotores levantando uma furiosa tempestade de neve. Eles levaram Theo primeiro, seu rosto ainda pálido, seus olhos mal abertos. Eu estava exausta demais, congelada demais para ir com ele. Tive que esperar pela equipe de terra, que me encontrou horas depois, meio enterrada em um monte de neve, sofrendo de hipotermia severa. Passei uma semana no hospital, meu corpo devastado pelo frio, meus pulmões ardendo, dedos das mãos e dos pés dormentes por causa das queimaduras de frio.
Quando finalmente me recuperei o suficiente para voltar para casa, mancando e frágil, Isabela já estava lá. Ela segurava a mão de Theo, sentada ao lado de sua cama, um retrato de preocupação angelical. Sua história elaborada de encontrá-lo, de seu resgate heroico, já havia sido tecida em sua consciência. Ele me olhou com olhos frios e distantes, como se eu fosse uma intrusa indesejada. Sua misofobia, já pronunciada, parecia se intensificar ao meu redor. Ele me tratava como uma portadora de doenças, uma contaminação. E Isabela, com suas unhas perfeitamente feitas e roupas impecáveis, tornou-se sua salvadora pura.
Tentei contar a ele, explicar, mas seu olhar estava vago, sua mente já decidida. A versão de Isabela era mais simples, mais limpa, talvez mais palatável. Ela era o anjo belo e imaculado. Eu era... bem, eu era apenas Laura. A esposa com quem ele se casou por negócios.
Vi o jeito que Isabela me olhou então – um sorriso malicioso e triunfante quando Theo não estava olhando. Ela sabia. Ela sabia da minha verdade e se deleitava com a ilusão dele. E eu, maltratada e quebrada, percebi que ele nunca acreditaria em mim. Ele só confiava nela.
O som do motor do carro de luxo rugindo para a vida me trouxe de volta ao presente. Theo e Isabela haviam partido. Eles me deixaram na rua, sem um tostão, sem meu próprio carro, assim como me deixaram com uma verdade fraturada e um coração partido dois anos atrás. Peguei um táxi com os últimos reais da minha bolsa, mas ele só me levou até a metade do caminho. O resto da jornada tive que andar. Meu tornozelo, ainda fraco daquela hipotermia, latejava a cada passo. A tira do meu salto alto arrebentou, me deixando mancar com um sapato só.
Quando cheguei à mansão, a fachada grandiosa parecia zombar de mim. Meus dedos se atrapalharam com a chave, o frio se infiltrando em meus ossos. A porta se abriu, revelando uma cena terrivelmente doméstica.
Isabela estava esparramada no sofá da sala, a cabeça apoiada no colo de Theo, uma delicada xícara de porcelana na mão. Seu cabelo, agora perfeitamente penteado, caía em cascata ao seu redor. Theo estava ajoelhado no chão ao lado dela, a cabeça baixa, massageando suavemente seus pés. Sua misofobia, o medo paralisante de contaminação que ditava todos os aspectos de sua vida, havia desaparecido. Por ela.
- Oh, meu pobrezinho, seus pés devem estar tão doloridos de tanto andar - ele arrulhou, a voz grossa de preocupação.
Isabela suspirou dramaticamente.
- Eles estão mesmo, Theo. Aquele chão horrível da delegacia era simplesmente... eca. E depois ter que andar até o carro!
Andar até o carro. O carro que os pegou bem na saída da delegacia. Minha visão turvou. Este era o homem que ficou a centímetros de mim em nosso casamento, incapaz de encontrar meus olhos, relutante em tocar minha mão. Este era o homem que recuou do meu toque, me considerou "impura". Este era o homem que agora tratava os pés "sujos" de outra mulher como se fossem sagrados.
Um vaso de porcelana em uma mesa de canto próxima balançou precariamente. Em meu torpor, meu cotovelo esbarrou nele. Ele caiu no chão, quebrando-se em mil pedaços, o som ecoando pelo espaço cavernoso.
A cabeça de Theo se ergueu bruscamente. Seu rosto, que estava tão suave, tão terno momentos antes, endureceu em uma máscara aterrorizante de fúria. Seus olhos, geralmente frios e distantes, agora queimavam com uma raiva gélida que eu conhecia bem.
Ele imediatamente empurrou Isabela para trás dele, protegendo-a com seu corpo como se eu fosse uma cobra venenosa.
- Laura! O que você fez? - ele rosnou, a voz um grunhido baixo. - Você está tentando machucar a Isabela?
- Não - gaguejei, minha voz mal audível. - Eu... eu não quis.
Seu olhar caiu então, não para o vaso quebrado, mas para os meus pés. Especificamente, meu único salto alto restante e meu pé descalço manchado de lama. Seu rosto se contorceu em nojo.
- Olhe para você! Você está imunda! - ele cuspiu. - Você traz sujeira para a minha casa, quebra minhas coisas, ameaça a Isabela. Saia! Saia da minha frente!
Antes que eu pudesse dizer outra palavra, dois seguranças corpulentos se materializaram das sombras. Eles agarraram meus braços, o aperto machucando, e me arrastaram em direção à porta da frente.
- Theo, espere! - Isabela gritou, a voz um lamento teatral. - Os pés dela... estão tão sujos! Por favor, não a deixe contaminar a casa!
Os olhos de Theo, desprovidos de qualquer piedade, se estreitaram.
- Levem-na para fora. E certifiquem-se de que ela não volte esta noite.
Enquanto os guardas praticamente me jogavam na entrada de pedra fria, ouvi a risadinha triunfante de Isabela de dentro.
- Oh, Theo, você é tão bom para mim. Meus pés ainda estão um pouco sujos, no entanto. Você os limpa para mim?
Pela porta aberta, vi Theo se ajoelhar novamente, a cabeça baixa em adoração, limpando os pés dela com um pano branco impecável. Ele, o homem que desprezava qualquer coisa impura, estava limpando os pés de outra mulher com uma ternura que nunca havia mostrado à sua própria esposa. Minha cabeça ficou leve, minha visão turvou. A ironia era um peso cruel e esmagador.
Fui descartada por causa de um sapato sujo. Por causa de lama nos meus pés. Enquanto Isabela, a rainha de seu coração, podia ser tão bagunceira quanto quisesse, e ele adoraria o chão que ela pisava. Foi então, deitada nas pedras frias, meu tornozelo latejando, meu coração esvaziado, que eu soube. Meu amor por Theo não estava apenas morto; estava aniquilado. Não restava nada além de poeira e ecos. E eu o enterraria para sempre.