No dia seguinte eu iria para a escola como num dia normal, como se nada estivesse acontecendo de errado na minha vida. Achava que ninguém iria notar que meu padrasto havia morrido por um bom tempo, não parecia que ele tinha muitos amigos chegados, mas era os caras do trabalho dele que me preocupavam. Eu não queria pensar em ir procurar meu pai biológico neste momento, nem o conhecia direito... Nos abandonou quando eu tinha uns seis anos. Minha mãe cuidou de mim a vida toda praticamente, só depois que veio esse doido do meu padrasto, não sei como eles se apaixonaram, porque o que ele sentia por ela com certeza não era amor.
Voltando à missão, havia decidido que no outro dia depois da escola iria passar no banco, meu padrasto tinha uns trocados lá, para atravessar Manhattan não iria ser barato. Zack concordou comigo, ele não podia fazer nada porque não tinha nenhum tostão consigo e não queria ir andando daqui até lá, ele ainda não confiava cem por cento em mim, mas era nítido que se sentia seguro comigo ainda mais depois que eu lhe disse que fui eu que o salvei do beco escuro.
Eu sentia Veneno um pouco diferente dentro de mim, como se ele estivesse ansioso com o que iria acontecer. Tudo estava muito confuso e incerto. Zack e eu conversamos um pouco, ele falando sobre a vida que ele tem lá em sua cidade, eu contando sobre minha história triste e solitária, sem mãe, sem um pai de verdade. Isso me entristecia às vezes por dentro, mas, eu não pensava em desistir de nada.
O pensamento ruim chegava às vezes, me dizendo: "Você é inútil, você é fraca, Você não serve para nada...". Não deixava isso corroer minha mente, eu sou muito mais que isso, eu sou incrível. Ainda mais que agora tinha Veneno, me sentia mais confiante. Isso parece ser esquisito, porque antes não era nada confortável ficar com essa coisa aqui dentro.
O som da campainha toca, Zack olha para mim surpreso.
- Relaxa, pedi uma pizza... - respondo.
Peguei do meu bolso quinze dólares, era o único dinheiro que havia sobreado em casa. Me levantei do sofá, comecei a caminhar até a porta. Abri a mesma. Era um carinha com um uniforme engraçado de uma pizzaria próxima daqui, o cheiro da pizza estava exalando por todos os lados, minha barriga ronca.
- São quinze dólares.
- Aqui senhor, muito obrigada. - entreguei o dinheiro para o mesmo e peguei a pizza em suas mãos, estava quentinha.
- Hmm, isso parece gostoso. - Veneno falou em minha mente, soou um pouco engraçado e eu dei um sorrisinho.
Levei a pizza até a cozinha aonde tinha uma mesa e quatro cadeiras, estava morrendo de fome e Veneno também, só não sei se ele ficaria satisfeito com alguns pedaços pequenos de pizza. Comecei a arrumar a mesa, peguei alguns guardanapos, havia um refrigerante de ontem na geladeira que também peguei para tomarmos e por fim, peguei os copos. Chamei Zack para comer, ele também devia estar com fome por causa do apagão que teve. Assim que ele chegou à cozinha, nos sentamos à mesa para começar a refeição.
A pizza estava realmente muito boa, mesmo que tudo parecia estar estranho em minha volta. Veneno dentro do meu corpo, meu padrasto morto, um garoto que agora era um pouco menos desconhecido, tudo isso rondeava minha cabeça, era inacreditável que aquilo estava acontecendo de verdade.
Só de pensar que no dia seguinte, as coisas iriam ser mais normais, me dava um alivio. Havia faltado a escola e perdi várias matérias novas, pra conseguir pegar isso tudo seria bem difícil. O fato de estar na escola com Veneno dentro da minha cabeça me assustava um pouco, não sabia o que ele poderia fazer, mesmo que fossemos um só, ele era misterioso.
Depois que Zack começou a conversar sobre a vida dele, percebi que era um garoto normal e sua família devia estar sentido sua falta. Olhei e comecei a encara-lo. Logo tive uma ideia, como eu não tinha pensado nisso antes?
- Zack, você pode usar o telefone do apartamento pra ligar pra sua família... - falei. O mesmo me encarou com uma expressão não muito boa.
- Se eu ligar pra eles agora, vão ficar querendo uma explicação pelo meu desaparecimento. - voltou a comer a pizza. - Não tenho como explicar sobre o Veneno por telefone.
- Mas pelo menos vão saber que está bem.
- Eles vão querer saber onde eu estou e arrumar um jeito de vir me pegar de volta... - Zack me olhou, meu cenho estava franzido e ele sorriu. - Relaxa, Lucy, nós vamos voltar depois de amanhã, prefiro explicar meus pais pessoalmente sobre isso. Isso tudo. - Zack coloca o dedo na minha cabeça, se referindo a Veneno.
- Ele tá muito engraçadinho pro meu gosto... - Veneno fala em tom de deboche, dá pra perceber que ele não gosta muito do Zack.
Voltamos a comer a pizza, dessa vez até o fim, o refrigerante já havia quase acabado, teria que comprar outro amanhã depois que passar no banco. Assim que terminamos de comer, Zack me ajuda a arrumar e lavar as coisas. Tudo estava em perfeita ordem, então voltamos para a sala.
Ficamos assistindo TV até chegar a hora de dormir, eu não podia ficar até muito tarde, a aula começava às sete da manhã. Indiquei o quarto do meu padrasto ou o sofá para Zack escolher onde queria dormir. Logo depois de trancar o apartamento inteiro, fui para o meu quarto e fechei a porta.
- Você poderia sair do meu corpo para que eu possa colocar o meu pijama? - perguntei abrindo o guarda-roupa. Seria muito constrangedor uma coisa dessas... E era a primeira vez que eu estava pensando sobre isso.
- Eu posso morrer se eu ficar muito tempo fora do seu corpo. - disse ele sendo dramático, sua voz cooperou muito com isso nessa hora.
- São só alguns segundos, eu prometo.
- Eu posso fechar os olhos. - continuou insistindo.
- Veneno! - gritei o repreendendo.
Eu senti algo diferente em meu corpo, como se fosse um vazio por dentro, aquilo era uma sensação bem ruim, uma coisa que nunca senti antes, uma parte de mim estava saindo, percebi que era Veneno que estava indo embora e se transformando numa gosma preta como se fosse uma grande gelatina esparramada no chão, o mesmo foi se arrastando para debaixo da cama, aquilo foi meio engraçado até, mas pensar que ele poderia morrer se eu demorasse tanto, já estava me dando medo de perde-lo.
Tento não demorar muito para trocar a roupa para não causar consequências depois. Ele foi muito corajoso em fazer isso por mim, afinal era só pra colocar o meu pijama e ele estava arriscando sua vida...
[...]
Veneno já está dentro do meu corpo novamente, não aconteceu nada de errado com ele, porque eu nem demorei tanto assim. Estava deitada na cama, olhando para o teto, onde estava colada várias estrelinhas, minha mãe adorava cantar aquela música pra mim, enquanto eu apontava para cima e ria:
"Brilha, brilha estrelinha, lá no céu pequeninha, solitária se conduz, pelo céu com tua luz."
Fecho meus olhos, está tudo escuro e em silêncio, estava esperando o sono vir, cantando a musiquinha repetidas vezes em minha mente como se fosse uma canção de ninar tocando do fundo do meu subconsciente.
- Estou ansioso para ir para o colégio amanhã. - ouço a voz de Veneno, o que me dá vontade de soca-lo. - Vai ser divertido!
- Não quero que você faça nada que me atrapalhe lá, preciso prestar atenção na aula. - respondo me virando de lado.
- Nem podemos conversar um pouquinho?
- É uma péssima ideia... Agora vê se me deixa dormir.
Alguns segundos de silêncio se passam.
- Você vai precisar de minha ajuda em algo, né? - começa Veneno novamente. Reviro os olhos.
- Não sei, você sabe sobre Física? - pergunto.
- Física? Arg, que chato... - reclama. - Lá no meu planeta era muito mais divertido.
- Sinto muito pelos cientistas... - digo com uma tristeza e abro os olhos, olho para a janela, a cortina não cobria a mesma totalmente, algumas frestas da luz da Lua entravam no quarto.
Veneno se cala totalmente, tudo fica em silêncio. Sinto como se ele estivesse meio triste em falar sobre isso, começo a achar isso muito estranho porque não havia acontecido isso antes, nunca senti o que Veneno sentia dentro de mim, era a primeira vez.
Apenas viro de frente novamente, com minhas costas no colchão macio de minha cama e fecho meus olhos, não queria continuar um assunto que ele não gostava... Sei como isso é bem ruim.
- Boa noite, pequena estrela...
"Brilha, brilha estrelinha, lá no céu, pequenininha; brilha, brilha estrelinha, lá no céu, pequenininha."