- Vitória Cardoso, hoje você se torna uma mulher. - Uma das responsáveis pelo Lar São Franscisco diz enquanto me entrega flores.
- Ai, Ciça, estou tão animada.
- Eu tenho certeza que será uma etapa linda da sua vida. - Cecília foi quem me recebeu, há 9 anos atrás, quando eu chegava no lar. Fui tirada de minha família por maus tratos. Tenho marcas na pele e na alma, de tudo que vi e passei. Mas isso nunca me abalou. Cheguei ali e todos me acolheram, não tinha uma pessoa lá dentro daquele lar que não fosse meu amigo.
- Vocês foram as melhores pessoas que apareceram em minha vida. - Abraço a mulher negra a minha frente.
- Pois eu digo, em nome de todos, que você foi a melhor pessoa que já conhecemos. - Todos aplaudem e me dão cartinhas, que significam muito mais que presentes caros. Era o nosso jeito de presentear, já que não tínhamos dinheiro.
Terminei a escola ano passado, sempre fui muito estudiosa, e o lar nos apoiava e incentivava. Lamentava não ter tido outros cursos, pois agora, eu teria de começar em qualquer emprego, já que não tinha nenhuma experiência ou curso específico. Mas não importa! Hoje minha vida começa pra valer!
Me despedi de cada um dos que ficavam. Prometemos nos reencontrar e manter contato. O coordenador me chamou.
- Então como se sente, Vih?
- Não sinto nada diferente ainda. - Sorrio animada. - Mal me contenho por essa vida que tanto falamos.
- Bem, hoje eu te digo, que está liberada de nossas asas. - Sinto um aperto no peito, em meio a alegria, e deixo algumas lágrimas caírem.
- Sentirei tanta saudade.
- Vem aqui! - Ele me abraça forte. Lembrando-me da garotinha assustada e machucada que eu era, quando cheguei ali. - Nós também sentiremos. - Ele volta para o lugar atrás de sua mesa, e mexe em uma gaveta tirando um envelope. - Todo afilhado que sai de nossa casa, ganha um valor, para iniciar a vida. - Ele me estende o envelope e pego-o, olhando dentro e contando que tem mais de mil reais.
- Mas é muito dinheiro! - Digo impressionada, e o vejo sorrir terno.
- Isso não durará dois meses pequena. Use com sabedoria.
- Sim, senhor! - Me levanto pronta para abraçá-lo novamente. Ele funga. - O que foi seu Nelson?
- Desde que você chegou, esse lar não foi mais o mesmo. Você ilumina tudo por onde passa. - Desabo, finalmente entendendo que aquilo é uma despedida.
- Eu posso vir para visitá-los, não posso? - Pergunto já sentindo saudades.
- Claro que pode, menina. - Ele me dá um tapinha na cabeça. - Agora voe nosso passarinho.
Saio com minha mochila nas costas. Contendo algumas mudas de roupas, uma manta que mantenho desde a época que fui tirada de casa. Era de minha irmãzinha, que assim como eu sofria maus tratos, mas ela não sobreviveu para contar história.
Pego um ônibus, e rumo a cidade ao lado. Era maior e mais movimentada. Me indicaram ir para lá, e encontrar um lugar para morar. Podia ser pequeno e simples. Apenas para não ficar na rua, e assim buscar um emprego. Para então, buscar me especializar em algo e me tornar uma grande mulher.
A viagem não demora mais que uma hora. Desço na rodoviária e começo andar pelas pessoas. Já está na hora do almoço. Passo em uma lancheria e peço um pastel e um suco de laranja. Depois continuo minha exploração pela cidade. Já é quase noite, quando decido buscar um lugar para ficar. E que erro! Devia ter começado mais cedo. Não há nada, tudo muito caro, ou duvidoso.
Segui caminhando, até me aproximar de uma pensão. Entrei e sorri para o rapaz da recepção.
- Olá, boa noite!
- Olá, jovem moça. - O rapaz me sorri e ele é tão bonito. Os olhos verdes parecem espelhar sua alma, bondosa e alegre.
- Vocês tem quartos disponíveis? - Questiono animada.
- Claro! - Ele mexe em seu computador. - Temos 3 disponíveis, pode escolher o que melhor lhe satisfazer, 300 reais a semana.
- Ótimo! - Quase grito. Isso era bom, não estava encontrando por menos de 700,00 e isso era um absurdo. Tiro minha mochila das costas e procuro minha bolsinha, onde guardei o dinheiro. Remexo, remexo, até que coloco a mochila no chão, e começo a tirar tudo para fora. Droga, droga, onde estava?
- Não tem dinheiro...? - O homem pergunta em um tom de voz estranho. Ergo os olhos e sinto que lágrimas querem sair.
- Eu- eu tenho... mas não estou achando. - Volto a remexer a mochila.
- Bem... se não tiver... - Olho-o esperançosa. - Pode me pagar de outra maneira...
- Que maneira? - Pergunto estranhando a cara dele.
- Ah você, sabe...
- Não sei, não! - Me levanto, fechando a minha mochila.
- Com sexo. - Ele diz descarado e ergue as sobrancelhas, enquanto eu abro a boca, é como um tapa na minha cara.
- Está louco?
- Então dá o fora! - Ele franze o cenho e grita, deixando todo aquele ar feliz e bondoso para trás, trazendo somente revolta e ódio.
Saio dali quase correndo. Ando até uma praça e procuro novamente. Não era possível! Será que eu havia sido roubada? Volto o caminho, olhando para o chão, vai que eu tivesse perdido no caminho.
Nada, em lugar nenhum, nada. O desespero toma conta de mim, sigo sem rumo, por uma estrada que daria sabe-se la Deus onde. Será que eu conseguiria voltar a pé para o lar? Já passava da meia noite. A escuridão e o medo começaram a me atingir.
Aumentei o ritmo dos passos, e quando dei por mim, estava em meio a uma rua escura, ao lado de um matagal. Eu podia sentir o perigo comigo, estava esperando um carro vir, fechar minha boca e me levar. Seria estuprada e abusada, depois seria obrigada a carregar drogas no estômago e morreria na fronteira de algum país.
Era o meu fim! Me sentei na beira da calçada e aguardei por meu destino fatídico e certo. O choro vinha como uma enxurrada de lágrimas. Estava com fome, sozinha, e com medo. Abracei meu próprio corpo e lembrei dos meus amigos do lar, de como ficariam ao saber que eu havia sido vítima das estatísticas...?
- Ei! - Levanto-me em um salto. Não posso deixar me levarem assim tão fácil, tenho que lutar!
- Eu sei karatê! - Grito para o rapaz que se aproxima.
- Calma, está tudo bem com você? - Vejo que ele carrega uma bicicleta.
- Sim, por quê?
- Porque está aos berros, as 3 da manhã na beira de uma rua escura e perigosa...? - Ele diz quase me fazendo rir da loucura em que me vejo.
- Ah! - Olho para ele, e mal enxergo o seu rosto.
- Me chamo Edgar e você? - Ele aparenta ter a minha idade, pela voz e o modo de se comportar, parece um pouco malandro também. Mas pra quem está com o pé na cova, o que custa conversar?
- Vitória.
- Bonito nome, Vitória. O que faz aqui sozinha?
Resumo a história aos berros para ele, que está sentado ao meu lado no chão agora, com uma mão em meu ombro.
- Vamos fazer o seguinte. Eu moro aqui perto, conheço pessoas que podem te ajudar.
- Sério? - Meu peito dispara.
- Sério, garota! Agora vamos, que estamos brincando com a sorte. - Diz ele olhando para os lados.
Caminho a seu lado, enquanto ele empurra a bicicleta, pouco mais de dez minutos chegamos a uma entrada, com um grande carreiro, onde casinhas se insinuam. Subimos por mais uns minutos, então tomo coragem.
- Onde estamos?
- Morro do Joca.
- Não conheço... - Penso que já ouvi falar desses morros, rola muita droga, crimes e prostituição, mas também tinham pessoas boas, que ajudavam umas as outras. Recomeço a chorar.
- O que foi Vitória? - Vejo Edgar me olhar compadecido, pelas fracas luzes das ruas e vielas.
- Só estou triste, em como o dia do meu aniversário terminou.
- Dezoitou, garota, deixa disso. Aqui é legal, logo você acha um trabalho e se recupera dessa rasteira da vida.
- Qual é Salsicha? - Dois homens armados aparecem e quase me mijo nas calças, ergo os braços e fecho os olhos.
- Não me matem por favor, eu recém fiz 18, eu preciso viver... - Não sei dizer o que disseram, mas Edgar cochichou com eles, e nos encaminharam até uma casa próxima.
Uma senhora aparentando ter um 60 anos abriu a porta, de camisola e descabelada.
- Essas horas? - Ela brada com os homens armados.
- Dona Ivone, a garota precisa de ajuda. - Sinto minhas pernas amolecerem e me prosto de joelhos, agradecendo a Deus por essa oportunidade de vida. A mulher me junta do chão e me leva para dentro da casa.
Ela me serve um chá, enquanto choro e conto partes da minha vida, que nem mesmo eu lembrava. Ela me abraça e me convence a tomar um banho. Quando saio do pequeno banheiro, ela me serve de café com leite, pão e rosquinhas doce.
- Já está amanhecendo, é melhor você descansar um pouco. Depois resolvemos, onde você pode ficar, e como fará para pagar e achar um emprego.
- Obrigada dona Ivone, a senhora e o Edgar são uns anjos mandados por Deus para me ajudar! - Me abraço a ela, enquanto ela alisa minhas costas.
- Melhor chamar ele de Salsicha.
- Salsicha? Do ScoobDoo? - A mulher ri.
- Não, porque ele amava comer salsichas. - Franzo o cenho.
- Ele me disse que se chamava Edgar.
- Tudo bem, minha jovem, agora durma um pouco.
Pego a matinha de minha irmãzinha e me encolho no sofá de dois lugares. Estava exausta mesmo. Nem devo ter demorado dois minutos, peguei no sono.