Ivone me chamou, me tirando do torpor de descanso em que me encontrava. Vou ao banheiro pensando no que ela me disse. Um homem viria falar comigo. O dono do morro. Engraçado pensar que um amontoado de terra, foi virando um bairro, e uma pessoa se denominou dono daquilo. Talvez não seja bem assim, mas eu sou leiga nesse assunto. Mas pelo pouco que sei, a vida nesses lugares não são das melhores, tem guerras entre gangues, ou sei lá o que. Já estudamos as favelas no Lar. Lavo o meu rosto e me encaro no espelho. Talvez eu precise ficar por aqui um tempo. Sem dinheiro, vai ser difícil achar um lugar para morar.
Saio do banheiro e um homem se vira em minha direção, sentado no sofá. Ele levanta-se rápido e me estende a mão.
- Joca. - Ele é o dono do morro então...
- Morro do Joca? - O morro tem o nome dele?
- O meu morro no caso.
Ele é moreno, tem os olhos escuros, e uma barba, também escura, cobrindo-lhe a face. Os cabelos pretos, ajeitados de maneira a ficarem levemente bagunçados. Vestia uma camiseta branca, e uma calça jeans. Deixando a mostra os braços, sendo um deles, totalmente coberto por tatuagens. E tinha uma pequena cicatriz na sobrancelha. Era um belo homem, mas ele ficava realmente lindo quando sorria. Os dentes tão brancos quanto flocos de neve, e retos como se fossem esculpidos.
Ele é forte, mas não como aqueles homens que fazem propagandas de academia, um forte natural. Boa, é isso. Ele é um bonito natural.
Nossa conversa é breve, ele é simpático e educado. E quando me diz que posso ficar em seu morro, e ainda me ajudará com moradia até achar um emprego, meu coração parece que vai sair pela boca. Abraço-lhe em forma de agradecimento e sinto suas mãos deslizarem em minhas costas, e o hálito quente esquentar o meu pescoço. Me afasto ainda feliz e animada.
Agradeço a Deus por essa oportunidade de vida. Nunca poderei expressar o suficiente a minha gratidão.
Dona Ivone nos chama para o almoço, e o Joca, vai com almoçar com a gente. Percebo que ele não tira os olhos de mim, e acho engraçado, afinal ele deve estar curioso sobre quem sou. No Lar todos se conheciam, e éramos como irmãos. E raramente saíamos, e quando o fazíamos, era em passeios, com os professores e cuidadores junto. Nunca me senti sozinha, ou desamparada, como nessa noite terrível. E agora com essas novas pessoas em minha vida, me ajudando, sem exigir nada em troca, me sinto feliz de novo.
- Então Joca, já passou as regras a ela? - Dona Ivone se dirige a Joca.
- Ainda não. Apenas deu tempo dela resumir sua história, e eu disse que ela poderá ficar.
- Viu só, menina. Falei para você ficar tranquila. Aqui é um bom lugar.
- Nunca serei capaz de agradecer o suficiente. - Digo me emocionando. Sinto os olhos do homem sobre mim, e fungo, segurando as lágrimas que estão querendo sair.
- O Vagner tá com peças pra alugar. - Joca fala para dona Ivone, que assente.
- São peças razoáveis, o preço é bom, e vem semi mobiliado.
- Ah, que ótimo! Se ele aceitar, que eu o pague quando arranjar um emprego, lhe serei muito grata.
- Ele já aceitou. - Joca me sorri, e me surpreendo, afinal nem o vi enviar mensagem, ou ligar para alguém. Apenas assinto e termino minha comida. Me levanto, colocando o prato na pia, e pegando a esponja e sabão para lavar a louça.
- Deixa isso, Vitória. Vá ouvir as regras. Joca não tem muito tempo. - Dona Ivone me diz baixinho, e sinto um tom de aviso em sua voz. Concordo e volto para a mesa, onde Joca ainda está sentado.
- Se quiser pode anotar. - Ele me diz e pisco algumas vezes. Seriam tantas regras assim? Dona Ivone aparece com uma folha e uma caneta.
- Obrigada. - Digo a ela, me concentro no que ele vai dizer.
1. Toque de recolher de segunda a quinta, as 22 horas. - Certo, 22 horas já estou no décimo sono.
2. Nada de som alto durante a semana. - Ok, não sou de ouvir música alta.
3. Não pode trazer desconhecidos sem avisar os soldados, ou mandam bala. - Meu Deus, me proteja.
4. Nada de comentar o que acontece no morro. O que acontece no morro, fica no morro. - Fecho minha boca, e jogo a chave fora.
5. Proibido roubar aqui dentro. - De boa...
6,7,8,9,10...
- Fechou! - Ele diz, e eu franzo o cenho.
- Se a namorada de um traficante trai ele, vocês raspam a cabeça dela? - Questiono incrédula.
- São as regras.
- E se ele que trai? - Pergunto curiosa, e ele sorri, mas já nem acho mais tão bonito, que regras mais descabidas!
- Temos passe livre gatinha. - Faço uma cara feia, sem notar, até perceber ele sério me encarando.
- O-obrigada. - Consigo dizer, agora um pouco mais ciente do lugar em que estou.
- Não há de que, e não esqueça que amanhã tem baile. - Ele pisca para mim, mas me mantenho séria, ainda pensando em como vou sobreviver por aqui.
- Tá, mas quando eu posso me mudar? - Digo confusa. Afinal só um monte de regras, não me ajuda.
- Vou acertar as coisa com o V13 e depois te busco.
- V13? - Pensei ter ouvido Vagner, mais cedo.
- É! V13. - Ele me repete com as sobrancelhas erguidas, e estremeço.
- Ok. Obrigada. - Agradeço novamente e sorrio forçadamente. Ele se aproxima, enquanto eu fico colada no chão. Me da um beijo na bochecha, e foca os olhos escuros nos meus.
- Até mais tarde, Vitória.
- Até... - Consigo responder, sentindo um frio estranho subir e descer na minha barriga. Assim que ele sai consigo respirar aliviada.
- Não precisa ter medo. Ele é intimidador, mas é gente boa. - Ouço dona Ivone dizer e vou até ela.
- A senhora disse que aqui é bom... não é muito perigoso? - Ela maneia a cabeça.
- Olha, desde que Joca assumiu está tranquilo. Ele não procura guerra com outras facções, ou morros. Administra aqui, mantém seu território, e é isso. Mas já foi diferente. Teve épocas que era dia e noite tiroteio.
- Meu Deus! Que horror. - Que medo! Onde vim me enfiar?!
- É, era horrível mesmo. Agora os problemas que temos, é educar as crianças para não quererem seguir esse caminho de tráfico. Às vezes falta de água, e de luz.
- Menos mal... - Digo, pensando que tenho que buscar um emprego, para conseguir sobreviver por aqui... ou em qualquer lugar...