Chego em frente ao barraco de dona Ivone e bato na porta, não espero nem dois minutos ela surge.
- E aí, ... - Mal começo a falar a mulher me interrompe, me pedindo silêncio.
- Não grita! Acabei de fazer a menina dormir! - Ela me diz fazendo uma cara feia. Espio para dentro da casa, e ela me dá espaço para ver. Vejo uma garota deitada, encolhida em seu pequeno sofá.
- Cobriu a menina nesse calorão? - Pergunto vendo-a coberta com uma mantinha, aparentemente de criança.
- Ela mesma que se cobriu. - Dona Ivone me diz, olhando com ternura para a garota.
- Descobriu quem é ela? - Pergunto desviando o olhar.
- Se chama, Vitória. - A mulher suspira compadecida, e sei que é mais uma com a vida ferrada. - Cresceu em um lar para crianças retiradas dos pais, ou órfãos. Ela chegou lá com 7 anos, tirada dos pais, por maus tratos.
- Eita...
- Ontem foi o aniversário de 18 anos dela. Foi roubada, não tinha para onde ir, e Salsicha a encontrou chorando na beira da estrada, ali perto do matão.
- Situação complicada. - Coço a nuca. - Vou fazer uns corre, antes do almoço, lá pelo meio dia, venho falar com ela.
- Está bem, a chamo um pouco antes, para te esperar.
- Fechou, obrigado, dona Ivone.
- Juízo, meu filho. - A senhora de por volta dos 60 anos me diz, dando um tapinha em meu ombro. Aceno e saio.
- Gurizada, tenho que checar umas mercadorias. Vou pegar minha moto, me sigam! - Os caras concordam e seguimos para o nosso trabalho de todo dia.
Somos bem divididos e organizados aqui. Eu sou o "Dono" mas também gosto de estar por dentro de tudo, sou considerado o gerente geral também, administro o tráfico geral, de drogas, sendo as principais, cocaína e maconha, e armas. Também temos um esquema com roubo de carros. Mas só de luxo. Não roubamos de pobres. Somos estilo Robin Hood, sem a parte de dar aos pobre. Até dividimos um pouco, ajudamos aqui e ali, mas sabem como é, não dá pra dar demais, ou ficam mal acostumados.
Caco, é o gerente do Branco, responsável apenas pela parte do tráfico de cocaína no morro. Cereja, é o gerente do Preto, responsável pelo tráfico de maconha no morro.
Jacu é o responsável pelo armamento do morro, é tipo um subgerente. É meu de confiança.
Como soldados temos vários. Todos estão sempre bem armados, e instruídos a se manter atentos. Eles são quem dão o sangue se necessário por todos nós. Faço o que posso pelos meus soldados. Só admito acima de 18 anos. Não pego criança. Primeiro por respeito aos pais, que desejam que os filhos menores ainda tenham uma chance de vida melhor, depois porque são distraídos e sem preparo. Depois dos 18, brotou aqui, treinamos e botamos pra dentro. Quanto mais melhor!
O Clau, é o vapor, vende drogas aqui dentro da boca. Junão, é o avião, vende para quem vem comprar de fora.
Olheiros temos vários também, fazemos revezamento, e são os que vigiam as entradas principais do morro, e avisam à toda rede, por meio de rádio comunicador, se tem polícia ou inimigos chegando. E os empacotadores ou enroladores, são os responsáveis por embalar as drogas.
Tenho um contador direto que trabalha comigo, porque se não, não dou conta sozinho, é o Roberto. Ele não usa codinome, e nem mora no morro. Mas confio em seu trabalho e índole. Ele gera as planilhas e pagamentos, claro que nada sem antes passar por mim.
A grana varia de semana pra semana, mas difícil acontecer de receber menos de 50 mil semanais. Pagamos os caras, o que não chega a metade disso, e o resto é meu. Eu poderia facilmente sai daqui e viver de luxo, só comandando. Mas eu gosto da adrenalina. Gosto de ver o medo nos olhos dos outros quando me veem, do respeito que demonstram. Fora, que daqui consigo ajudar os mais necessitados. Não me considero bandido, talvez um anti-herói. Aqui a vida é o que é. Alguém precisa manter a casa de pé, e segurar as pontas. E eu faço isso com maestria. Assim giro a renda da favela, e ninguém aqui passa fome. Pelo menos isso, consigo garantir!
- E aí, Gardene!
- E aí, Joca! - Gardene parece que está sempre de mau humor.
- O que tem pra mim hoje?
- Primeira qualidade, chegou essa madruga... - Ele abre as malas que estão a seus pés.
- De onde veio?
- Bolívia.
- Hummm. - Faço sinal para um dos meus, que passa o dedo e lambe o pó.
- Dos bons.
- Fechou, então! Faz a nota e te mando o pix. - Sinalizo para o Caco, que finaliza a compra. Saio da sala de serviço, e subo na minha moto, Yamaha R6, black, não sou de ferro também, né, preciso de um luxo.
Mantenho uma sala só para recebimentos, depois passam para o interior do morro, nas salas mais acima. Assim ninguém, além de quem trabalha comigo diretamente, sabe onde estão as armas, e drogas.
Subo para o meu barraco e Juliana, minha empregada, já está ajeitando a casa.
- O café tá feito?
- Sim, na cozinha, com pão fresquinho. - Ela me responde com um sorriso simples no rosto. Contratei Juliana já faz 3 anos. É uma mulher vivida, com seus 35 anos, já fez de tudo. Desde ser estagiária em loja, até prostituta. A vida não foi fácil com ela.
Ela limpa aqui em casa, e finge que não vê nada do que acontece. Pago um bom salário, e ela consegue manter a educação e boa vida de seus 4 filhos, mesmo sem um pai para eles.
- Valeu! - Faço um certo para ela e vou para a cozinha comer. Aqui em casa mesmo, pouca coisa acontece. Mantenho a sala de serviço para recebimentos, mais algumas salas escondidas e disfarçadas pelo morro, onde embalam, retiram, enviam e por aí vai. Aqui mesmo, só ficam os meus soldados confiáveis, para conversas e festinhas particulares. Entre eles o D2, o V13, o J1, e o P9. De resto, os caras que separam os soldados e organizam as escalas. E os subgerentes, Caco, Cereja e Jacu. O Clau e o Junão também vem, mas, mais por amizade. Roberto vem só uma vez por semana, e olhe lá. Por vezes trabalha Home Oficce. É chique o homem! Nunca participa de nossas festas ou bailes.
- Fiquei sabendo que chegou uma garota nova no morro. - Juliana chama minha atenção.
- Ahaam. - Respondo já pegando um pão e mordendo.
- Disseram que é muito bonita. - Paro de mastigar e a encaro de cenho franzido. Juliana nunca é muito de papo, estranho seu interesse.
- E daí? - Vejo-a engolindo seco. - Qual foi, Ju? - Largo minha xícara de café preto, forte e amargo, como eu gosto, e fixo meus olhos nela.
- Sabe o que é...
- Hummm? - Já começo a me irritar com essa mulher!
- P9 disse que quase babou quando viu ela.
- Qual é Juliana? - Falo sério com ela. - Onde quer chegar?
- Tem baile amanhã, os caras vão cair matando em cima dela...
- E eu com isso? - Pego meu café de novo, antes que esfrie, porque pelo jeito, Juliana bateu com a cabeça hoje de manhã.
- Salsicha falou que ela só tem 18, saiu de um orfanato.
- Mas caramba, hein! Tão fofoqueiros nesse morro. Pelo amor de Deus! nem falei com a garota, nem sei se ela ficará aqui, e já tão fazendo o mapa astral da guria.
- Eu só queria pedir que ficasse de olho. - Franzo o cenho.
- Na menina?
- É, e nesses seus caras aí... - Ela vira o rosto falando.
- Vomita logo, já to pensando em te demitir Juliana. - Ele me olha de olhos arregalados. E fico feliz, afinal ainda tenho respeito nessa joça.
- Ouvi eles falando em boa noite cinderela. Um de cada vez, virar ela do avesso... - Reviro os olhos, mas sei que Juliana sofreu muito na vida de prostituição, e hoje tenta salvar quem pode desse caminho.
- Pode deixar, ficarei de olho e avisarei ela, para não aceitar bebida, nem comida de ninguém.
- Obrigada, chefe. - Ela sorri e volta ao seu habitual silêncio e serviço. Balanço a cabeça. Ela podia ter me economizado, falando o que queria de uma vez.
Termino o café, e desço o morro, chegando 11:30 na casa de dona Ivone. As redondezas estavam calmas, está até me sobrando tempo, para chegar adiantado. Bato na porta e dona Ivone me olha atravessado.
- Vai dizer que ainda está dormindo?
- Não, está no banheiro, acabei de acordá-la. Você disse que viria meio dia.
- Pois é, mas já cheguei. - Entro no barraco dela e me jogo no sofá. - Inclusive... - Fungo o aroma de suas panelas no fogão. - Vou ficar para almoçar. - Vejo a senhora sorrir de lado. Ela me amava, eu sabia disso.
- Vou cuidar das panelas, então. Seja simpático! - Mando um beijo para ela, e ela sai feliz. Uma das poucas que não tem medo de mim, e me trata como um filho. Ouço o barulho da porta do banheiro ranger e viro-me de costas, pra direção de onde viria a garota e que merda... merda... merda... merda...
Ela é linda, bem mais que linda, maravilhosa, deusa, gostosa... Deve ter 1,60 de altura, cabelos longos e ondulados, até quase a cintura, o corpo esculpido a mão, porque não era possível! Os seios empinados, a cintura mais fina e as pernas torneadas.
Vestia um vestido rosa, que ia até o meio da coxa. Mas o que mais me destruiu foram os olhos. Grandes, tristes e amendoados. Lembravam o mel escorrendo de um favo, brilhante e jovial. Os cílios longos davam um ar de inocência a ela, que explicava o morro estar em alvoroço com a sua chegada.
- Joca! - Levanto-me e estendo a mão para a garota assustada.
- Morro do Joca? - Ela fala com a voz baixa e suave, e meu pau acorda, ao ouvi-la dizer meu nome.
- Meu morro no caso. - Dou o meu melhor sorriso, e ela da um sorriso sem mostrar os dentes, e aparecem duas covinhas em suas bochechas. E por um milagre consigo engolir minha própria saliva, prestes a escorrer pelos cantos da boca.
- Vitória. - Ela pega a minha mão que estava estendida a ela.
- Bonito nome.
- Obrigada. - Ela fica me olhando e demoro para reagir.
- Bem, sente-se. - Indico o sofá, onde estava agora pouco. - Precisamos conversar um pouco. - Vejo-a caminhar encolhida até o sofá e sentar-se. Sento-me a seu lado e a encaro. - O que faz aqui? - Vejo os olhos dela marejarem, mas ela engole o choro.
- Eu saí do Lar São Francisco, ontem pela manhã.
- Longe pra caramba! - Deixo escapar.
- Vim de ônibus, até a cidade, e acho que fui roubada, então comecei a andar, e quando me dei conta, estava no meio do nada...
- E Salsicha te encontrou... - Completo sabendo bastante da história já.
- É... - Ela baixa os olhos. - Não tenho para onde ir. Não queria ter de voltar para o Lar. Eles confiaram em mim, me deram dinheiro, e... - Vejo-a engolir o choro novamente.
- Tudo bem, pode ficar aqui no morro. Vou te passar as regras, e consigo um mês fiado em um barraco para você até encontrar emprego.
- Sério, Joca? - Ela me pergunta, e sinto que vou mijar nas calças.
- Seríssimo. - Digo com os olhos grudado nos dela. E para minha imensa surpresa, ela pula em cima de mim. Em um abraço de urso. Daqueles que quase sufocam. Seguro em sua cintura e meu corpo estremece. Essa garota vai ter que ser minha!
Explano minhas mãos em suas costas e a aperto em meus braços, afundando o rosto em seu pescoço, sentindo o cheiro suave de seus cabelos.
- Obrigada! - Ela se afasta, com um enorme sorriso nos lábios. E que lábios, meus amigos... que lábios! As covinhas no sorriso eram um chame extra. - Ai, meu Deuszinho, obrigada! - Ela junta as mãos e olha para cima. - Achei que ontem mesmo seria o meu fim. - Solto uma risada.
- Você ainda tem muito para viver, Vitória. - Digo seu nome de maneira sensual, e vejo os olhos dela brilharem. - Amanhã tem baile aqui no morro. Te convido a ficar no camarote comigo, para conhecer o pessoal.
- Baile.. - Ela morde o lábio inferior, e por Deus, eu vou agarrar essa mulher! - Daqueles em que as mulheres usam mini saias, e rola drogas e bebidas, e todo tipo de baixarias? - Mordo a língua para não rir.
- Mais ou menos por aí.
- Humm... - Ela parece pensar. - Se o seu Nelson, ou Cecília descobrirem, me matam! - Não aguento e solto uma risada, chamando sua atenção.
- Agora você é adulta, ninguém te proíbe de nada gata.
- É, mas minha mãe era usuária de drogas, meu pai alcóolatra, a chance de eu ser viciada em algo é grande, então nunca vou me arriscar a usar nada. - Ela me diz como se estivesse oferecendo a ela.
- Eu também não uso. Nunca. - Digo sério, fisgado por seus olhos grandes.
- Então ok. Eu vou. - Ela sorri, e se nesse momento, se Ivone não entrasse nos chamando para o almoço, eu a teria agarrado!