- Que situação, minha filha. - A mulher se chama Lídia, é uma mulher baixa, cabelos curtos, escuros, a pele queimada do sol, e enrugada, dando-lhe um ar de mais velha do que realmente era. - Eu tenho uma filha, pouca coisa mais velha que você, Patrícia. - Vejo Dona Ivone erguer as sobrancelhas, como se a garota não fosse boa. - Ela cresceu aqui, com a piázada, mas se envolveu nas drogas. - A mulher balança a cabeça. - Ela está tentando sair agora, mas é complicado.
- Eu imagino... - Digo sentindo a tristeza na voz dela.
- Bem, sabendo mais um pouco de você, e da sua situação, eu posso lhe oferecer uma faxina, como serviço. - Pulo do sofá, era uma ótima oportunidade de começar. Eu sou boa em limpezas. No lar desde cedo aprendemos a limpar, lustrar, lavar, passar, cozinhar, eu faço de tudo!
- Claro! Posso começar agora mesmo, se a senhora quiser. - A senhora dá um leve sorriso.
- Bem, hoje eu poderia lhe dar apenas uns 20 reais e alguns alimentos.
- Está ótimo! Eu não tenho nada! - Olho para dona Ivone que tem um sorriso terno no rosto.
- Então tá, com o tempo pode arrumar outras faxinas e depois um emprego fixo. - Lídia diz, levantando-se também.
Agradeço mais uma vez dona Ivone, e digo que depois pego minha mochila. Subimos um pouco o morro. Pouca coisa, e logo chegamos ao que eles chamam de barraco. Mas prefiro dizer a casa dela, ou o seu lar.
As ruas não eram asfaltadas, nem mesmo tinham paralelepípedos. Era tudo chão de terra batida, ou saibro. Dava para ver no chão, os carreiros formados pelas águas das chuvas que desciam o morro, e alguns canos aparentes, inclusive quebrados.
A casa dela fica acima de mais duas, tendo que subir uma escada estreita e cumprida. Subo atrás dela, e entramos. Sua casa é ainda menor do que a de Dona Ivone. Toda de tijolo a mostra, sem reboco ou pintura. O teto não possuía forro, apenas as telhas e as vigas com as fiações amostra. Sinto uma tristeza me tomar, lembrando dos meus tempos de criança.
Eu nasci em uma família de classe média. Tínhamos uma boa casa, eu ia em uma escolinha boa, e tudo ia bem. Pelo menos aos meus olhos infantis. Meu pai, sempre estava bêbado, mas para o eu criança isso não tinha importância. Ele sempre trazia balas no final do dia. Minha mãe não era a mais amorosa, mas era legal. Fazia trancinhas nos meus cabelos, e me vestia com roupas da Barbie. Quando eu estava com 4 anos, ela engravidou da minha irmãzinha. A gravidez foi conturbada, lembro de ouvir os gritos da minha mãe com o meu pai de madrugada. Eles brigavam por tudo, e não tinha mais sorrisos dentro de casa. Quando minha irmã nasceu, deu uma calmaria, que eu pensei que minha família tinha voltado ao normal. Mas hoje, entendendo mais, sei explicar o que aconteceu, naquela época, eu só achava que todos tinham enlouquecido.
Minha mãe teve depressão pós parto. Não tinha uma rede de apoio, era ela para tudo, começou a se drogar para acalmar a mente e aguentar tudo sozinha. Meu pai, a culpava de estar distante ou o traindo. Ela berrava que a culpa era dele, que tirou ela da casa dos pais, para passar trabalho com duas crianças. E ele se afundava cada vez mais na cachaça.
Três dias depois do aniversário de 2 anos da minha irmã, as coisas pioraram. Eu nunca vou esquecer aquele dia, em que tudo começou. Minha mãe chegara drogada, eu já sabia que ela não estava bem. Peguei minha irmã que estava chorando e levei-a para a cozinha. Ela era só um bebê, estava com fome. Peguei arroz e coloquei leite, amassei e dei para a nenê, como eu costumava chamá-la. Ela se afogou, e eu me desesperei, chamei minha mãe para ajudar, e aquele dia foi a minha primeira surra.
Eu estava com 6 anos. Era pequena e fofa. Lembro que o pessoal elogiava a minha mãe, dizendo que eu era gordinha e saudável. Mas ela conseguiu me quebrar. Ela me bateu até eu desmaiar. Senti sua mão estalar no meu rosto, seguido, dos pontapés, ao me atirar no chão. Depois disso, só lembro do meu pai, cuidando de mim, e enfaixando o meu braço direito, que foi o que quebrou, porque o usei para me defender dos pontapés.
Três meses depois eu já estava bem, mas minha mãe mal olhava em meu rosto. Eu pensava que podia ser culpa, e eu tentava a abraçar, e conversar, mas ela me ignorava. Minha irmã, era tal qual como eu, fofa e saudável, ficava em casa, enquanto eu já ia para a escola. Em um dia de sol, estava calor, lembro de ter passado em uma casa com torneira e tomado um pouco de água direto no bico. Cheguei em casa faceira, mas minha surpresa e horror extrapolaram a alegria do dia. Minha irmã, atirada no sofá, com seu corpinho pequeno, cheio de hematomas e sangue no rosto. Minha mãe chorava na frente dela, e colocava gelo no rosto. Ela havia batido nela. Se descontrolou, ela dizia.
Os dias foram passando, as drogas foram dominando-a, enquanto a cachaça dominava meu pai. Estar em casa, virou sinônimo de medo. A noite eu fechava a boca da minha irmã, quando ela chorava, para não acordar eles. Isso durou meses. Eu já não era a mesma. Tinha emagrecido muito, minhas notas baixaram, e eu já não conseguia nem brincar direito pelas dores pelo corpo das surras que levava.
Uma professora muito querida, tentava conversar, mas eu nunca dizia a verdade. Tinha medo de apanhar mais, ou prenderem meus pais, que apesar dos pesares, eram meus pais, e eu os amava. Torcia para eles voltarem ao normal.
Era uma sexta-feira. Meu pai não chegou no horário de costume, minha mãe pirou. Fumava um cigarro atrás do outro, até que saiu de casa, deixando eu e minha irmã sozinhas. Brinquei e entreti minha irmã, até perto das 23 horas, então dei banho nela, e coloquei-a para dormir. Deitei com ela, dentro do berço, e fechei os olhos.
Quando eu acordei, com os gritos, pulei do berço e corri para a sala, de onde vinham. Minha mãe e meu pai se pegavam no pau. Ele batia com a cabeça dela no chão, me meti na frente, e ele começou a me bater também. Até que minha mãe gritou que ele era um corno. Então ele me soltou e a encarou com fúria. Ela riu na cara dele, e cuspiu nele. Disse que a Manu, minha irmãzinha de apenas 3 aninhos, não era filha dele. Ele passou reto por ela, e pegou uma faca. Eu não conseguia nem mesmo gritar. Ele entrou no nosso quarto, com minha mãe o segurando atrás, dizendo que era mentira. Ouvi os choros, os gritos, e depois o silêncio.
Naquele dia a loucura deles, acabou com a vida de uma criança. Da minha nenê. Eu só pude chorar, mas naquele dia, os vizinhos chamaram a polícia. Eles deviam ter feito isso muito antes, mas esperaram chegar no limite, e uma vida inocente foi ceifada. Não os culpo, mas os responsabilizo por aquilo também.
Fiquei duas semanas no hospital, até me recuperar bem, então fui levada para o Lar São Francisco. E lá foi muito melhor do que eu já tinha vivido na minha casa. Mesmo pessoas que não eram da minha família, me davam amor e carinho. E se tornaram a minha família. Daqueles que me botaram no mundo, não quero mais nem saber.
- Oi, mãe... - Saio do meu devaneio ao ouvir a voz de uma mulher. Viro-me e encontro os olhos esverdeados da moça.
- Oi filha.- A Lídia sorri, e imagino que seja Patrícia.
- Saí mais cedo do trabalho hoje. - A moça de cabelos castanhos, presos em um rabo de cavalo diz, largando uma bolsa.
- Que bom, essa é Vitória, é nova no morro. - Vejo Patrícia erguer as sobrancelhas e sorrir de lado. - Vai me ajudar com uma faxina.
- Ah tá, vou me trocar e ajudo também. - Patrícia me pareceu simpática.
Começamos a limpeza da pequena casa, e em menos de duas horas já estava tudo pronto. Lídia fez um café da tarde, com pão, chimia e margarina. Comemos enquanto eu falava um pouco da minha vida, e de como cheguei ali. Patrícia parecia comovida, colocou uma mão em cima da minha e sorriu triste.
- Vou ver se tem vaga lá no mercado, onde trabalho. E te indico.
- Sério, Patrícia! Muito obrigada.
- Pode me chamar de Pati. - A moça bonita me diz e assinto.
- Pode me chamar de Vih.
- Tá bom, Vih.
Lídia parece querer chorar nos olhando, e eu não entendo, até que Pati solta um suspiro.
- Vou te contar um pouco da nossa vida, já que você se abriu com a gente e confiou em nós. - Dou um sorriso leve e aguardo.
Elas me contam do pai de Patrícia. Ele começara com o álcool e terminara nas drogas. A mãe de Patrícia o expulsou de casa, quando ela tinha 11 anos, e o fez jurar que nunca mais voltaria, ou o entregaria para os cara, e o dono do morro. Ele havia abusado de Patrícia. Mas ela amava o pai, não queria que os traficantes matassem o pai, mesmo ele tendo a feito mal. Sua mãe o mandou embora e espalhou que ele as abandonou.
Depois dali, Patrícia se afundara em si mesma. Repetiu de ano várias vezes, até largar a escola, começou a usar maconha, e foi aumentando, e hoje estava usando crack algumas vezes. Se prostituiä em troca de drogas ou álcool. Mas ela estava querendo mudar de vida.
Hoje por exemplo, fazia dois dias que ela estava limpa. Logo após a longa e inflamada conversa, Joca gritara em frente a casa. Lídia, me arrumou uma sacola com alguns alimentos e me deu 20 reais, abracei a ambas e saí com o rosto vermelho de chorar. A vida não era fácil, em nenhum lugar.
Joca estava sendo simpático comigo. Pelo que Pati falara, ele era grosseiro e uma vez já tinha até batido nela. Isso me fazia temer um pouco por minha segurança. Ele me leva até o barraco, que eu chamarei de casa, e logo sai com o V13. Vagner, vulgo V13, sinto vontade de rir. Que palhaçada de vulgo, é essa? Nunca ouvi falar! Mas já que insistem... O V13 foi muito simpático, até me senti mais a vontade.
Olho ao redor, e a minha nova casinha é bem pequena. Parece até de boneca. Tudo de tijolo, sem reboco e sem pintura. Ao entrar na porta, estou na cozinha pequena, composta por um fogão duas bocas, uma pia, uma geladeira pequena, e um armário grudado na parede. Logo abaixo desse armário, em cima da pia, uma janela basculante, que dá vista para a parte de baixa da favela, deixando ver as outras casinhas pequenas mais a baixo.
Saindo da área "cozinha", tem um sofá rosado com bege, de dois lugares, coberto com uma manta laranja por cima, escorado na parede, e uma janela pequena de metal ao lado. Dando vista para a parede da casinha da frente, deixando um corredor estreito apenas para passar o ar. Suspiro e largo minha mochila ali e a sacola com comida. A frente duas portas estreitas. Uma delas da no meu quarto. Uma cama de solteiro de madeira, colchão fino, coberto por um lençol florido, um travesseiro e uma manta dobrada na ponta. O quarto não tinha janelas, apenas a cama, e um armário sem portas. Saio e entro no banheiro, que é minúsculo. Tem a pia, um vaso sanitário, e o chuveiro. Sem divisões ou cortinas, ou qualquer outra coisa. Mas pelo menos tem uma janelinha basculante também, ao lado do chuveiro.
Volto até a porta de entrada e vejo a chave pendurada na porta. Tranco-a e pego minha mochila, levando para o quarto, tiro as roupas que eu trouxe e coloco naquele armário sem portas, pego a única toalha que levei comigo, que era de rosto, um short, uma blusa e calcinha. Entro no banheiro e ligo o chuveiro. O dia foi quente, a noite estava amena, o ideal era tomar um banho morno, mas pelo visto o chuveiro estava queimado. Tomei um banho rápido e gelado, saí batendo o queixo daquela água.
Retiro as comidas, e vejo um quilo de arroz, feijão, farinha de trigo, um leite, ovos, café, sal e açúcar. Já dava para sobreviver alguns dias.
Respiro fundo mais uma vez. Eu me sinto perdida, mesmo com tantas pessoas boas me ajudando, ainda me sinto sozinha. Coloco dois ovos para cozinhar, em uma leiteira velha e sem alça, e me sento naquele sofá, olhando tudo a minha volta.
- É Vitória, força... você vai conseguir! - Me dou força, e penso que preciso enviar uns currículos. Mas nem telefone tenho! Droga! Vou descer amanhã na casa da dona Ivone, e perguntar se posso dar o telefone dela para recado.
Depois de cozidos, descasco os meus ovos e como-os com sal. Não sei nem as horas, porque nem relógio eu tenho, mas acho que já vou dormir. Ajeito minha cama, e vou ao banheiro escovar os dentes. A sorte que levei escova e creme dental do lar, na mochila.
Prestes a deitar, ouço uma batida na porta. Vou até lá e pergunto. - Quem é?
- Sou eu, o Edgar. - Abro a porta e sorrio para ele.
- Edgar! - Ele sorri e eu o abraço. - Aiii queria tanto te agradecer, você me salvou essa madrugada.
- Ah, menina... - Edgar me abraça apertado. - Deixa disso, só vim ver se está tudo bem, ou precisa de algo! - Hoje, mesmo sendo noite, com as luzes da casa, consigo ver mais o seu rosto. É um rapaz bonito. Mais alto que eu, magro, mas não esquelético, cabelo ajeitados para cima, sorriso branquinho, olhos esverdeados, brinco na orelha, correntinha de prata.
- Está tudo bem, Ed. Obrigada por tudo. De coração. - Sinto vontade de chorar de novo. Porque tenho certeza, que foi Deus quem enviou o Edgar.
- Para com isso! - Ele ri. - Amanhã tem baile, fiquei sabendo que você vai ir.
- É... - Sinto o meu rosto esquentar. - O dono Joca, me convidou. - Vejo Edgar segurar o riso. - Mas eu avisei, que não uso droga, nem bebo! - Digo depressa. - E nem vou colocar aquelas mini saias, que eu sei que usam, até porque nem as tenho, mas também não quero! - Edgar ri largado e bate na perna.
- Fica tranquila, eu vou estar lá também, e cuido de você. - Ele pisca pra mim e franzo o cenho.
- A Pati também vai?
- Pati?
- A filha da Lídia. - Digo explicando e Edgar me encara surpreso.
- Pati, é?
- Ela que pediu para chamá-la assim. - Explico de novo, afinal Joca fizera a mesma pergunta.
- Olha só, conquistou até a vadia master do morro. - Arregalo os olhos chocada.
- Não chama ela assim! - Edgar ri.
- É que você não a conhece ainda... ela deve tá te sondando, porque o pessoal ta alvoroçado.
- Alvoroçado porque? - Vejo que ele continua na porta e pergunto se ele quer entrar. - Ah desculpa, nem te convidei para entrar. - Abro espaço, mas ele nega com a mão.
- Não, não, está tarde, só vim dar um oi mesmo. - Ele sorri. - Nos vemos amanhã então.
- Que horas são agora? - Edgar olha no relógio de pulso dele.
- 22:35
- Uau, como passou rápido. Tô sem horas. - Digo explicando.
- Não tem relógio ou celular? - Ele me olha de cenho franzido.
- Nada, mas logo arrumo um trabalho e compro. - Vejo-o tirando o relógio do pulso.
- Pega aqui o meu.
- Não, que isso? Não precisa!
- Precisa sim, eu tenho outros em casa, e tenho celular. E outra coisa, amanhã antes do baile passo aqui e te trago um celular, consigo um usado baratinho.
- Ah Ed, não... não quero que gaste comigo.
- Deixa disso, Vih. - Ele ri. - Aqui a gente é irmão, todo mundo se ajuda. Um dia vou precisar de algo e sei que me ajudará. - Sorrio, e o abraço novamente, erguendo os pés, para passar os braços por seu pescoço e sinto as mãos dele leves na minha cintura.
- Obrigada Ed...
- Olha eu até gostei do apelido, mas na frente dos cara, me chama de Salsicha tá.
- Ah, tá, me desculpa.
- Que isso? É que eles enchem o saco com isso.
- Tá bom, obrigada.
- Boa noite. - Ele diz apertando minha bochecha e desce as escadarias da minha casinha. Fecho a porta, tranco e vou me deitar. Amanhã começo cedo a procura por algum trabalho.
Eu estava exausta, deitei na cama e dormi. Acordei no dia seguinte apenas, depois das 9 horas da manhã. Até que a cama não era tão ruim, cumpriu o seu papel. Escovo os dentes, faço um café e faço mais umas panquecas vazias para mim, com os ovos, leite e a farinha de trigo que Lídia havia me dado. Troco de roupa e saio para a rua.
O dia está quente, com um ventinho suave, que serve para desabafar um pouco o clima úmido. Caminho pelas ruas e vielas, e tem crianças para todos os lados, correndo e brincando. E cachorros também, pelo menos uns 5 a cada ruazinha. Em algumas esquinas vejo alguns homens armados, e suspeito que sejam os traficantes, ou algo de gênero, que trabalham para o tráfico. Tento não tremer ao passar por eles, de cabeça baixa. Tenho medo até de olhar no rosto deles, e quererem me matar.
Minha casinha não fica muito longe da casa da dona Ivone. A dela é bem próxima da entrada, a minha fica um pouco mais a cima. E o morro continua depois da minha casa, outra hora vou subir mais para conhecer. Chego e bato na porta dela, mas ela não me atende, tento mais algumas vezes, e acredito que ela deve ter saído. Caminho até a entrada. Passava a rua asfaltada onde Edgar me encontrou, e tinha uma ruazinha estreita, mas a entrada principal, era mais a frente de onde entramos. Uma bifurcação na faixa asfaltada, onde se dividia, em uma que ia reto para outro lugar, e uma de terra de chão batido, larga, e as casinhas começavam a se insinuar, como se estivessem uma em cima da outra. Cada uma de uma cor, ou de tijolos laranjas. Olho para cima e parece uma pintura, as casas parecem intencionalmente desproporcionais, telhas de cores diferentes, roupas estendidas em varais e antenas de televisão.
Volto lentamente olhando tudo ao redor, curisosa, presto a atenção nos bares dispostos na comunidade, na casa de xerox com lan house próxima, a uma escolinha de educação infantil... Passo da minha casa e continuo subindo o morro, vejo mais um bar, Bar do Juca, e por um momento lembro do Joca. Me arrepio. Ele é um homem muito bonito, quase sorrio sozinha pela rua, os olhos penetrantes o perfume marcante. O perfume que eu usava era Petit da Avon, por certo nem ficava na minha pele.
Depois de muito caminhar, já cansada, resolvo voltar. Mas ainda não havia visto tudo. Desço o morro devagar, pensando no homem, que me fez sentir algo diferente. Meu estômago arrepiou na mesma hora. Isso era possível? Estômago arrepiar? Acho que não! Deve ser a sede que estou, de caminhar debaixo desse sol quente.
Acho que andei demais. Tô meio perdida, dobro em algumas ruazinhas, mas parece tudo igual. Droga! Devia ter andado só reto, na mesma rua. Agora não sei mais pra que lado é minha casa. Paro em uma esquina, coloco uma mão em cima dos olhos, tampando do sol, e olho para os lados. Nesse momento uma moto para ao meu lado, me assustando. Arregalo os olhos e ofego. Não era um simples moto, era uma motona, grande, preta e lustrada, o homem em cima dela, retira o capacete, e meu coração descompassa.
- Dono Joca! - Vejo-o soltar uma gargalhada.
- Dona Vitória! - Engulo seco e forço um sorriso simpático, afinal ele me dera casa e pagara uns dias para mim. Quantos anos ele deve ter?
- Quantos anos você tem? - Vejo-o franzir o cenho, com o sorriso ainda no rosto.
- 28. - Ele passa a língua nos lábios naturalmente vermelhos, enruga a testa, e ergue uma sobrancelha, me medindo com o olhar. - Interessada? - Arregalo os olhos.
- Ah, não! - Desvio o olhar. - Eu só fiquei curiosa, porque você tem um morro só seu... sei lá... - Gaguejo, e ele ri.
- Está indo pra casa?
- Sim, mas ... - Olho para os lado. - Andei demais, e me perdi, eu acho...
- Acha? - Ele novamente gargalha, e já tô achando que devo ter cara de palhaça!
- É... pode me dizer para que lado devo ir? Daí eu me acho. - Digo focando-me nele, que me estende o capacete, me fazendo piscar mais vezes do que normal.
- Sobe aí. - Ele me diz, e eu franzo as sobrancelhas.
- Subir?
- É! Eu te levo pra casa, não é muito longe, mas o sol está forte. - Meu coração erra algumas batidas me fazendo entreabrir os lábios. Subir na moto? Mas eu nem consigo erguer a perna naquela altura. Meu Deus do céu me ajuda!
Dou uma risadinha sem graça. - Eu tenho medo... - Engulo seco. - Só me dá uma ajudinha, pra que lado eu vou? - Ele pressiona os lábios, numa tentativa claramente falha de não rir.
- Já andou de moto alguma vez?
- Não. - Digo me arrependendo de ter saído de dentro daquela casa hoje de manhã.
- Então... - Ele desliga a moto, sai de cima dela e para na minha frente, e droga, droga, ele era muito maior que eu. Ele coloca o capacete preto na minha cabeça, e ajeita tipo uma fivelinha que tem perto do queixo. Droga, eu vou ter que subir naquela coisa! - Prontinho. O capacete te protege, em caso de algum acidente, e esse acrílico. - Ele bate na viseira transparente. - Vai proteger os seus olhos de areias, ou qualquer outra coisa.
- E você? - Pergunto procurando uma saída.
- Eu já estou acostumado. - Ele pega a minha mão e me puxa para próximo da moto, coloca uma mão na minha cintura, e a outra segurando a minha mão me ajuda a subir na moto. Eu sinto um arrepio tão grande, que sinto que vou me mijar nas calças. - Relaxa, é só segurar na minha cintura.
Ele sobe na moto e eu seguro de leve, mas ao sentir ele arrancar aperto meus braços contra o corpo firme e musculoso, que dava para sentir por cima da camiseta preta que ele estava. Fecho os olhos e travo os dentes. Que Deus me protegesse. Ele anda, algumas ruas, e então diz. - Ali é onde você mora. - Mas ele não para.
- Pode parar para eu descer? - Sei lá, vai que ele quisesse que eu pulasse com aquela coisa em movimento!
- Não, vamos dar um passeio, para você sentir a vibe.
- Ai meu Deus! Que vibe? - Digo quase gritando para ele me ouvir, além do barulho do vento batendo e do barulho da moto.
- O vento, a adrenalina, a sensação de liberdade. - Chegamos na estrada, asfaltada, ele olha para os lados e entra na via, acelerando a tal ponto, que sinto meus pés adormecendo no lugar de colocar os pés. Como é o nome daquilo? Pézinhos? Pedal? Mas pedal não é de bicicleta? Aperto-me mais contra ele e tento respirar, porque estou a beira de um colapso.