Prisioneira de uma vingança
img img Prisioneira de uma vingança img Capítulo 3 Cicatrizes
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Capítulo 11 Não Está Acabado img
Capítulo 12 Brincando de Santa img
Capítulo 13 É do Meu Jeito img
Capítulo 14 Contando as Horas img
Capítulo 15 Eu Não Sou o Único img
Capítulo 16 Minta para Mim img
Capítulo 17 Desmoronando img
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Capítulo 3 Cicatrizes

Alice foi acordada por sentir mãos alisando seus cabelos.

Recordou-se da noite anterior e sentiu vontade de continuar de olhos fechados, de dormir até que o marido tivesse que partir para sua viagem.

Khalil não a deixou realizar tal feito. Abraçou-a forte e beijou seus lábios.

Ela aceitou o carinho, sem retribuir desta vez, pois estava contando as horas para que ele viajasse logo.

– Eu amo os seus cabelos, tão longos. - Disse ele, sentindo o aroma dos fios negros entrelaçados em sua mão.

Ela apenas sorriu.

Khalil estava sendo gentil demais, cordial demais, amoroso demais, tudo "demais" e ela estava absolutamente em estado de alerta e desconfiança.

Não parecia o homem dos últimos tempos, que a forçava a saciá-lo contra sua própria vontade e ela ainda tentava sustentar isso como uma obrigação de vida conjugal, o fardo eterno da mulher, com a afirmação retrógrada de que "homens são assim mesmo".

Veio à mente de Alice que ambos viveram em um apartamento luxuoso mais próximo ao centro do Cairo, pois ela desejava retomar os estudos, embarcar em uma especialização, pois estava entediada de ser apenas a jovem esposa do magnata do petróleo. O marido era um homem extremamente inteligente e ela não queria parecer inferior, precisava se ocupar.

Foi ali que todo o pesadelo começou.

***

Logo após Alice iniciar sua pós-graduação, Khalil passou a beber compulsivamente e demonstrar um ciúme doentio pela jovem, pois, de alguma forma, o frescor da juventude da esposa, seu ímpeto por independência despertou nele uma insegurança há muito adormecida. Ele sentia pavor de ser abandonado e trocado e esse sentimento lhe causava uma angústia indescritível, trazendo a tona comportamentos deveras obsessivos.

Alterado, dizia que ela queria voltar aos estudos para estar rodeada de pessoas da idade dela e que não o amava, pois ele era muito tempo mais velho, que os anos acentuariam ainda mais a diferença de idade entre ambos, que não tinha os mesmos hábitos e diversões dos jovens da idade dela e apostava que era isso que fazia falta a ela. Acrescentava ainda que sua companhia estava tão entediante que a esposa não o achava suficiente e queria ampliar seu círculo social.

Quanto mais difícil Khalil se tornava, mais proximidade Alice o entregava e desenvolvia muitas programações em casal para que pudessem realizar nos momentos vagos que ele tivesse. Criou hábitos de estudos extraclasse apenas enquanto tivesse trabalhando, seguia a risca uma rotina metódica de horários e pouco se enturmava, pois além de querer trazer conforto à perturbação mental causada pela insegurança do marido, não podia esquecer que ele era bastante poderoso e ela precisava preservar a privacidade deles.

Com essas atitudes, Alice conseguiu convencê-lo, temporariamente, o quanto o amava e que a diferença de idade nunca foi uma questão entre eles, pois ela mesma sempre foi bastante sozinha e que com ele se sentia preenchida. Reforçou que o achava a pessoa mais inteligente que conhecia e que queria evoluir para que eles sempre tivessem o que conversar, que não queria ser conhecida apenas por ser a "bela e jovem esposa de Khalil Abdu".

Essas discussões e afirmações eram repetitivas, cansativas e Alice estava considerando a possibilidade de desistir da especialização. "Quem sabe um dia, com o avanço da internet, eu consiga estudar em casa", pensou.

Desanimada ao abrir a porta do apartamento, preparada para enfrentar a carranca do marido, foi surpreendida por ele estar sentado calmamente a esperá-la com um embrulho nas mãos. Ao vê-la, levantou ao seu encontro e deu-lhe um beijo apaixonado, entregando o embrulho em suas mãos "É para você, minha vida, sei que será a maior especialista em comércio exterior", disse. Alice se deparou com uma linda joia que representava sua formação, que era um colar em ouro branco e o pingente de mapa-mundi cravejado de pequenos diamantes. Ela acreditou que aquele gesto era de apoio e de trégua, quando sentiu as mãos dele fechando o colar ao redor de seu pescoço ela sentiu o arrepio da paixão por ele percorrer cada poro de sua pele. Virou-se para ele e olhou no fundo de seus olhos para dizer que o amava e em seguida, o beijou demoradamente, retirando as roupas dos dois ali mesmo, na sala.

– Alice, os empregados! Vão nos ver! – Disse o homem, louco de paixão, mas ainda cauteloso.

– Que vejam, eu não me importo com nenhuma pessoa nesse mundo além de você. Você é meu e eu te amarei em qualquer lugar, qualquer ambiente, onde eu bem quiser.

Era dessa forma que eles resolviam seus problemas no início do casamento: se amando, adiando conversas duras, sendo imaturos.

Semanas após a entrega da joia e a reconciliação dos dois, que ocasionou uma trégua nas discussões diárias, Khalil resolveu buscá-la na instituição de surpresa e sem avisar.

Ele comprou alguns livros que Alice precisaria e lindas canetas banhadas a ouro, como uma manutenção do seu pedido de desculpas e demonstração de apoio aos seus estudos. Saindo do carro em que a aguardava para ter visão melhor do portão, avistou um rapaz alisar o braço de Alice e dar-lhe um beijo no rosto.

Sua expressão de ansiedade e amor mudou para uma grande carranca. Ele voltou para o carro e seguiu para casa, acreditando que as suas inseguranças estavam todas justificadas e confirmadas.

Indignou-se por estarem morando num apartamento próximo ao centro, para que ela pudesse estudar na melhor faculdade da região e ela permitir tais liberdades com um homem que não fosse ele mesmo. "Eu sou o homem dela, ela é minha, para isso me casei".

Esperou-a chegar, embriagado de bebida, de raiva, de ciúme. Em sua mente perturbada começaram a aparecer imagens de sua esposa com aquele homem, escondida na biblioteca o traindo, já que sabia que ela nem se importava em ser vista pelos outros. Andava de um lado para outro, repetindo que daria a ela uma lição que jamais iria esquecer, que infligiria nela uma dor tão grande que só assim ela poderia entendê-lo.

Sem saber o que a esperava, Alice se atrasou por meia hora de seu horário rotineiro de chegada. Sorridente, se aproximava para cumprimentar seu marido, quando foi surpreendida por um doloroso golpe de cinto de couro que a fez cair de imediato no chão.

Khalil estava cego, quanto mais ela pedia para ele parar, mais ele continuava e em dado momento, ela jurava que ele iria extingui-la da existência. As agressões cessaram quando Alice não conseguia mais mover músculo algum, em posição fetal, inconsciente.

Foram sete meses de muito alcoolismo por parte do marido, ameaças e agressões contra ela a partir daquele dia e ela nunca mais foi a mesma pessoa. Ela não tinha a menor ideia do que havia transformado e transtornado tanto seu amado Khalil, que brutalmente a punia daquela forma somente por viverem na mesma casa.

Quando ela se olhou no espelho, não se reconhecia. O corpo estava marcado, machucado, magro e nem seu rosto era poupado. Seus olhos pareciam fundos e ainda maiores, opacos, e ela sabia que nunca antes tinha sido tão infeliz.

A moça, inicialmente, tentava resistir ao que acontecia, tentava lutar, mas era tão menor e mais frágil que nunca escapava, depois entrou em um estado profundo de apatia e negação. "Isso não é real, não está acontecendo de verdade". Porém, sempre que se via no espelho, lá estava, a demonstração de que tudo era real. "É só eu não olhar mais".

Alice se sentia profundamente vazia, tentava criar teorias, justificativas, entender o que houve e o que fez para merecer aquilo. Ela oscilava entre querer que o marido recobrasse a consciência e parasse com aquilo, para que eles pudessem retomar o casamento e entre detestá-lo por ser um homem ruim.

A paranoia dele em relação a sua juventude o fez destruí-la e a colocar em cárcere na mansão em Zamalek, onde ninguém poderia ajudá-la.

Sabendo que não poderia contar com ninguém, vigiada o tempo inteiro, Alice apenas queria morrer. Estava exausta, não falava uma palavra nos últimos meses, sempre em silêncio, e se encolhia toda vez que ouvia os passos pelos corredores.

Duas semanas antes de atingir seu limite, não se alimentava bem e desejava definhar de uma vez e encontrar a paz em algum lugar do universo. Dormia quase 20 horas por dia e metade dessas horas sonhava com o passado, com o Caribe, com a Itália, com seus pais e sentia uma melancolia desesperadora.

Havia atingido seu limite máximo e usaria as poucas forças que lhe restavam para aproveitar que o marido havia saído para uma reunião de negócios. Normalmente quando ele saia para este fim, costumava demorar para voltar.

Quando a porta de sua suíte estava fechada, os empregados não entravam lá. Ela então entrou no banheiro, se trancou e ingeriu uma altíssima dose de remédios. O corpo relaxou dentro da banheira e ela sentiu que estava muito perto do que buscava: acabar com a dor.

Khalil retornou extremamente cedo e, procurando por Alice, encontrou a porta de sua suíte trancada e o que lhe foi mais estranho era o barulho de água que ele tentava identificar de onde seria. O raciocínio foi rápido ao ajudá-lo a deduzir o que poderia estar acontecendo e ele arrombou a porta. Quando correu para o banheiro encontrou Alice inerte na banheira, que já transbordava líquido para fora. Cartelas vazias espalhadas pelo chão denunciaram o que a jovem havia feito.

Rapidamente ele a retirou dali e enrolou-a numa toalha, e a posicionou no chão seco mais próximo da cama para lhe fazer respiração boca-a-boca. Quando a agua começou a sair, ele iniciou manobras de massagem cardíaca, enquanto gritava e chorava em desespero. "Volte para mim, meu amor. Alice, por favor". Quando sentiu que havia um pulso fraco sequer a vestiu. Simplesmente colocou-a no carro e correu ao hospital mais próximo.

No dia seguinte à sua tentativa de acabar com a sua dor, Alice acordou. Quando entendeu que estava salva, viva, foi quando passou a odiar o marido. O odiava por tê-la feito viver para olhar novamente o seu algoz.

Desde então, Khalil parou de beber e trancou-se em casa para ter certeza de que ela não atentaria contra si mesma novamente. Pagou tudo o que seu dinheiro pôde comprar para remover quaisquer marcas de sua violência física contra Alice, que por sua vez logo estava quase tão bonita quanto antes. Já para Khalil, ela parecia ainda mais bonita depois de passar por todo aquele trauma, ela parecia mais... real... De alguma forma, ele passou a vê-la no mesmo patamar de santa que via a própria mãe.

"Agora ela é mais forte", ele se justificativa.

Ele nunca deu a ela chance para defesa, para explicações, nem mesmo disse o porquê de tudo aquilo.

O corpo de Alice estava belo novamente, mas as cicatrizes da alma, estas nunca seriam apagadas. Sua mente estava fragmentada, em frangalhos e ela acreditava que perdeu sua capacidade de sentir algo bom. Bloqueou a simpatia, a empatia e confiava em nada ou ninguém. Passou a agir com praticidade, pragmatismo e até com narcisismo.

"Me ouviram gritar e não me salvaram. No hospital, viram as marcas e não o denunciaram. Ninguém me ajudou, ninguém se importou... Então ninguém merece algo bom vindo de mim. Acabou". Ela levava esse pensamento consigo até o fim dos seus dias.

***

– Querida, você me acompanha até o aeroporto? - Disse Khalil.

– Com certeza. - Disse Alice.

Ela queria acompanhá-lo para ter a certeza de que realmente o marido partiria, que não se tratava de uma pegadinha..

Khalil se despediu dela com um beijo e forte abraço.

Quando o jato decolou, ela desejou que a aeronave explodisse no ar.

No retorno para casa, avistou um salão de beleza e ordenou ao motorista que parasse.

Entrou no lugar que estava com uma cabeleireira vaga, acomodou-se na cadeira e disse:

– Corte meu cabelo inteiro. Quero na altura de meu queixo.

            
            

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