Capítulo 7 SEXTO

O silêncio chegava a ser angustiante.

Num litoral, além das ondas, se espera ouvir o som dos pássaros. Mas até as árvores e o vento pareciam silenciosos.

E nada se via além da neblina densa.

Chegava a ser assustador mal ver a mulher que dormiu ao seu lado quando abriu os olhos. Mas lá estava... cabelos negros, curtos, roupas surradas e um conjunto velho de trapos para si e seu filho sobrevivente as doenças, as sereias e a fome no porão do navio.

Dandara não viu muito quando o dia amanheceu além dos raios de sol repassar sobre a neblina e dar a sensação de alguns arco íris surgindo e se desmanchando conforme a brisa.

Estava frio.

Os pelos de seu braço estavam todos arrepiados e ela mal conseguiu dormir sem bater os dentes. Várias vezes acordava na madrugada para apreciar as estrelas e as auroras boreais até o momento em que a neblina retornou.

Aquele lugar é um paraíso.

Mas também macabro e sombrio.

Quando o sol se tornou mais forte, era possível ver o azul, vermelho e o amarelo em meio a neblina. Os escravos dormindo mal passavam de elevações na rocha, tão cansados, tão inertes que Dandara temia que algum deles tivesse morrido na madrugada gelada como na noite anterior.

Uma idosa dormiu... e não acordou.

Com exceção do frio, era uma ótima forma de morrer. Dormir naquele paraíso e não despertar. Assim teriam que aguentar até obterem um alojamento melhor ou retornarem para os navios e partirem de volta a terras mais familiares.

Se imprevistos não ocorressem...

Dandara permaneceu lá, com nada além do manto de névoa para cobrir seu corpo, com sono, tentando dormir sem sucesso aguardando a visibilidade melhorar ou seus donos exigirem trabalho.

Só restava olhar para a floresta alta e tão imponente com árvores tão robustas que derrubar uma parecia impossível com a mão de obra atualmente disponível. Os troncos cobertos de musgos e suas formações.

Poucas eram as menores, mas assumiam formas tão peculiares que a cativa não tinha interesse em se aproximar.

Quase parecia um homem.

Alto e grande... com pernas, ombros e todo o porte humanoide. Contudo, se aquela árvore fosse realmente um homem... bom, não seria possível com aqueles braços compridos, os dois chifres no topo da cabeça.

Ou seriam orelhas?

Era alto, como um cotoco em crescimento deveria ser ser naquele mundo. As árvores atrás eram tão semelhantes quanto a forma daquela em crescimento, nova demais para musgos brotarem em torno de si.

E por isso se destacava.

Se Dandara não acreditasse fortemente que aquela penisola está desabitada, poderia deduzir que a árvore - a forma dela -, na verdade era outra coisa olhando direto para ela. Pensar nessa possibilidade arrepiava completamente seu corpo.

Como o grunhido de algumas noites.

Ela não queria pensar, não queria acreditar que era outra coisa senão uma ilusão ou uma árvore. Porém ela não conseguia ficar sem encarar aquela forma e certamente não dormiria se tivesse a impressão daquilo ficar encarando-a.

Observando.

Mirando-a como um predador. Alguma criatura desconhecida e medonha.

Mas lá permanecia sem se mexer, no mesmo lugar, na mesma posição, como um homem parado em meio a névoa. Escuro demais para não se destacar no meio da manhã.

E Dandara não mais conseguiu desviar o olhar, vidrada e esperando algum movimento. Torcendo para que não se movesse, paralisada e hipnotizada a um nível que só foi despertada quando seu corpo foi jogado para o lado, num banque doloroso causado pela queda de um homem.

Somente então reparou nos portugueses enxotando os escravos de sua cama, raivosos sob o estrondo do chicote a gritaria em busca de um homem. Em busca do comandante de um dos navios atracados aos recifes, perguntando e exigindo respostas.

- Levante! - Ordenou o feitor tão grave quanto o estalar do chicote em suas mãos.

O escravo grunhiu minutos antes de Dandara sentir a mesma ardência em seu bíceps. Por sabedoria - costume, memória muscular, hábito - ela cambaleou até que estivesse em pé e seguiu os demais para se organizar em fileiras.

Um homem havia desaparecido.

Assim como aquela forma medonha de besta-homem na neve.

Dandara não se permitiu sentir nada sobre o fato conforme os brancos eram divididos e escalados aleatoriamente para trabalhos que incluía procurar o homem, ou sua bússola sempre guardada no bolso, ou sua lupa, ou seu cordão com anel de ouro ou qualquer objeto pessoal que não seja as lentes que sempre era vista em frente ao nariz enrugado. Não era necessário. O utensílio foi achado do lado de fora de sua tenda.

Os homens estavam estressados, irritados e queriam acelerar o trabalho para sair daquele lugar e encontrar o capitão desaparecido. Alexandre quem ditava tudo, com berros e ocos altamente típicos de sua voz grave.

Mesmo na neblina, mesmo na pouca visibilidade, a mulher foi mandada pela mata.

Pois se tivesse algo lá, já teriam descoberto.

Ou...

Se tiver algo lá, querem saber.

A função da mulher era simples... coletar fibras dos arbustos, encontrar qualquer coisa que pudesse usar como palha e obter recursos para outras cativas confeccionar cestas - o trabalho que ela esperava recuperar. Ela não gostava da imensidão da floresta, detestava mal ver as costas rasgadas da menina de 17 anos a sua frente, sentir a chuva gelada da copa das árvores e ser engolida pela escuridão que mal era tocada pela luz solar em meio a densidade da vegetação.

No início, havia homens com machados, com serras e facas buscando os menores tocos... escalando em busca de uma madeira mais fácil de cortar e ouvir as ordens dos capatazes. Mas elas foram mais fundo e só havia um guarda para lidar com elas.

Tudo ficou escuro, a visibilidade diminuiu consideravelmente como ainda estivesse amanhecendo. As raízes ficaram mais difíceis, o passo mais lento até que suas roupas começassem a se enroscar nos arbustos e a lama cobrisse seus pés. Só então o grupo se dividiu.

Dandara gostaria muito mais de sujar as mãos em busca das frutas que passou a encher a barriga dos portugueses do que cortar a mão na extração de um recurso essencial para uma boa cesta. Mas lá ficou, sentada em uma raiz, entre caras e bocas para cumprir seu trabalho.

A sua frente, o capataz se mantinha atento em meio a névoa. Quase como se pressentisse o perigo na floresta. Um chicote e uma espingarda. Talvez, entre as roupas mais reforçadas para o frio, pesada pela umidade e suja pela localidade tenha facas. Mas Dandara não viu espadas e só permitiu esquecer seu próprio medo daquele lugar para trabalhar.

Ao presenciar seu olhar, ele sibilou:

- O que é? Quer apanhar!? - Sobre a ameaça, ela encolhe, sente um ardor do corte nos galhos e geme.

Seu sangue cai pela vegetação, pelos espinhos, pelos galhos, pelas raízes e encontra as folhas secas no chão.

Para não sentir o chicote em suas costas, Dandara se força a enfiar a mão nos espinhos em cumprimento do dever. Ainda assim, o homem cospe na terra e a chuta em sua direção.

A humana não se atreveu a olhar para nada a partir daquele momento.

E se concentrou em sua dor, no forte e dos espetos vez ou outra tirando a mão e tentando tirar uma farpa de sua carne. Mas uma broca sempre a esperava, um estalo agudo em suas costas, um grunhido e uma ordem.

Um castigo.

Por que, ela não sabe. Talvez ele se divertia com isso, baseado no sorriso. Talvez em meio a correria daquele dia, não seja função dele carregar o chicote.

Mas as três mulheres juntas dela também sentiram o ardor nas costas conforme suas mãos não eram ferradas o suficiente. Havia uma meta? Dandara tinha colhido bem menos fibras que a senhora ao seu lado.

Por isso apanhava?

Suas mãos ardiam em cortes, em farpas, em bolhas e mais sangue escorreu pelos galhos. De um ao outro, pra lá e para cá.

Estava fazendo errado?

Aquela não era sua função. Ela confeccionava invés de colher. Ou estava mal acostumada? As mãos da mulher do outro lado era infestada de cicatrizes e tão áspera que um corte qualquer não faria diferença. Ela era jovem, mal desenvolveu as marcas da idade.

As mãos de Dandara ficariam assim?

Ao menos seriam menos agradáveis na hora de estimular o pênis de Alexandre.

O tempo passou, a neblina diminuiu e as gotas a rolar pela copa das árvores quase já não eram um incômodo quando a mulher percebeu o cessar dos xingamentos, das ordens ou das chibatadas. O único som era os galhos, os murmúrios de dor das demais mulheres e um ou outro andar em busca de um arbusto melhor.

Mas foi outra mulher quem reparou.

- Onde ele está?

A idosa olhou ao redor, apreensiva... forçando a visão para além da neblina e da mata.

- Sem ele não podemos voltar - ela murmurou com a voz num fiapo de rouquidão.

Dandara foi a primeira a se levantar.

- O que está fazendo?!

As mãos estavam tremendo e doendo ao mínimo toque naquelas farpas que ela não fazia ideia de como iria tirar. Os cortes eram tão ardidos quanto os caroços da picada de alguma formiga com a cabeça o dobro do tamanho do corpo.

Os olhos de Dandara estavam vermelhos quando olhou ao redor e buscou alguma movimentação na floresta. Ou forma.

Não havia nada.

Nem na próxima hora.

Nem quando a tarde passou e o clima esfriou.

- Deveríamos voltar - a idosa murmurou. As mãos já tinham sangue seco e tremiam ao movê-las. Dandara já tinha lágrimas nos olhos e a terceira mulher ainda fazia caretas ao coletar mais e mais fibras.

Temendo que ele voltasse e as surrasse por não ter o suficiente. Mas os cestos já estavam cheios e ainda havia dúvidas se conseguiriam carregar tudo.

- Deveríamos ficar - a mulher contradisse -, não fomos liberadas.

- E se algo aconteceu? - Dandara questionou, para a atenção de todas. - Um homem desapareceu. Outro poderia, não é? E se... E se...

- Por onde viemos? - O medo se apossou dos olhos da mulher... o lembrete de que não estão no Brasil e sim num lugar aparentemente isolado até mesmo de pássaros, coberto constantemente por neblina que nem mesmo os marinheiros mais experientes sabem sua exata localização.

Mas a noite se aproxima e os caminhos pareciam todos iguais. As raízes não derivam muitos rastros por onde seguir e, se houvesse, o respingo constante das árvores os apagava. Os musgos amaciam os passos e elas não tinham senso de direção.

Mas se algo aconteceu... passar a noite ali não parecia ser uma opção.

- Ali... - a idosa apontou aos arbustos, aqueles que elas colheram, ao sangue de Dandara em alguns deles. - Vamos por ali.

- Vai acabar - a mulher disse - Não colhemos desde o acampamento.

- Mas podemos encontrar alguém - disse Dandara.

A senhora fez força para se levantar, pressionando as juntas e as duas ajudaram o máximo que puderam. A mulher segurou nas mãos de Dandara e analisou calos, espinhos e as farpas.

- Precisa cuidar disso, menina - ela disse - se não cuidar, não pode confeccionar. E se não confeccionar, vai ser mandada para cá de novo.

- Já passou por isso?

- Há muito tempo - isso ajudava a entender porque Dandara colheu menos do que ela. Do que todas.

Ela assentiu e buscou as próprias fibras na cesta.

- Você colhe mal - a senhora comentou - e pouco. Se não apanhar por isso, vão tentar colocá-la na confecção. Mas se sua mão não melhorar, não vai confeccionar. E se não colhe ou confecciona, vai virar prostituta.

Já sou...

- Isso a senhora não foi? - A mulher ergueu sua própria cesta, bem mais cheia e gorda, mas nada comparada ao da terceira mulher se adiantando à frente.

- Nunca fui bonita como você, menina - Dandara ofereceu um sorriso, o máximo que poderia dar e não reparar na veracidade das palavras.

Com uma ruga ao lado do nariz e várias outras cobrindo o colo, a testa flácida, o nariz e a boca grande, mas os cabelos falhos entre o branco e o negro. Não era alta, Dandara não se lembra de um idoso que fosse alto.

Mas aquele lugar não era para ela.

Ela se perguntou para onde estariam levando os idosos. Os homens iriam para as ferrovias e as mulheres para casas e família e prostíbulos. E os idosos?

Talvez fosse melhor ficar quieta e tentar seguir pela trilha dos arbustos que elas colheram.

- Um grupo de mulheres foi para lá - A segunda mais jovem lembrou daquelas meninas em busca de frutinhas.

- Vai anoitecer. Podemos nos perder se formos lá - argumentou Dandara. - E elas podem nem estar mais lá.

- Vamos em frente? - Pediu a idosa.

Então seguiram em frente, tentando ver o céu por entre as copas, ver sinais de desmatamento ou escutar as picaretas dos homens. Mesmo um som de chicote jamais foi tão desejado.

Não havia nada ali, queria Dandara acreditar.

Apenas névoa, garoa, árvore e frio.

Mas sereias brotaram da água como jóias nos recifes.

Um homem desapareceu.

Dois, talvez?

Apenas continuar andando em direção ao conjunto de muralhas no litoral. Só isso! Simples...

Ela continuou a andar.

E um estalar metálico ressoou quando chutou algo entre as raízes. Dandara parou.

A folhagem no chão era irregular, os pés das árvores se erguiam com sua própria onda rígida, a terra escura, as pedras e as folhas. O que ela chutou? Dandara se aproximou até onde pensou ter ouvido o metal, mas logo descartou para seguir o próprio caminho.

Não deveria ser nada.

Ela olhou para onde as mulheres desapereciam na neblina e se preparou para alcançá-las. Porém, o vento soprou e um eco chegou aos seus ouvidos.

Como um motor suave das máquinas.

Um ronronar mais gutural dos gatos.

Um rosnado...

Ela deveria olhar? Deveria correr para alcançar as mulheres? Mas seus instintos a forçaram... e ela se virou.

Lá estava...

Alto. Grande. Intimidador.

Estava distante, quase tão longe que Dandara mal distinguiu sua forma das árvores mesmo a neblina sendo mais leve.

Um homem ou uma besta?

Braços compridos e pernas longas. Tinha muscular, ombros largos, sem curvas femininas ou quadris muito largos. Macho, homem, masculino...

Orelhas pontudas.

Tão escuro quanto as árvores ao redor. Mas Dandara sabia... agora tinha certeza de que não era uma planta.

Mais um passo para trás, tentando saber onde estava as pedras e as raízes.

Algo se moveu à altura dos quadris. Uma cauda.

Era uma criatura feita de carne e osso, parada, silenciosa e medonha a encarando. Um conjunto duplo de ar quente saiu de seu rosto, se mesclando com a pouca neblina.

Ela continuou a recuar, com mais afinco que antes, estremecendo, pensando se correria, se gritaria ou ambos. As mulheres já deveriam estar longe, talvez perdidas, talvez a salvo mas não poderiam ajudar Dandara.

Será que notaram seu desaparecimento?

Chamaria seus carcereiros? Seus donos? Outros escravos? Os portugueses tinham armas e ela não era nada!

Mais um passo para trás.

Outro.

Outro.

Ele não se moveu.

Talvez fosse uma alucinação. Dandara queria que fosse, mas não queria confirmar. Aquele lugar deve provocar esse tipo de coisa já que a menos de dois dias um dos portugueses afirmou ter visto um harém de garotas nuas chamando por ele.

Dandara continuou recuando.

E a criatura... ficou lá.

Um novo tintilar sonoro como moedas se chocando e metal se encontrando em seus pés descalços, sujos e úmidos. Ela estava tão nervosa que seu corpo arqueou e o susto lhe tirou o equilíbrio. Dandara enroscou o tornozelo nas raízes e caiu por cima dos arbustos.

Espinhos, galhos e folhas lhe machucaram. Ela grunhiu quando sua cabeça encontrou outra raiz e rigidez lhe perturbou os sentidos.

Ela olhou para frente, para ver além da pulsação duas criaturas se aproximando. Passando pelas raízes, vagarosamente pelas árvores e a vegetação.

Elas giravam e giravam em meio a neblina e o cheiro ácido.

O estômago revirou.

Ela passou a mão no rosto, esfregando-o para despertar. Foi quando notou sua mão vermelha e imunda de sangue, barro e fezes.

Então ela o viu.

Aqueles olhos esbugalhados, com um terror tão grande que parecia ainda estar vivo. A cabeça separada do corpo, estraçalhado e espalhado. Seriam os rins debaixo de sua barriga, as mãos tocando algo pegajoso...

Seu feitor.

Ela não aguentou.

Gritou.

E todo continente deve tê-la ouvido.

            
            

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