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Estava pulsando...
Coçando.
Ardendo.
E pulsando ainda mais.
Ela suspirou, franzindo as sobrancelhas para as mãos. Aqueles cortes, as farpas e os bichos que insistiam em confundi-la com um cadáver. Havia lágrimas em seus olhos quando uma nova careta de dor se manifestou ao ter a carne novamente cutucada.
Então a pinça manejada pela senhora puxou outro bicho branco, gordo e cumprido da palma. Os dedos estremeceram. O ferimento ardeu como se aquele verme tivesse grudado com dentes em sua carne. Um filete de sangue escorreu e caiu no pano branco, junto a muitos outros.
As mãos de Dandara estavam inchadas e doloridas demais para confeccionar e coletar fibras. Culpa da queda, de onde ela enfiou os dedos e do que grudou nela.
- Ao menos, foi permitido que tomasse banho - disse a mulher que, como a última, era de idade avançada e não deveria estar ali.
Felizmente não estava na floresta e depois de encontrarem o corpo do capataz e um dos comandantes continuar desaparecido... as tarefas foram perfeitamente organizadas em questão de minutos.
- Não vou poder trabalhar - Dandara disse encarando as mãos, as palmas mais claras e o pulsar da carne vermelha. - E pagarei por isso.
- O próprio capitão Alexandre lhe deu esse privilégio - murmurou a senhora, a voz arrastada pelo resfriado que estava se recuperando - o que os capatazes farão?
- Eles talvez não. Mas ainda terei que compensar o capitão.
Os olhos da mulher perdeu o restante do brilho. Ainda que o rosto da escrava fosse sofrido, não tivesse a beleza realçada, ela tinha seu charme. Uma doçura desejável e certamente seria linda se pudesse ter os cuidados apropriados.
Como seria se ela soltasse seus cachos do coque apertado? Se os fios fossem cortados de modo mais delicado e ela pudesse ter algo a mais do que trapos.
As mãos de Dandara eram tão macias e sensíveis que não era estranho estarem tão machucadas pelo trabalho e a senhora sentiu um certo desespero pelas prováveis cicatrizes. Se formar alguma marca, não poderá trabalhar em casa de família ao voltar e provavelmente seria mandada ao campo onde apanharia até aprender a coletar corretamente.
E seja lá o que ela tenha que atraia os homens, resultaria em abusos e filhos indesejáveis.
- Você é amante dele - constatou a senhora. Dandara não respondeu. A mulher pegou uma pequena caneca de água e despejou pela palma, causando gemidos de ardor.
- Não tenho muitas escolhas - ela sussurrou. - Era ele e a cabine ou o cumprimento das ameaças.
A mulher pegou um pano para limpar os ferimentos.
- Eu gostaria de fazer mais - lamentou.
- São as consequências de ser mulher e negra - Dandara deu um sorriso que não chegou aos olhos.
E a senhora se perguntou no quão linda ela pareceria se seu sorriso fosse verdadeiro, não espontâneo e não sofrido.
- Você parece minha filha - ela confessou.
Dandara não sabia se queria perguntar sobre essa filha. Não sabia se queria se importar. Invés disso, perguntou o nome.
- Pode me chamar de Ivete - o sorriso da escrava chegou aos olhos.
- Dandara.
O sorriso foi correspondido. E tão rápido e espontâneo quando surgiu, se foi. A garganta da mulher se contraiu quando se engasgou com o ar e começou a tossir sem parar.
Dandara arfou e Ivete se inclinou. Ela soluçou em meio às crises em busca de ar, mas a escrava de quem cuidava a mão começou a se preocupar. A pedir ajuda.
Um sinal de afetividade, de pareceria com aquela idosa que cuidou de sua mão. Ou seria gentileza? Não parecia. Mas aquela fera nas árvores estava adorando a preocupação da mulher.
Como ela agiria caso o filho torcesse o tornozelo entre as raízes das árvores? Gritaria em socorro ao pai? Chocaria desesperada? Ou faria tudo isso enquanto tentava ajudar?
A besta ronronou e os cantos dos lábios se puxaram para cima num sorriso quando pousou o focinho em suas mãos. A cauda balançava de um lado para o outro quando Dandara tentou auxiliar na respiração daquela mulher.
E então todo o encanto morreu.
Os machos se aproximaram.
Um deles, o maior, a puxou de cima da idosa. Outro foi socorrê-la com menos gentileza.
Com uma ordem, ela ficou quieta. Paralisou, submissa.
E então Ivete foi tirada de lá.
E o homem teve Dandara todinha para ele.
A fera observou o tamanho dele - em todos os lados - gravou o rosto do macho e em como ele acariciava o rosto da fêmea. E também o comportamento dela.
- Está melhor? - Alexandre segurou gentilmente em suas mãos, observando os machucados.
- Estou - e ela forçou um sorriso.
Beijinhos molhados foram pousados na costa das mãos.
Companheiros? A besta levantou a sobrancelha. Dandara não correu e hesitou quando o macho aproximou o rosto. O hálito da última refeição estava presente e foi um esforço não fazer careta. O corpo tenso... o desconforto e o beijo. A barba do marujo engoliu o rosto dela.
Um rosnado engolido pela noite.
Rival. Não um companheiro. Desafiante!
Quando terminou, a fêmea estava sem ar, os lábios no pescoço, as mãos no quadril e aqueles belos olhos de jabuticaba se perderam no céu estrelado da noite. Mas ela não recusou os puxões gentis e nem mediu forças para entrar mais adentro na base e sumir em uma das barracas.
E não saiu.
Aquela noite estava mais desafiante. O clima menos pesado e um calor mais intenso. A neblina demoraria a vir e, quando chegasse, não seria tão intensa.
E os humanos estava mais cautelosos colocando estavas de madeira ao arredor do perímetro e fortificando até mesmo a região dos negros. Estavam seguros.
Só havia as estrelas e, no cair da madrugada, as auroras boreais dançando ao céu. Dandara gostaria de ver mais da beleza noturna daquela terra, mas se viu tentada pela proteção da tenda, o conforto da cama e o incômodo calor de Alexandre.
Ela estava dormindo quando as criaturas vieram atrás dela, passando pelas defesas como se elas não existissem.
E sem ninguém notar nos vultos da noite.
A fêmea não estava em lugar algum, senão escondida pelo cheiro forte de Alexandre como um manto sob ela, na tenda dele. Dandara não os viu chegar e quando o sono era tão bom, não os escutou.
Mas o homem sim.
Sentiu a sombra sobre o rosto e ouviu o som medonho se mesclar com a natureza.
Com as mãos do rifle. E os olhos esbugalhados sobre o que a lua refletia no tecido da tenda, cercando-os. Rodeando.
Era esguio, com cabeça de lobo, braços humanos e com um longo cumprimento sorrateiro. Eles puxavam lufadas de ar sobre o ambiente, indo e vindo num silêncio arrebatador. Era sombra e trevas, uma criatura cruel averiguando e procurando.
Até que um parou. Até que encontrou.
Os dentes foram mostrados, grandes e afiados quando encaram um ponto preciso na tenda. A sombra duplicou o tamanho dos caninos. Apenas tecido separava a garganta de Alexandre daquela mão com garras grotescas estendidas para tocar... pronta para rasgar e pegá-la.
O focinho abrindo, o bafo soltado em meio ao rosnado.
Ela estava com ele. Dormindo com ele. Com o cheiro dele impregnado seu corpo.
E ele estava ali, do lado dela. Ouviam o toque incessante do coração, a respiração. A garra a milímetros de tocar aquele tecido, uma bofetada e arrancaria a cabeça e eliminaria um rival e a teriam para si.
O capitão também estava preparado, bastando apenas engatinhar o rifle para poder disparar na cabeça da fera. O problema era o som. As orelhas atentas reagiu ao seu movimento e talvez a criatura soubesse que estava acordado.
Alexandre estava tão concentrado na besta a sua frente que mal reparou aquela enfiando a cabeça pela entrada da tenda, curioso sobre a toca que construiu para a fêmea e o flagrou com a arma apontada para outro dos seus. Os dentes reluziram um rosnado silencioso e a única coisa que o conteve foi Dandara, ali, ainda dormindo pesadamente agarrada aos cobertores como se temessem que fossem arrancados se seu corpo nu.
O macho trepou com ela. Olhos dourados brilharam com a rivalização, como se aquele humano tivesse invadido um território dele ao tocar sua mulher.
A besta a fora também sentia o mesmo.
Os dentes se fecharam. Um fraco rosnado foi a comunicação, como um cão contendo-se. Os pelos se eriçaram e as garras tocaram o tecido, impulsionando-se afiadamente para frente.
Puck! O dedo da fera abriu caminho, grande, com almofadas rentes e macias na parte interna e pelos anilhados nas costas como as orelhas de um gato, um cão. Mas aquela garra... negra, puntura e afiada como lâmina o fez estremecer.
Então o dedo encolheu, deixando nada mais do que um buraco ocupado por intensos olhos dourados fixando-se em Dandara na cama, depois no pênis do capitão e em fim, nele. Foi quando a pupila contraiu e os sons na garganta da fera se tornaram mais guturais.
Uma ameaça.
A besta na entrada já estava com ao menos metade do corpo para dentro como uma sombra monstruosa, sorrateiro e silencioso, salivando e pronto para atacar. Se Alexandre virasse para trás, apenas olhasse para além daquele olhos dourados... gritaria.
Mas aquela bunda peculiar para fora da tenda, o rabo felpudo balançando e chamando atenção foi a salvação do capitão. Os humanos olharam, viram vultos, escuridão e se aproximaram com espadas e espingardas.
Pela fenda, aquele olho recuou e em seu lugar, os dentes foram vistos. A cabeça desviou para o restante do acampamento e um grunhido foi escutado antes da besta se encolher e sua sombra desaparecer completamente como se tivesse vindo da escuridão e tudo não passasse de uma alucinação.
Então Alexandre escutou seus homens, os marujos mencionarem que viram algo e suas passadas apressadas.
Ele se afastou do tecido naquela tenda e encarou a entrada.
Apenas para ver.
Desabotoada, desamarrada, balançando como se algo tivesse passado por ali. Somente então os humanos apareceram, rodeando a barraca como se fosse aquela besta.
O sangue do homem estava completamente gelado quando se levantou, colocou apenas uma longa camisa ao corpo e saiu com a arma na mão. Apenas a madrugada fria o comprimentou.
Não havia sinal algum de que alguma coisa tivesse passado naquela tenda para dizer "oi".
Mas havia. E no precipício que se estendia não muito além, várias delas permaneciam grudadas nas rochas, pacientes, furtivos e atentos a toda agitação.
E ninguém jamais desconfiava. Ela não desconfiava.
Dandara continuava a dormir. Como um lindo anjinho inocente!