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O eco foi poderoso.
Ressoou através dos arbustos e da terra. A atmosfera pareceu ampliar a ressonância do grito, tornando-o a cópia perfeita do pavor que se agitou em Dandara.
Por que os humanos tinham que ser tão escandalosos?
Foi mais forte do que ela ver aquele olhar castanho, os cabelos mais escuros do que ela se lembrava daquele crânio decapitado. Pálido, com a mandíbula deslocada com um arranhão na lateral... tão profundo que rasgou a pele e ela podia ver seus dentes.
E lá, alguns vermes brancos se acumulavam, ondulando pela carne morta. Dandara sentiu o formigamento dos insetos, o pegajoso das minúsculas criaturas se acumulando no cadáver abaixo dela... subindo nela, entrando em suas roupas.
Ela gritou em meio ao salto, se afastando, se esfregando e chacoalhando aquelas criaturas de sua pele. O sangue seco do cadáver impregnou sua barriga, rins grudaram e se soltaram dela.
Dandara se enroscou e se machucou nas raízes com o desespero de seu nojo. Respirar se tornava difícil sem o cheiro de fezes, do excremento em seu rosto, na sua mão e o odor ácido apenas colaborava para o mal estar.
Sua cabeça latejava pelo tombo mas não havia como perder a consciência depois de ver aquilo - aquele corpo estraçalhado.
Ele tinha um rifle... e a arma mal pareceu ter chances de disparar jogada a vários metros com o cabo partido como se fosse um mero galho. Quem - ou o quê - seria capaz de tamanho ato?
Tamanha atrocidade!
O pé estava ao lado da cabeça, o pênis não muito distante. Dandara não via as pernas e nem tinha muito interesse em buscar.
Aquele homem estava vivo e completamente saudável a apenas algumas horas... ela estava em choque ao vê-lo ser digerido pela natureza ao anoitecer.
A neblina havia se dissipando naquela altura e a floresta mostrava todo seu esplendor arrogante, escura e macabra. As folhagens verdes, os galhos escuros e a terra negra... tudo consumindo aquele cadáver. As raízes se enroscando para dentro do tórax aberto, formigas se acumulando em partes como se fosse uma barata e vermes consumindo com favor a carne.
Dandara podia jurar que havia dias que ele estava ali... assim, deixando de existir conforme seus ossos fazem lentamente parte do próprio chão. Havia partes dele quase completamente submerso nas raízes e, provavelmente ao amanhecer, só restaria os ossos.
Suas pernas tremiam mais do que as mãos doloridas e machucadas pelos arbustos. Ela temeu algum daqueles vermes entrar dentro dos machucados e estremecia sem saber para onde ir, onde olhar, o que fazer.
A movimentação na floresta influenciava seu próprio batimento cardíaco. A imagem das bestas, aquelas formas medonhas se aproximando... o tamanho delas.
- Por aqui! - Mas foi um grave som masculino que a fez soltar o fôlego. O alívio caiu em seus ombros como se o mais pesado dos cestos os tivesse deixado.
Mas ela ainda não era capaz de falar, se gritar por ajuda. Mal soube de onde os homens brancos vieram quando escutou o arquejo do próprio favor.
- Pode Deus!
Aqueles homens lhe batiam, um deles havia a estuprado, eles jogaram corpos humanos na corrente marinha e assistiram os membros se despedaçarem. Eram capazes de crueldade e Dandara os temia. Mas os olhos deles indicam o mesmo horror que percorreu os dela, brilhando com as lágrimas de terror como as mais estreladas das noites.
Aquele capataz que comeu com eles na noite anterior, conversou com eles, os ajudou, era amigo de alguém naquele mundo cruel. E agora não era mais nada além de carne e ossos.
As roupas estavam rasgadas, cortadas como a pele. Marcas profundas se enchiam de bichos, arranhões grotescos e uma uma mordida no ombro... poderoso o bastante para arrancar a carne. A pressão do ato.
O pescoço separado da cabeça com os dentes!
As fezes, os mosquitos, o sangue...
Um dos homens não aguentou, se virou e vomitou na raiz da árvore mais próxima. Outro logo o acompanhou e o odor tornou o simples gesto de respirar naquele ambiente mais difícil. Para eles. Para ela. Para todos.
Dandara não era mais do que um cão acuado na árvore a ser ignorada. Ninguém dava a mínima para ela, mas seu grito não poderia ser ignorado. Se havia algo naquele lugar, queriam saber o que era.
Queriam saber o que seria capaz de fazer aquilo... não se alimentar, apenas rasgá-lo em pedaços como um esporte qualquer.
Talvez Dandara soubesse.
Talvez, só talvez.
Ela quase conseguia ver aqueles braços longos terminando em garras, cortando e cortando conforme bocas cheias de dente arrancavam o sangue e os órgãos internos esparramando por todo o lugar. Mas quebrar o rifle? A cativa não via o chicote perdido, mas estremecia com as lembranças do que viu na neve.
E ninguém deu a mínima para seu abalo psicológico. Eles a ignoraram ao rodear o corpo, fizeram perguntas, mas sequer a olharam.
Só bastava se importar o suficiente para virar na direção dela. E ver.
Na árvore ao qual ela se agarrava para manter o equilíbrio, entre os arbustos mais altos, tão silencioso, tão quieto... estava o assassino mantendo-se firme ao tronco com garras poderosas ainda sujas de sangue. O equilíbrio era tão perfeito, que se mantinha a cabeça para baixo. Dandara só precisava olhar para cima. Nada mais.
Era grande, mas tão silencioso que ninguém sequer notava sua presença. A cor escura se mesclava com a madeira peculiar do ambiente. Aquela criatura furtiva, vindo diretamente da copa das árvores...
Todos só precisavam olhar para cima.
E vê-los.
Não um, não três, mas dezenas. Como se fossem macacos aos galhos, são bestas caninas presas aos troncos com olhos brilhantes na direção dos humanos... na direção de Dandara.
Dentes afiados estavam a meros centímetros da cabeça...
E ninguém os notou.
Talvez porque o ambiente estava ficando escuro com a chegada da noite. Ou porque os sentidos deles não eram perfeitamente desenvolvidos para uma terra como aquela.
A besta farejou a escrava, sentiu seu aroma, aspirou seu medo e recuou. Tão preciso que quando um dos humanos finalmente se virou para a mulher, a criatura já estava no chão, atrás da árvore, escondida na vegetação.
- Você viu o quê fez isso? - Perguntou.
- N-Não, s-senhor - ah, como a voz é doce!
Submissa, gostosa de se ouvir e frágil. A criatura quase considerou ronronar em satisfação. Os olhos dourados pareceram se acender como brasa em meio a vegetação.
- Por Deus! - Outro humano se virou para ela - Lavem essa mulher!
"Mulher", a besta reconhecia aquela palavra do idioma daqueles homens.
E certamente não gostou quando pegaram no braço frágil daquela fêmea e a tiraram dali. Um rosnado deixou todos em alerta, rifles foram apontados e eles finalmente olharam para cima. Mas já era tarde demais para ver algo na copa densa e escura, além de pares brilhantes em dourado.
Olhos.
Eles estremessaram.
Havia muitos.
Eles quase podiam ver sombras em formas de garras fixas no tronco. Vultos suaves e piscadas lentas.
Havia coisas ali em cima. Coisas com garras e provavelmente presas. Coisas com olhos de lobo!
- Vamos sair daqui... lentamente! - Precisou coragem para dizer aquelas palavras e mais ainda para recuar medindo onde se iria pisar, onde e o melhor caminho.
Um de cada vez, Dandara na frente, ameaçada caso faça barulho. Punhos nas espadas e armas engatilhadas.
- Não façam movimentos bruscos... - o líder orientou.
- E o corpo? - Alguém perguntou.
- Volte para pegar então! - Alguém sussurrou no fundo.
- Silêncio! - Murmurou o capitão.
Quanto mais demoravam, mais escuro ficava naquele vácuo entre o dia e a noite. As folhas mal produziam alguma luz para iluminar o que quer há na copa das árvores. O que seria aquelas sombras?
Que criatura medonha estava bem em cima da cabeça deles?
Os homens já estavam a bons metros do corpo, do homem quando algo caiu das árvores. Algo grande, pesado e negro. Caiu com perfeição, mal ecoando o movimento. Um novo rosnado marcou sua presença e a coisa estava onde eles estavam.
E não estava sozinho.
Olhos brilhantes fixaram nos humanos, decorando suas faces, seus rostos e seus cheiros. O odor da caçada. Quando deixaram aquela área para disparar em uma corrida até o acampamento, havia a certeza de que não estavam mesmo sozinhos naquela floresta. Eles não eram bem vindos ali e ninguém abaixaria a cabeça para os português!
Mais do que isso, precisavam sair daquele lugar!
Antes que aquelas coisas os matassem.