Meu espírito, porém, encontrava-se em tormento. As núpcias que me aguardavam eram qual nuvem negra a pairar sobre meu destino. Bem sabia eu que o amor do Príncipe jamais seria meu, pois seu coração já fora cativo de outra donzela, cujo nome e lembrança eram murmúrios em cada corredor do palácio. Ainda assim, haveria eu de unir-me a ele no leito conjugal, a fim de gerar herdeiros que perpetuassem a linhagem real, uma obrigação que me enchia de repulsa e desgosto. Temei, em verdade, que sequer fosse capaz de cumprir tal dever, e que minha falha trouxesse a desonra sobre meu pai, cuja reputação como Lorde Comandante repousava sobre este enlace.
Mais ainda, o medo de que o Príncipe buscasse a anulação de nossa união era um peso insuportável. Tal ato não apenas me privaria do título de Rainha, mas lançaria minha casa e minha família na desgraça, deixando-nos à mercê de nossos inimigos. Suspirei profundamente, como quem carrega um fardo além de suas forças.
Sentia-me também traída. A amarga revelação de que meu casamento não passava de uma aliança forjada por interesses políticos feria-me como punhal cravado no coração. Tornara-me mercadoria em um mercado de poder, negociada como se meu valor se medisse em moedas e territórios.
- Não há como evitar meu destino. Melhor será recolher-me ao leito, amanhã devo apresentar-me altiva e radiante, qual uma noiva apaixonada, ainda que o fogo do amor não arda em meu peito. - Senti escapar dos meus lábios um riso seco, quase cínico, carregado do amargor que pesava sobre minha alma.
E assim, apaguei as velas e deitei-me, tentando encontrar, em meio ao turbilhão de pensamentos, algum resquício de paz para enfrentar o dia vindouro.
Enquanto buscava o consolo do sono, uma imagem tomou conta de meus devaneios: Mounsieur Karahan. Seu semblante firme e grave surgiu em minha mente como um reflexo inesperado num lago tranquilo. Era como se eu pudesse vê-lo claramente, seus olhos, como se carregassem o peso de histórias que nunca foram contadas, me encaravam com uma intensidade quase desconcertante. Lembrei-me de seu sorriso enigmático, um sorriso que parecia esconder tanto quanto revelava.
"Por que ele?", perguntei-me, frustrada, enquanto meu coração parecia acelerar sem permissão.
A batalha interna então começou. "Não, Anne, ele é apenas um hóspede. Um homem de passagem em tua vida. Não podes permitir que isso te consuma." Mas, apesar de meu esforço, as lembranças dele permaneciam.
Suspirei, sentindo-me dominada por uma mistura de confusão e culpa.
Que tolice era esta, nutrir tais pensamentos, quando o dia seguinte marcaria o início de uma união que nada tinha a ver com amor?
"É só gentileza, Anne. Não sejas uma tola", sussurrei a mim mesma, buscando restaurar o controle. Mas cada vez que fechava os olhos, era a imagem dele que surgia – não o Príncipe, que em breve seria meu esposo, mas aquele homem estranho e inesperadamente cativante que parecia ter enraizado em meus pensamentos.
Depois de muito me revirar na cama, incapaz de fugir da tormenta em minha mente, finalmente desisti. Levantei-me com um suspiro pesado, como se a própria ação de erguer-me fosse um desafio contra as correntes invisíveis que me prendiam. Vesti o roupão de forma apressada, puxando-o ao redor de mim como se fosse uma armadura, e tomei o castiçal ao lado de minha cama. A vela lançou sombras tremeluzentes nas paredes do quarto, criando formas dançantes que pareciam zombar da minha inquietação.
"Talvez os livros me tragam alguma paz", pensei, enquanto me dirigia à biblioteca, carregando comigo o turbilhão que era minha alma naquela noite.
Ao salão adentrando, com a noite envolta em seu manto de silêncio, assentei-me numa poltrona de veludo escarlate ao centro, a iluminação tremeluzente das candeias projetando sombras pelas paredes ornamentadas. Minhas mãos, trêmulas de emoção, buscaram meu rosto como se quisessem ocultar a dor que em meu coração habitava. Lágrimas discretas começaram a rolar, quentes e solitárias, enquanto minha voz, embora baixa, rompeu a quietude:
- Ó Altíssimo Senhor dos Céus, Criador de tudo que há e há de ser, a Vós dirijo meu clamor. Guiai os passos desta vossa serva indigna e vigiai-lhe os olhos por onde quer que vá. Purificai este coração, que ora se vê consumido por mágoas e inquietações. Abri-me a visão para aceitar as provações que o destino me impõe, envolta em Vosso amor e graça.
Eu Vos vejo, Rei da Glória, vindo com Vosso poder e majestade, e em Vós deposito minha confiança, pois sei que jamais me desamparareis. Sois ciente dos desejos de meu coração, ainda que eu mesma careça de discernimento para escolhê-los.
Concedei-me, Senhor, a força necessária para enfrentar o enlace que me foi imposto, mesmo que nele não encontre alegria. Ajudai-me a enxergar Vossa vontade em meio às trevas de meu coração e a suportar este fardo com paciência e resignação. Que Vosso amor me sustente e Vosso Espírito me guie para que eu não vacile no cumprimento do que se espera de mim.
E, se for de Vosso agrado, iluminai os corações daqueles ao meu redor, para que compreendam as angústias que trago em silêncio, é tudo que humildemente Lhe peço. Hosana nas alturas! Amém.
Assim findei a oração, inclinando levemente a cabeça, enquanto as lágrimas, qual um rio tímido, ainda marcavam meu semblante. O som do meu respirar ecoava no vasto salão, até que uma voz grave e inesperada fez-me sobressaltar:
- Não sabia que sois tão piedosa, minha dama.
Com o coração aos pulos, virei-me bruscamente, a mão instintivamente pousando sobre o peito em busca de acalmar o espanto. Mounsieur Karahan, alto e imponente, emergia da penumbra, a luz tênue realçando-lhe os traços marcados e o olhar melancólico.
- Perdoai-me se vos perturbei. Não conseguia o sono. Não desejei incomodá-la.
- Monsieur Karahan, quase me tirais a vida de susto! - exclamei, tomando às pressas um manto de brocado que repousava no espaldar do sofá e cobrindo-me. - Deveríeis estar a descansar, senhor!
- Chamai-me Henry, por obséquio. Sei que deveria estar em meus aposentos, mas o repouso se negou a vir esta noite - respondeu ele com um leve encolher de ombros, a expressão carregada de cansaço.
- Pois bem, Henry, sois deveras audaz! Não vos ensinaram que espiar uma dama é conduta indigna? - repliquei, erguendo o queixo em uma tentativa de recuperar a compostura.
- Permita-me explicar: cheguei antes de vós. Supus que viríeis apenas buscar algum tomo para vosso deleite e logo retornaríeis aos aposentos. Por isso, permaneci em silêncio. - ele fez uma breve pausa e completou - E, sim, Senhorita Anne, minha falecida mãe ensinou-me bem as boas maneiras. - A menção à mãe fez sua voz estremecer ligeiramente, e seus olhos, ainda que firmes, denunciaram um toque de dor.
A dureza de minhas palavras pareceu pesar, e arrependi-me imediatamente.
- Perdoai-me, Henry. Falei-vos de forma injusta. Minha inquietação transbordou de maneira indevida. Sinto por vossa perda.
- Não vos aflija, minha dama. Vossas palavras não me feriram. E vos asseguro que não desejei espreitar-vos. Ao vê-la tão absorta em vossa devoção, algo em mim foi tocado. Não pude interrompê-la. - Suas palavras, carregadas de sinceridade, acompanharam-se de um gesto galante: ele tomou minha mão e roçou-lhe um beijo delicado, o calor de seus lábios fazendo meu coração vacilar.
Conduziu-me até o sofá próximo, onde sentamo-nos lado a lado. Sua presença, embora inesperada, era curiosamente reconfortante.
- Não pude evitar ouvir vossa súplica, Senhorita Anne. Gostaria de dizer-me que desejo oculto de vosso coração mencionastes em vossa oração? - perguntou ele, fitando-me com intensidade, sua voz um sussurro profundo.
Hesitei. A confissão que guardava era uma verdade dolorosa que raramente ousava encarar. Ele fez uma carícia em uma de minhas mãos, com um gesto suave e terno, como se desejasse aquecer meu espírito e acalmar minhas inquietações. O toque foi leve, como a brisa suave que acaricia a pele, e ao senti-lo, um arrepio doce percorreu meu braço. Meu coração, agitado, pareceu cessar por um momento, e uma sensação de calma invadiu-me, como se suas mãos carregassem um poder silencioso de confiança. Um suspiro escapou de meus lábios, e por um breve instante, pude acreditar que tudo ficaria bem.
Por fim, em voz trêmula, confessei:
- Meu desejo era desposar um homem que amasse e fosse amado por mim. Contudo, o Príncipe e eu não compartilhamos tal sentimento. Nosso enlace foi orquestrado por conveniências que transcendem nossos corações.
- Lamento profundamente por vós, Anne. Quem me dera que os ventos do destino soprassem de outra forma, e que os caminhos pudessem ser mais suaves para vós. - As palavras de Henry soaram como um eco distante, carregadas de uma melancolia que me tocou profundamente.
- Não lamenteis, Henry. Tais são os desígnios que o destino nos reserva, e, por mais que o nosso coração clame, não temos o poder de alterar os seus rumos. Não é por minha vontade que os planos se mudam, mas sim pela força invisível que nos guia. - Sorri, embora o sorriso estivesse mergulhado na tristeza, e preparei-me para retirar-me, desejando fugir daquela situação que apertava meu peito. Mas antes que pudesse levantar-me, ele tomou minhas mãos novamente, com uma firmeza que me paralisou.
Com um gesto inesperado e íntimo, Henry posou suavemente a mão em meu rosto, seus dedos traçando uma linha delicada pela curva de minha face, como se quisesse gravar aquele instante na memória. O calor de seu toque espalhou-se por meu corpo, mas, ao mesmo tempo, uma corrente de confusão atravessou meu ser, e um turbilhão de sentimentos, que não ousava compreender, começou a se formar dentro de mim. Meu coração vacilou, dividido entre a dúvida e uma sensação doce, mas também angustiante, que eu não sabia nomear. O tempo pareceu parar naquele breve momento, mas, finalmente, como se despertasse de um feitiço, afastei-me, deixando-o só, solitário no grande salão vazio, enquanto eu seguia para os aposentos.
Entrei em meu quarto, onde o silêncio da noite foi meu único companheiro, como uma capa densa que me envolvia. A luz da lua filtrava-se pelas cortinas, lançando sombras suaves sobre o mobiliário antigo.
Deitei-me na cama, mas o sono não me encontrou. Meu espírito estava inquieto, repleto de pensamentos confusos e desordenados, como um rio revolto, sem rumo certo. O peso da responsabilidade e da decisão que me aguardava no amanhecer era quase insuportável, e por mais que fechasse os olhos, a agitação dentro de mim não cessava. A imagem de Henry voltou a me atormentar, e eu revivi a maneira como ele segurara minhas mãos, forte o suficiente para que eu sentisse sua firmeza, mas gentil, como quem segura algo frágil. E aquela carícia em meu rosto... Como se quisesse apagar a mágoa de meu coração, mas também me marcar de uma maneira que eu não podia compreender.
As horas se arrastaram lentamente, como um relógio cujos ponteiros se recusam a se mover. Finalmente, depois de muito virar-me e de lutar contra meus próprios pensamentos, cai em um sono profundo, mas conturbado, repleto de sonhos inquietos e pesadelos que se misturavam à realidade.
Quando a aurora enfim rompeu o horizonte, trazendo consigo as primeiras luzes do dia, o som de passos apressados reverberou pelos corredores do castelo. Minha mãe adentrou o quarto com um sorriso radiante e olhos brilhando de entusiasmo.
- Bom dia, minha filha! O grande dia chegou, o dia de vosso destino, o dia que mudará o curso de vossa vida! - Suas palavras, cheias de euforia, trouxeram-me de volta à realidade, como um golpe de espada a cortar o véu da minha indecisão.
Suspirei profundamente, e o peso do que estava por vir caiu sobre meus ombros como uma capa de ferro. Levantei-me, o corpo ainda pesado de cansaço e de apreensão, pronta para enfrentar o futuro que me aguardava, mesmo que meu coração, nesse momento, desejasse outra senda, um caminho onde eu pudesse escolher a liberdade.