Ele fechou os olhos por um instante, e quando os abriu, seu semblante estava pesado, como se carregasse todo o peso do mundo.
– Porque ela não pertence à nobreza – disse ele, com uma amargura tão profunda que quase cortava o ar. – E no mundo ao qual pertenço, jamais aceitariam que uma plebeia ascendesse ao trono como rainha. Isso, minha nobre Anne, é um sonho impossível.
Ele abaixou a cabeça, os ombros curvados como os de alguém que lutou batalhas perdidas demais. Meu peito apertou-se com a injustiça de suas palavras, mas não havia nada que eu pudesse dizer para mudar aquilo. Suspirei longamente, contendo qualquer emoção que ameaçasse transparecer, e respondi, tentando soar tão firme quanto me era possível:
– Sinto muito pôr as coisas serem como são, Alteza... Não posso sequer imaginar a dor de carregar esse fardo. Quanto ao nosso enlace... farei o que me cabe como vossa esposa, cumprindo todas as minhas obrigações, mas prometo não esperar nada de vós além do respeito que já me ofereceis.
Por um momento, ele me olhou, e naquele olhar havia uma gratidão silenciosa, mesclada a uma tristeza infinita. Esforcei-me para lhe oferecer um leve sorriso, um gesto pequeno, mas que talvez lhe trouxesse um alento. Afinal, éramos ambos prisioneiros de um destino que nenhum de nós escolhera.
- A senhorita é mais benevolente do que este humilde servo poderia jamais merecer - disse ele, soltando um suspiro carregado de angústia. - Perdoai-me, Anne, por não ser o cavalheiro digno que vós mereceis, especialmente sabendo que esta aliança, para ambos, não passa de um fardo imposto pelo destino.
Engoli em seco, sentindo meu peito apertar, mas mantive o olhar firme. Respondi calmamente, tentando disfarçar o nervosismo:
- Alteza, não sei o que esperar deste casamento, mas acredito que estamos ambos em uma posição de pouca escolha. Não precisa se preocupar comigo.
Ele balançou a cabeça, interrompendo-me gentilmente:
- Não, senhorita. Eu preciso me preocupar. Porque, embora estejamos presos a este arranjo, eu não quero ser o motivo da vossa infelicidade. Sei que talvez não consiga dar-lhe o que sonha, mas prometo, pela minha honra, que farei o possível para garantir que sua vida aqui, ao meu lado, seja suportável.
Suas palavras foram tão inesperadas que fiquei sem resposta por um instante. Ele parecia genuíno, mesmo que seu tom fosse de alguém que se via preso em uma batalha perdida. Respondi com um pequeno sorriso:
- Alteza, o simples fato de estar sendo honesto comigo já significa muito. Se pudermos continuar sendo francos um com o outro, acredito que podemos encontrar alguma paz nesse caminho que nos foi imposto. Que nossas palavras sejam como alicerces para uma fortaleza em ruínas, sustentando o que resta de esperança.
Ele suspirou, como se um peso tivesse sido retirado de seus ombros, e um leve sorriso cruzou seu rosto.
- Serei eternamente grato a vós, por toda a benevolência que vossa graça me concedeu neste dia. Que vossa generosidade seja sempre lembrada como um bálsamo para um espírito fatigado.
Acenei com a cabeça e, com um gesto suave, lhe ofereci um leve sorriso, como quem transmite em um olhar toda a gratidão e afeição que palavras não poderiam abarcar.
- Quando, por ventura, necessitares de palavras ou consolo, saiba, que em mim encontrarás uma amiga fiel, disposta a ouvir e a partilhar o peso de vossas inquietações.
Com isso, ele tomou minhas mãos com delicadeza, e, em gesto de profunda gratidão, depositou um beijo suave sobre elas, como quem reverencia não só a pessoa, mas também a bondade que lhe fora oferecida.
Deixamos o gazebo e começamos nosso trajeto de volta ao Palácio.
Enquanto caminhávamos, me peguei pensando em tudo o que Fillipe havia me confessado. Embora nossas palavras tivessem sido pesadas, algo no ar entre nós parecia mais leve. Talvez, apesar das correntes do destino, pudéssemos construir algo que fosse, ao menos, verdadeiro em meio à obrigação.
Lembrei-me então de meu pai, e do importante cargo que ele assumirá com meu infortúnio, um peso que jamais imaginei que ele teria de carregar. O pensamento de vê-lo tomando tal decisão fez meu coração se apertar, pois nunca pensei que ele faria isso comigo. Ele sempre foi o pilar da minha vida, um homem de caráter inabalável, que com mãos firmes e coração generoso guiava nossos passos. Mas agora, ao que parece, a sombra da ganância e9 a necessidade de garantir o futuro, falou mais alto do que o amor que ele sempre professou por sua única filha.
Apesar disso, não guardo ódio em meu coração, nem ouso julgar suas ações. Ele, em sua visão, age por nosso bem, pensando no futuro de minha mãe e no meu, assegurando que, no dia em que ele faltar, estaremos protegidas, mesmo que à custa de um sacrifício que jamais imaginei.
De volta ao lar, caminhei em passos ligeiros e silenciosos pelas largas galerias de pedra, onde o eco de meus calçados ressoavam como um lamento. Ao chegar a meus aposentos, empurrei a pesada porta de madeira esculpida e adentrei o quarto que, banhado pela luz dourada do entardecer, parecia guardar os segredos de minha alma. Com dedos trêmulos, despi o vestido rosado, cujas dobras ainda traziam o aroma das flores do jardim onde conversara com meu prometido.
Pouco depois, lavei meu rosto e mãos com a água fresca do jarro de prata repousado sobre a mesa, sentindo o frio tocar minha pele, como se quisesse trazer-me de volta à realidade. Enverguei então uma camisola de alva seda, tão leve e delicada que parecia quase etérea, suas bordas adornadas com finíssimos bordados de flores, obra das mãos habilidosas de uma dama de meu séquito.
Caminhei até o leito amplo, onde os lençóis de linho perfumados com lavanda esperavam por mim. Lancei-me sobre eles, como quem se entrega à própria fragilidade, e levei ambas as mãos ao coração, que batia descompassado, repleto de incertezas e temores.
- Muito bem, Anne - murmurei, minha voz soando como um sussurro perdido na vastidão. - Parece que o fado foi severo contigo. Em breve serás desposada, e com isso, te tornarás rainha. - suspirei longamente, como se cada palavra carregasse o peso de uma vida inteira. - Tudo quanto resta agora é acolher, com resignação, aquilo que o porvir há de trazer.
Fitei o teto entalhado em madeiras escuras e intricadas, imaginando que as estrelas do céu, tão distantes de meu alcance, observavam em silêncio meu destino inevitável.