A venda dos dois imóveis com toda certeza me faria levantar algum dinheiro e quem sabe até eu pudesse em fim comprar o meu apartamento, e ter minha casa própria.
Mas o que eu vou falar para aquela víbora?
Não tenho como chegar lá e expulsar ela, depois de tantos anos, por mais que isso fosse me dar uma alegria sem fim... Mas ela precisa saber que eu voltei, e que irei exigir meus direitos de filha.
Quando comecei a faculdade de direito, noventa por cento da minha vontade era me formar e um dia voltar lá e tomar posse do que por direito é meu, afinal de contas, poder pagar um advogado hoje em dia não é algo fácil, e eu sempre soube que tirar Mayra de lá não seria uma tarefa fácil.
De todo modo, mesmo tendo estudado poucos semestres e estar ainda longe de me formar, ela precisa saber que vou exigir o que é meu, e que por bem ou por mal, terá que sair do que é meu, ou melhor, do que era do meu amado pai.
Acho que fazem quase dez anos que eu não vinha até East End, eu cresci aqui, fui muito feliz aqui. Conheço muitas pessoas que ainda vivem neste bairro, e uma lágrima escorre pelo canto dos meus olhos involuntariamente quando vejo a vendinha do Sr. Roque, exatamente da mesma forma como era há anos atrás.
-Alice, é você?
Uma voz um pouco abafada me traz de volta dos meus pensamentos.
Olho para o lado, mas não vejo ninguém de imediato.
Pouco tempo depois um senhor já de cabelos completamente grisalhos, sai de traz do balcão e vem caminhando a passos lentos em minha direção.
-Sr. Roque, que alegria rever o senhor.
Ele me abraça no mesmo instante em que chega perto de mim.
-Minha filha, como você cresceu! Seu pai ficaria orgulhoso em vê-la linda desta forma.
-Obrigada! E o Senhor, não mudou nadinha, está exatamente igual.
-Para com isso minha filha, os anos chegaram e com eles o peso nos joelhos também. Mas o que traz você aqui a essa hora?
Silêncio.
Suspiro duas vezes, antes de conseguir responder algo.
-Hoje tem luta na sua academia, veio assistir?
Eu tinha me esquecido que sexta-feira sempre tinha evento desse tipo, eram lutas clandestinas, mas que valiam algum dinheiro, meu pai começou isso como uma brincadeira há anos atras, e a tradição foi se mantendo durante o passar dos anos.
Eu só não imaginava que ainda hoje, pessoas lutavam ilegalmente por dinheiro.
-É verdade, hoje é sexta-feira.
E sabendo disto, com certeza aquela vadia estava lucrando em cima desses eventos. Minha casa, minha academia, meu dinheiro, tudo que aquela mulherzinha me tirou, tudo era meu por direito, ela era uma rameira que não tinha nada na vida, apenas enganou meu pai, que depois de tanto tempo sozinho, caiu nas garras dela, o coitado logo em seguida adoeceu, e ela só saiu no lucro no final de tudo.
Já era passado das oito da noite quando entrei pela porta da academia. Tudo estava exatamente igual, as mesmas paredes, o mesmo ringue, os mesmos sacos de pancada, o mesmo cheiro, tudo igual. Só não tinha mais meu pai ali.
No lugar do quadro com a foto dele ganhando seu primeiro título nacional, estava um quadro de Mayra, usando luvas de boxe rosa, com uma roupa de onça apertada, acentuando os peitos siliconados, que com toda certeza vieram depois da morte do meu pai.
Meu estomago embrulhou vendo aquela mulher estampada no alto da parede da academia.
-Alice? Não acredito que é mesmo você!
-Deamon? É você? Você cresceu!
O garoto que antes era franzino, e que costumava me irritar andando de bicicleta dentro da academia, agora tinha o dobro, ou melhor, o triplo do tamanho.
-Isso não costumava ser assim... Se eu bem me lembro, eu batia em você...
Deamon abre seu largo sorriso, em uma gargalhada. Isso não havia mudado, ele era um ou dois anos mais velho do que eu, e nós vivíamos colados, costumávamos brincar que nos casaríamos um dia, e que nosso filho seria um lutador mundialmente conhecido. Bons tempos...
-Você está linda!
-Você também, não está nada mau...
-Assim você me deixa sem graça hein? E aí, o que te traz por aqui? Veio ver minha luta?
-Como assim? Você luta agora?
-Estou tentando seguir carreira no UFC, mas é difícil chegar lá, requer patrocinadores bons, e dinheiro, então até isso acontecer, eu faço umas lutas para levantar uma grana...
-E você vai lutar hoje?
-Sim, em exatos vinte minutos.
-Certo, sendo assim, então, eu vim te assistir! Manda a ver!
-Com essa torcida, nada me fará perder esta noite – Deamon pisca pra mim, e uma leve pontada de alegria me invade em meio ao caos.
Deamon se tornou um belo homem, alto, forte, cabelos e olhos negos como o céu ao anoitecer, barba alta e bem feita, algumas tatuagens espalhadas pelo corpo. Era nítido que as poucas mulheres ali presente, estavam babando por ele.
-Sua madrasta está lá em cima – Deamon me tira dos meus pensamentos, e eu a vejo pelo vidro do mezanino. Ela não me vê e eu agradeço por isso.
-Ela sempre está por aqui nas lutas Deamon?
-Sim, logo após... – Ele faz uma pausa e me fita, antes de continuar – Após seu pai nos deixar, ela seguiu organizando as lutas. Ela virou a "madame tatame" falou apontando para o quadro ridículo que estava pendurado na parede logo abaixo do mezanino.
Uma sineta nos tira de nossa conversa agradável, e ouço a voz estridente de Mayra anunciar a próxima luta:
"Senhoras e senhores, a última luta desta noite promete, teremos um confronto inédito neste tatame, as apostas estão batendo o record, quem ainda não fez e quiser aproveitar, esses são os últimos minutos. Vamos pessoal, enquanto nossos atletas entram no ringue!"
-Bom, essa é a minha deixa. Te vejo mais tarde então?
-Talvez... E Deamon... Boa sorte, arrebenta!
-Sempre! – Ele sai piscando pra mim com um semblante confiante.
Me misturo as demais pessoas, não queria que a madame tatame me visse antes de eu ter a oportunidade de enfrentá-la cara a cara. Minha ideia inicial era pegá-la desprevenida.
Ouço novamente a voz de Mayra anunciar os lutadores pelas caixas de som.
"De um lado, nosso querido local Deamon, que já foi responsável por muitas vitórias neste ringue, e está há dez lutas sem perder. Do outro lado Guto, o Bárbaro, e como muitos aqui já sabem de sua fama, nem preciso me estender...Boa luta senhores, que vença o melhor!"
Minha cabeça esta focada em Mayra e eu tento procurar algumas formas de entrar lá se surpresa, mas algumas outras pessoas estão junto dela lá em cima como se estivessem guardando uma fortaleza, e o que me parece um segurança cuida da porta.
Meu pai jamais precisou disso. O ódio corrói meu corpo e eu preciso respirar fundo algumas vezes para não invadir aquela sala e quebrar a cara daquela maldita.
Respira Alice. Foco.
Quando a luta da início, é então que volto meu olhar para o ringue.
Deamon está completamente focado, seu adversário é maior que ele em tamanho e aparentemente em força muscular, o outro lutador tem o rosto pintado de vermelho sangue, uma faixa apenas na área dos olhos, como se fosse uma espécie de máscara.
Ele me parece familiar, mas no mesmo momento sou empurrada por um velho na plateia que derrama bebida, quase me acertando.
Merda.
Me afasto um pouco e volto minha atenção ao ringue. É neste exato momento meu corpo congela.
Não é possível. Não pode ser ELE. Impossível Alice.
Impossível.
O oponente de Deamon, luta muito bem, e acerta um Upper nele, que cambaleia a ponto de quase cair.
É ele mesmo. Puta que o pariu.
Se não for ele, é um irmão gêmeo.
Augusto Cipriati e Guto o lutador clandestino, são a mesma pessoa. Como isso é possível? O que ele faz aqui?
Deamon cambaleia novamente, apoia uma mão no chão, mas volta se recuperando bem e acertando uma sequência de socos em Guto. Que recebe todos sem se abalar grandemente.
Ele é realmente bárbaro. Puta que o pariu. Vamos Deamon reage.
Me vejo torcendo internamente para que ele não se machuque.
Uma nova sequência de socos e chutes é disparado em direção a Deamon, que a esta altura já está com o supercílio cortado e sangrando consideravelmente.
Essa merda não tem pausa? Meu pai jamais permitiria isso. Amaldiçoou Mayra por essa insanidade.
Deamon segue apanhando. Guto cai por cima dele, o prende com os joelhos no chão e segue acertando o rosto de Deamon.
Empurro algumas pessoas que estão na minha frente e me aproximo do ringue, gritando para que Deamon se levante.
-Vamos Deamon, levanta a guarda! Reage! Levantaaaaa!
Nesse exato momento, o olhar de Guto encontra o meu, e eu não sei explicar exatamente qual o meu sentimento além de desespero em ver Deamon ensanguentado no chão, mas é neste milésimo de segundo que Deamon acerta o queixo de Guto, e ele cai para o lado visivelmente abalado.
Deamon, mau consegue enxergar, seu olho esquerdo está fechado de tão inchado, o sangue atrapalha muito o olho direito, ele está tonto, é nítido, mas consegue se levantar e acerta Guto em cheio que estava tentando se manter pé novamente.
Guto se escora no ringue bem ao lado de onde estou, e eu juro que o ouço dizer quase sussurrando "você", mas sendo bem honesta, neste ponto eu já não saberia mais dizer o que era verdade, e o que era minha imaginação em pleno desespero.
Parem com essa merda logo. Isso tem que ter fim.
Guto volta pro centro do ringue, e com um chute rodado, finaliza Deamon.
Ele para de bater e me fita de dentro do ringue como se não houvesse mais ninguém ali por alguns segundos, antes de sair.
Umas pessoas entram no ringue para socorrer Deamon, e eu não vejo mais Guto. Não o vi subir para pegar o dinheiro da vitória, não o vi acompanhado de mais ninguém, não o vi sair da academia, não o vi mais em lugar nenhum.