Fiquei menstruada ontem e passei a noite inteira me revirando, sem conseguir dormir porque as cólicas estavam me matando. Tenho olheiras que a base não conseguiu cobrir, e tenho certeza de que meu rosto ainda está inchado. Nós duas sabemos que estou parecendo um desastre, mas ninguém jamais ousaria dizer algo do gênero para a filha de Núncio Veronese.
- E adoro a blusa que está usando, - continua ela. - Quem é o
estilista? Deve ser uma grife super cara.
- Minha irmã fez, - murmuro e dou uma olhada por cima do ombro, procurando minha amiga Dania, esperando que ela me salve.
- Oh. É adorável. - Ela sorri. - Eu estava dizendo a Oreste que vocês dois formariam um casal perfeito. Vou dizer-lhe para ligar para você na próxima semana, Nera, minha querida. Ele acabou de comprar um carro novo, o último modelo da Tesla, e tenho certeza de que você gostaria de dar uma volta.
Eu me arrepio. Oreste é um conhecido devasso que usa muito gel no
cabelo e praticamente toma banho de colônia, ainda pior do que a mãe dele.
- Estou ocupada na próxima semana. Talvez em outro momento.
- Perfeito. Tenho certeza de que Don Veronese aprovaria que vocês dois se encontrassem. - Ela sorri e se inclina para sussurrar em meu ouvido. - Seu pai gosta muito do meu filho, e tenho certeza de que ele está pensando em fazer de Oreste um capo.
E aí está. O verdadeiro motivo pelo qual ela está tentando me juntar à sua prole. Não porque ela goste de mim, ou porque acredite que realmente faríamos um bom par, mas porque o filho dela teria mais facilidade para subir na hierarquia com a filha do dono como namorada. Isso nem me surpreende mais.
- Tenho certeza de que sim. Ah, ali está Dania. Preciso ir cumprimentála. - Pego um copo de limonada gelada na mesa próxima e corro em direção à minha amiga do outro lado do jardim. Ela está tentando freneticamente chamar um garçom e está completamente alheia à minha lenta sufocação pela educação social. Mantenho o foco na minha melhor amiga enquanto me espremo entre os convidados da festa, esperando não ser pega por um contato visual indesejado com outra pessoa.
- Nera, querida! - Alguém de um grupo à minha esquerda roça meu
braço quando passo por eles. - Seu cabelo está maravilhoso.
Obrigada. - O rabo de cavalo no topo da minha cabeça não é nada
impressionante, mas foi o máximo de esforço que consegui fazer depois de lavar o cabelo hoje de manhã.
- Oh, Nera, eu não sabia que estava aqui. - Um cara que parece vagamente familiar se materializa bem na minha frente, fazendo-me parar de repente. Acho que ele é um dos sobrinhos do subchefe. - Isto aqui é muito chato. Que tal sairmos de fininho e irmos tomar um drinque em algum lugar?
- Hum, não. Obrigada. - Eu o contorno, mas fico cara a cara com Jaya, a prima de Dania.
- Sentimos sua falta no sábado. - Ela me dá um sorriso enorme e falso. - Melinda ficou desapontada quando você não apareceu.
Sim, tenho certeza de que a irmã dela ficou arrasada por eu não ter ido ao
chá de bebê dela. Não porque ela quisesse que eu estivesse lá para compartilhar sua felicidade, mas porque agora ela não pode dizer que a filha do Don foi à sua festa.
- Eu só encontrei sua irmã uma vez, Jaya, - eu digo. - Você me convidou para o aniversário dela, mas quando cheguei, ela só pegou o presente e nem se deu ao trabalho de se apresentar para mim.
- Ela não sabia quem você era! Se soubesse, tenho certeza de que a
teria tratado de forma diferente.
- Exatamente o que quero dizer. Por favor, transmita meus melhores
votos.
Deixo Jaya olhando para minhas costas e corro para Dania. Ao que parece, ela está tentando convencer o pobre garçom a lhe trazer uma bebida alcoólica.
Preciso sair daqui, - sussurro ao puxar seu braço. - Agora.
- Claro. - Ela pega uma taça de vinho branco da bandeja do garçom e deixa que eu a arraste pelo gramado em direção à fonte de pedra nos fundos do jardim.
- Isso deve funcionar. - Faço um gesto para o banco de ferro ao lado da fonte de água e me sento. A sombra de um grande carvalho nos esconde nesse local, apesar dos postes de luz próximos.
Dania dá uma olhada por cima do ombro para a multidão que está curtindo a noite do lado de fora da mansão em estilo colonial do outro lado da propriedade. - Você acha que alguém vai notar nossa ausência?
- Algum figurão fará um discurso em breve. Todos estarão ocupados demais ouvindo suas divagações e batendo palmas como idiotas sem noção. - Tomo um gole de minha limonada. - Papai disse que eles conseguiram persuadir esse cara a aprovar um projeto de lei no Legislativo estadual que ajudará a família. - Algo sobre cassinos?
- Pode ser. Não estou a par de todos os empreendimentos comerciais
desde que saí de casa.
- Ainda não acredito que o Don deixou você sair de casa. - Ela se
senta ao meu lado.
- Eu também não. - Dou de ombros. - Quando lhe disse que tinha comprado uma casa com o dinheiro que mamãe me deixou, ele teve um ataque. Recebi um longo sermão sobre como é ultrajante para a filha do Núncio Veronese morar sozinha, em um apartamento de merda. 'O que as pessoas diriam?'.
- Então, você conseguiu convencê-lo?
Eu tentei. Ele ameaçou me arrastar de volta para casa se eu ousasse ir
embora, depois me expulsou do escritório dele. Mas na semana seguinte, ele me disse que tinha pensado sobre o assunto e decidiu me deixar ter meu espaço.
- Gostaria que meu pai fosse mais parecido com o seu. - Dania toma um grande gole do copo e tosse. - Vou fazer vinte anos no mês que vem. Meu pai já começou a bancar o casamenteiro. No ano que vem, por esta época, estarei casada.
Eu me encolho. - Lamento.
- E quanto a você?
- Graças a Deus, não estamos fazendo nenhum casamento arranjado no
momento. Eu disse ao meu pai que estou cansada de não fazer nada todos os dias e que quero ir para a faculdade, ou pelo menos fazer alguns cursos on-line, antes de deixá-lo me prender em um casamento arranjado. Quando ele discordou, eu lhe disse que me despiria e sairia dançando pela City Hall Plaza, arruinando minha reputação e, possivelmente, todas as perspectivas de casamento futuro - para sempre.
- Acho que você ainda será um bom partido, mesmo depois de mostrar
sua bunda nua. - Dania ri.
- Talvez. Mas você consegue imaginar o escândalo que isso criaria? Meu traseiro seria o assunto principal das fofocas da Cosa Nostra durante anos.
- Eu ainda não entendo por que você quer ir para a faculdade. Vocês
são tão ricos que nunca precisará trabalhar um dia sequer na vida. E tenho quase certeza de que, quando se casar, seu marido não permitirá que tenham um emprego de qualquer maneira.
- Eu sei. Mesmo assim, fui aceite no programa de tecnologia
veterinária on-line. Vou começar as aulas neste outono.
Dania se engasga com o vinho, cuspindo para todos os lados, e começa a
rir. - A filha do Don, dando injeções em galinhas e ajudando a parir leitões?!
- Bem, acho que talvez eu tenha que passar por tudo isso em algum momento. - Eu também ri.
- Então, esse é o verdadeiro motivo pelo qual você começou a ajudar na
clínica veterinária! Achei que estava apenas entediada.
- Digamos que eu precisava mudar de ares. E é divertido. Trouxeram um cachorro de rua na semana passada e eu pude ver o veterinário costurar um ferimento no estômago do pequeno malandro.
- Nera! Isso é nojento.
- Na verdade, não. Eu gosto bastante disso. Fingir ter uma vida normal e tudo mais. - Suspiro. - A mãe de Oreste me encurralou mais cedo. Ela quer me apresentar a ele. Acho que vou encerrar a noite e voltar para casa.
- E quanto à sua equipe de segurança?
Inclino a cabeça para o céu, contemplando as estrelas. Papai insiste que eu leve comigo os seguranças sempre que saio tarde para algum lugar, mas não estou a fim. É difícil agir como se estivesse levando uma vida normal quando se tem guarda-costas atrás de você. - Hoje não.
- O Don ficará furioso se descobrir.
- Com certeza. - Eu bufo. - Bem, vou embora, então. Preciso estar de pé às sete. Temos uma cesariana em uma gata marcada para amanhã de manhã.
- Eu a invejo, sabe. Brincando de médica de animais enquanto eu
preciso começar a procurar um vestido de noiva perfeito.
- Não é preciso. Em breve, também estarei procurando por um. Papai me deu apenas alguns anos de graça, mas depois também estarei no mercado de casamentos. - Toda vez que vou aos almoços de domingo que papai ainda insiste que devo participar, fico com medo de que ele me diga que mudou de ideia. Desde que fiz dezenove anos, ele vem insinuando, não tão sutilmente, que estou pronta para me casar. - Eu só rezo para que ele mantenha sua palavra e me deixe em paz até que Massimo seja libertado.
- Sim, - diz Dania. - Você é um ativo valioso demais para não ser
usado.
- Sim. Um ativo.
- Você tem alguma ideia de com quem pode acabar ficando?
Um arrepio percorre minha espinha. - Não. Só espero que não seja ninguém do Clã Camorra. Ouvi papai conversando com o subchefe e parece que houve negociações com eles recentemente.
- Deus, Nera. Espero que seu pai não escolha ficar do lado da Camorra e casá-la com Alvino. Dizem que ele bateu muito na garota com quem estava saindo. Ela foi parar em um hospital.
Sempre houve rumores de que Alvino era um valentão. Acho que isso não o prejudica como líder do Clã Camorra. - Ainda bem que meu pai odeia Alvino e Camorra. Acho que ele nunca assinaria uma trégua com eles, mas mesmo que isso acontecesse, ele nunca me faria casar com aquele bastardo.
- Tem certeza?
- Claro que tenho certeza. - Dou um rápido beijo na bochecha de Dania, depois me levanto do banco e pego minha bolsa. - Vejo você na sextafeira. Divirta-se.
Ao atravessar o gramado em direção ao estacionamento, dou outra olhada nos convidados da festa bebendo e rindo no quintal da casa da minha infância. Quando eu era pequena, adorava me esconder atrás do corrimão da escada com minha irmã mais nova, Zara, observando os homens e mulheres elegantemente vestidos enquanto circulavam pelo grande salão abaixo. Meu pai sempre gostou de dar festas e, quando o Don mandava um convite, ninguém se atrevia a recusar. Os preparativos geralmente levavam dias, e mamãe se certificava de que tudo, desde os talheres até à música, fosse organizado de acordo com seus altos padrões. Ela nunca foi fã de festas, mas sempre se destacou como a grande anfitriã. Manter os membros do alto escalão da família felizes era importante. Mantê-los próximos era crucial.
Lembro-me de olhar com admiração para aquelas pessoas lindas,
desejando ser mais velha para poder estar entre elas. Imaginei o vestido que usaria em minha primeira festa - branco, com uma grande saia com babados. E saltos pequenos, talvez dourados ou prateados. Eu estava tão ansiosa para fazer parte do mundo deles.
Até aquela noite, há quatorze anos.
Era véspera de Ano Novo, e toda a casa estava decorada com lindas fitas douradas com pequenos detalhes vermelhos nas pontas que eu ajudei mamãe a escolher. Bem, na verdade ela era nossa madrasta, mas nem Zara nem eu a chamávamos assim. Nossa mãe morreu ao dar à luz Zara, e Laura foi a única mãe que conhecemos.
Naquela noite, as mesas estavam cobertas por panos de cetim branco com grandes laços dourados presos nos cantos. Magníficos arranjos de flores serviam de centro de mesa em cada mesa. Nossos pais estavam de pé ao lado da grande árvore de Natal - papai em um terno preto elegante e mamãe em um lindo vestido de seda que combinava com o azul de seus olhos. A festa de Ano Novo era sempre muito importante e, além dos membros da família, muitos políticos e outros funcionários do governo estavam presentes. Eu não sabia quem era quem, mas me lembro de apontar para um homem com uma longa barba branca, que estava rindo de uma piada que nosso pai havia feito, e dizer a Zara que ele era um juiz, e não o sultão que vi no filme Aladdin. Papai me disse isso quando nos viu mais cedo naquela noite. Mas Zara disse que o homem parecia mais com o Papai Noel.
Massimo, nosso meio-irmão, estava no hall de entrada, logo abaixo da escada onde Zara e eu estávamos escondidas no último andar, em uma discussão séria com dois homens. Ele tinha vinte anos na época, mas sempre pareceu mais velho. Talvez porque estivesse sempre com a cara fechada e séria. Massimo nunca deu muita atenção a mim e a Zara, provavelmente éramos jovens demais para ele se preocupar, mas ele e nosso irmão mais velho, Elmo, eram inseparáveis.
Ao longo dos anos, sempre me perguntei como os dois se davam tão bem
naquela época. A personalidade rabugenta e antissocial de Massimo era o completo oposto da personalidade alegre e franca de Elmo. Embora tivessem idades próximas, Massimo agia como se fosse pelo menos uma década mais velho do que o divertido e despreocupado Elmo.
Assim, enquanto meu meio-irmão se dedicava aos negócios, Elmo estava
apoiado na coluna de mármore perto da entrada da frente, flertando com uma linda mulher de cabelos ruivos. Não que eu soubesse o que era 'flertar' quando tinha cinco anos, mas ao me lembrar daquela noite, à medida que crescia, mais e mais detalhes se tornavam claros em minha mente.
Elmo tinha acabado de completar dezoito anos pouco tempo antes daquela festa, e lembro-me de pensar como ele parecia adulto em seu smoking preto. Ele estava provocando uma mulher com quase o dobro de sua idade, fazendo-a soltar uma risada engraçada que fazia Zara e eu rirmos. Provavelmente, ele deveria estar se misturando com os capos, como era esperado que o filho do patrão fizesse, mas não. Massimo era sempre aquele que fazia o que era esperado.
O cheiro de fumaça de charuto, álcool e comida chique chegava até ao andar superior, onde Zara e eu estávamos espiando as atividades lá embaixo. Minha irmã gritava cada vez que notava um novo vestido bonito, e eu tinha de lembrá-la a cada momento de ficar quieta para não sermos descobertas.
Eu gostaria de não ter feito isso.
Gostaria que alguém tivesse nos visto e nos mandado de volta para
nossos quartos.
Era quase meia-noite, e todos estavam rindo. Um homem de terno branco tocava uma música no piano que havia sido trazido especialmente para a ocasião. Os garçons se movimentavam entre os convidados, carregando bandejas com delicados copos altos erguidos acima de suas cabeças. O champanhe para o brinde. Um evento verdadeiramente extravagante e festivo.
Mal percebi o tumulto na porta da frente quando dois homens começaram a discutir. Eu não conseguia ouvir o que eles estavam dizendo por causa do barulho da festa, mas parecia importante, porque as vozes elevadas de repente se transformaram em gritos. Quando os homens começaram a se empurrar, com os rostos corados e irritados, Elmo abandonou a senhora de cabelos vermelhos e correu em direção a eles. Sempre pacificador, meu irmão, sem dúvida, pretendia separá-los.
Ele não viu a arma que um dos homens sacou. Mas Massimo obviamente
viu, porque estava correndo em direção à entrada, gritando para Elmo voltar.
Um estrondo ensurdecedor explodiu dentro da sala decorada com ouro e vermelho quando a arma disparou. Elmo cambaleou para trás, levando a mão ao peito. As vozes e a música morreram de repente, como se alguém tivesse desligado um interruptor. O silêncio durou menos de um segundo antes que o rugido animalesco de Massimo preenchesse o vazio. Meu coração batia como um tambor enquanto eu apertava as colunas de madeira do corrimão, vendo Massimo pegar Elmo enquanto meu irmão caía. Instantaneamente, outros gritos ecoaram pela sala enquanto as pessoas começavam a correr para o saguão de entrada. E, em meio ao caos, meu meio-irmão pegou sua própria arma atrás das costas e a sacou.
Outro estrondo soou quando Massimo disparou contra o homem que atirou em Elmo.
Ouvi o eco daqueles tiros por horas. Nem mesmo a sirene estridente da
ambulância que veio correndo para nossa casa ou o barulho do carro do legista que mais tarde levou Elmo embora conseguiu abafar aquele som. E ele ainda trovejava em minha cabeça, acima da batida ensurdecedora da porta do carro de polícia que dividia a quietude da noite, quando os policiais levaram Massimo.
Foi então que a noção idealista do mundo perfeito de minha família estourou como uma grande bolha de sabão.
- Quer que eu pegue seu carro, Srta. Veronese? - A voz do manobrista
me tira da lembrança dolorosa, dispersando as imagens de fitas douradas e sangue.
- Sim, por favor. - Aceno com a cabeça e envolvo meus braços ao redor do corpo. - Obrigada.
Ele diz por cima do ombro: - Bela noite, não é?
Olho para o céu coberto de inúmeras estrelas cintilantes, cercando a
grande lua cheia acima da linha de árvores à distância.
- Sim, - eu sussurro. - Realmente é.
Kai
O cascalho rangia sob as solas dos meus sapatos enquanto eu caminhava
pelo estacionamento vazio, em direção ao prédio residencial de seis andares ainda inacabado. Os postes de iluminação pública ao redor do quarteirão estão apagados, mas a luz forte da lua cheia apresenta uma complicação indesejável, exigindo que eu me mantenha nas sombras.
No momento em que estou me aproximando das portas de serviço, que estão abertas, um ruído suave me chega do lado de dentro. Mantendo meu passo casual, pego minha arma e entro na escada.
- Posso ajudá-lo? - pergunta um homem de macacão do alto da
escada. Um balde com material de limpeza está ao lado dele. Um zelador.
O quarteirão inteiro ainda está em construção e os inquilinos ainda não se mudaram, portanto, não deve haver nenhuma equipe de limpeza por perto a essa hora. Obviamente, a informação que recebi estava errada. Levanto minha arma, apontando para a cabeça do zelador.
- Por favor, - o homem se engasga. - Eu tenho uma família. Dois
filhos e...
Aperto o gatilho antes que ele possa terminar a frase.
Há um baque alto quando o homem cai no chão, seu corpo desce as escadas e cai aos meus pés. O sangue escorre do grande buraco no centro de sua testa, enquanto seus olhos que não enxergam parecem estar me encarando. Algumas culturas acreditam que as almas dos mortos permanecem neste mundo e seguem a pessoa que acabou com sua vida por toda a eternidade. Assombrando-os.
Ele é bem-vindo para se juntar ao exército que já está em minhas costas.
- Estou dentro, - digo em meu microfone Bluetooth e passo sobre o corpo. - Tempo estimado para concluir a missão - quatorze minutos.
- Entendido. Iniciando o silêncio de rádio. - Com essa confirmação, a
transmissão de áudio é silenciada.
Meu alvo deve estar em um dos apartamentos do terceiro andar, conduzindo uma reunião secreta com dois oligarcas do Oriente Médio. Se é sobre petróleo ou armas, ou qualquer outra coisa, não importa. O único aspecto que me interessa é o método preferido para eliminar a marca, se houver um. Os contratos emitidos por militares raramente têm esse detalhe especificado. Normalmente, a única exigência é que nada na cena do crime possa ser rastreado até eles. Os contratos privados, no entanto, geralmente vêm com um conjunto de solicitações específicas, que às vezes são bizarras demais para sequer pensar nelas. Felizmente, essa é uma ordem de morte do tipo 'acertar e dividir, sem testemunhas'. Não é preciso se preocupar com solicitações idiotas. Gosto muito mais desse tipo de contratos.
Chego ao patamar do terceiro andar e sigo pelo corredor em direção a
dois homens que estão na última porta à direita.
- Ei! - grita o primeiro, pegando uma arma dentro do paletó.
Levanto minha arma e disparo dois tiros em rápida sucessão. Os guarda-
costas caem de onde estavam, exibindo buracos de bala idênticos entre os olhos.
A porta do apartamento se abre. Mesmo com o silenciador, o som de um tiro não pode ser completamente suprimido e chamará a atenção. Atiro no homem que está na soleira da porta e, em seguida, mudo minha mira para o próximo homem que está entrando pela porta. No momento em que minha bala encontra seu alvo, uma dor ardente explode em minha perna direita. O maldito conseguiu me acertar. Cerro os dentes, faço força para suportar a dor e entro. De costas para a parede e com a arma em punho, desço o corredor estreito em direção à porta do outro lado.
Um jato de balas perfura a superfície de madeira diante de mim, atingindo minha parte superior do corpo com vários tiros. Cambaleio para trás, permitindo-me apenas um segundo para respirar e, em seguida, chuto a porta para abri-la. No meio da sala, um capanga está trocando o carregador de sua arma. Sem hesitar, atiro duas vezes em seu peito. Ele cambaleia para trás, com a arma batendo no piso de concreto. Outro tiro em sua testa e seu cadáver também cai no chão. Um de meus antigos colegas tinha um ditado: 'Nunca presuma que alguém está morto até que ele esteja com um buraco na cabeça'. É um mantra sólido.
Coloco a mão livre no quadril e olho em volta. O espaçoso estúdio está vazio, as paredes brancas, antes imaculadas, agora estão pintadas de vermelho e apresentam perfurações recentes. Não há sinal do meu alvo ou de seus parceiros em lugar algum. O cheiro de tinta fresca paira no ar, mas ainda sinto um leve odor de pólvora quando me dirijo ao banheiro e abro a porta com um chute.
Três homens de terno estão agachados ao lado do vaso sanitário - roupas
elegantes para morrer no banheiro -, com o rosto pálido e olhos frenéticos. Atiro na cabeça do mais próximo e depois cuido dos outros dois no mesmo estilo. Ao verificar se os homens mortos eram realmente meu alvo e seus associados, toco o botão de comunicação no meu fone de ouvido.
- Vocês, seus idiotas, disseram que haveria apenas dois guarda-costas.
- O cliente... - uma voz trêmula vem pela linha. - ...o cliente nos
garantiu que não mais do que dois seguranças estarão com o alvo.
- E quanto à maldita informação de vigilância?
- Hum... O capitão Kruger disse que não havia tempo para isso. - A voz do homem está atingindo um tom histérico. - Sinto muito. Foi um trabalho urgente, Sr. Mazur.
Idiota. - Diga a esse filho da puta que, se ele quer que eu morra, ele mesmo deve tentar me matar.
- Sim, eu o avisarei. - O cara limpa a garganta. - Pode me dizer qual
é o status da missão, Sr. Mazur?
- Realizado, porra! - Tiro o fone de ouvido e o coloco no bolso.
A natureza de meu relacionamento com Lennox Kruger, o chefe da unidade Z.E.R.O., sempre foi ambígua. Ele gosta de dizer que me salvou quando me retirou do centro psiquiátrico para jovens considerados perigosos demais para a sociedade. Na verdade, ele queria um animal de estimação que pudesse condicionar a matar pessoas sem remorso. Bem, ele conseguiu o que queria e muito mais. Tenho certeza de que ele já teria se livrado de mim se eu não fosse o único agente remanescente da unidade Z.E.R.O. original. Com a morte de Belov e Az, sou o último de seus lacaios psicopatas.
Era uma vez, nosso grupo disfuncional de irmãos que foi reunido com um único objetivo: matar alvos rapidamente e fazê-lo sem deixar rastros de quem cometeu o ato. Depois que Az desapareceu e, mais tarde, Belov também foi abandonado, Kruger decidiu deixar o exército e se tornar um empreiteiro independente. Ele montou novas equipes para assumir trabalhos governamentais e privados. Extorsões. Protegendo qualquer pessoa - até mesmo criminosos de alto nível - com bolsos fundos o suficiente para pagar a taxa que ele exigia por métodos inescrupulosos e sem fazer perguntas. Até mesmo derrubar senhores da guerra ou governos de países pequenos, se o preço fosse justo. E, é claro, assassinatos. Essas missões eram atribuídas principalmente a mim. Eu recebia 50% do valor do contrato por cada trabalho concluído - um grande incentivo para continuar trabalhando para o homem que me aterrorizou durante a maior parte de minha adolescência. Mas o fato é que, mesmo sem a conta bancária recheada, eu provavelmente teria continuado a fazer isso. Matar é a única coisa que eu sei fazer.
Gotas de sangue mancham a pia de cerâmica branca brilhante e o lado direito do espelho sobre ela. Quando olho para meu reflexo, uma grande mancha vermelha se agarra ao ponto alinhado com meus olhos no vidro. Que apropriado. Coloquei minha arma no balcão e comecei a desabotoar o paletó.
- Droga, - gemo enquanto solto o Kevlar que estou usando por cima
da camisa.
Várias balas me atingiram no peito, dificultando a respiração. Deixei o colete à prova de balas cair no chão e levantei minha camisa para inspecionar o ferimento próximo ao meu quadril. As fibras antibalísticas não pegaram essa. Cerro os dentes e sinto a pele ao redor do ferimento com meus dedos. A bala não parece ser tão profunda. O obstáculo combinado da porta e do meu equipamento de proteção definitivamente a desacelerou.
Não me preocupo em pegar o colete ou a jaqueta ao sair do apartamento. Meu DNA já está espalhado por todo o lugar comigo sangrando, mas não pode ser rastreado até minha identidade em nenhum banco de dados da polícia. Espero que a equipe de limpeza de Kruger possa cuidar dessa merda. Se não, que assim seja. Outra amostra desconhecida para fazer companhia a todos os outros casos não resolvidos.
O primeiro golpe passou de raspão pela minha coxa, causando um
pequeno incômodo. No entanto, o outro, ao meu lado, pode ser um problema. Eu não planejava levar um tiro esta noite, por isso deixei meu carro a várias quadras de distância. Cobrir essa distância com uma bala alojada logo acima do meu osso do quadril vai ser um saco.
Não há ninguém por perto enquanto eu manco pelo estacionamento -
somente eu, as estrelas e a lua cheia lançando sua luz sobre os arredores desertos.
Paro meu avanço por um momento e observo o céu. Quando eu era criança, sempre saía de fininho quando todos em meu lar adotivo dormiam e subia no telhado para observar o céu. Não era a extensão escura ou sua aparente infinidade que cativava minha atenção, mas sim os pontos cintilantes daquelas estrelas distantes. Elas pareciam tão pequenas, mas seu brilho penetrava na escuridão como se fossem faróis, iluminando o caminho de qualquer pessoa perdida no escuro. Eu estendia a mão e imaginava capturar uma em meu punho, como se pudesse segurar aquela luz salvadora. Mas, ao abrir minha mão, ela se revelava vazia. A luz permanecia no céu, brilhando, tentando-me a tentar novamente, mas sempre fora de alcance.
A última vez que tentei pegar uma estrela, eu tinha oito anos de idade. Meu pai adotivo me encontrou no telhado e me arrastou para baixo pelos cabelos. Ele me levou para o porão, onde me deu uma surra. Depois disso, eu não conseguia nem ficar de pé. Ele me chamou de imbecil e me deixou deitado em uma poça do meu próprio sangue enquanto subia para pegar a lâmina de barbear. Eu já estava muito cansado para lutar com ele quando ele me agarrou pelos cabelos novamente e raspou tudo.
Dois dias depois, quando finalmente consegui andar, encontrei a mesma lâmina de barbear, entrei em seu quarto e cortei sua garganta. Depois daquela noite, nunca mais tentei pegar uma estrela. Acho que isso consolidou minha crença de que o brilho celestial não era para mim.
Viro o rosto para o globo brilhante no céu escuro e fecho os olhos,
imaginando como seria bom nunca mais abri-los.
Nera
O semáforo muda para vermelho, então aumento um pouco o volume da
música e dou uma olhada pela janela aberta. Papai não gosta que eu passe por essa parte da cidade, ele acha que é perigoso, mas é um caminho muito mais rápido. Venho por aqui com frequência porque a clínica veterinária fica no quarteirão seguinte e, de qualquer forma, não há ninguém por perto a essa hora da noite.
Estou cantarolando a música do rádio, tamborilando os dedos no volante, quando um movimento no beco do outro lado da rua chama minha atenção. Parece um homem, caminhando lentamente enquanto se apoia com a mão na parede. Ele para por um momento, depois dá mais dois passos antes de suas pernas cederem, dobrando-se sob ele.
Que merda. Devo ir até lá e ver se ele precisa de ajuda? Não, outra pessoa virá e lhe dará uma mão se precisar. Olho para o semáforo. Ainda está vermelho. Meus olhos voltam para o homem no beco. Ele está sentado no chão agora, apoiado na lateral do prédio, e sua cabeça está inclinada para cima. Provavelmente é apenas um bêbado que se perdeu ou está tão embriagado que não consegue nem andar direito. Ele vai ficar bem, digo a mim mesma, mas não consigo desviar meus olhos dele.
Ele parece estar olhando para o céu, assim como eu havia feito antes. Não era a primeira vez que eu olhava para a noite e me perguntava o que a vida tinha reservado para mim. Será que ele está fazendo o mesmo? Será que, como eu, ele também está se perguntando: 'O que está me esperando lá fora?'
Talvez esse cara não tenha telefone. Se tivesse, ele já teria ligado para
alguém pedindo ajuda, certo? Droga. Piso no acelerador assim que o semáforo fica verde e giro o volante, fazendo uma inversão de marcha, depois empurro o carro para a calçada desolada, parando no vão entre os dois prédios.
Sair do meu veículo e entrar em um beco escuro para checar um cara aleatório é estúpido, mas não posso simplesmente ignorá-lo. Coloco a mão embaixo do banco para tirar a arma que escondi lá. Colocando-a no cós da calça na parte de trás, saio do carro.
A luz da rua do lado de fora da entrada do beco banha os arredores com um brilho amarelado. Mantenho a mão direita no cabo da minha arma, pronta para sacá-la a qualquer momento. Posso ser imprudente, mas não sou estúpida. Há dois anos, peguei um dos homens do meu pai comendo uma empregada enquanto ele deveria estar de guarda, então o chantageei para que ele ensinasse a mim e a minha irmã a atirar. No começo, Zara não queria, mas acabou se dando bem. Talvez eu não seja a melhor atiradora, mas me saio muito bem em distâncias curtas.
Eu me aproximo do homem e paro ao lado de suas pernas. Ele está
usando calça preta e camisa preta, com os dois botões superiores abertos. A perna esquerda de sua calça parece molhada e há manchas de sangue na calçada abaixo dele. Meus olhos deslizam para seu peito enormemente largo, subindo e descendo lentamente a cada respiração difícil, depois continuam até seu rosto. O ar sai de meus pulmões.
Ele deve ser o cara mais gostoso que eu já vi. Definitivamente mais
velho do que eu, e não como um dos pavões imaturos que deixei para trás na festa de papai. As linhas de seu rosto são nítidas como se estivessem gravadas em pedra. Maçãs do rosto altas. Uma mandíbula forte com barba por fazer e um nariz ligeiramente torto. Seus olhos fechados são emoldurados por grossas sobrancelhas pretas e vários fios de cabelo preto caíram sobre seu rosto, com as pontas chegando quase até à cintura. Nunca conheci um homem com cabelos tão longos.
Precisa de ajuda? - Pergunto quando recupero o juízo.
O homem não responde. Dou uma olhada por cima do ombro. Ainda não há ninguém por perto. Ótimo. Mantendo minha arma em punho, agacho-me e me aproximo dele.
- Ei. - Eu cutuco seu peito com meu dedo.
Eu nem sequer o vejo se mover. Em um momento, ele está encostado na parede como se tivesse desmaiado e, no momento seguinte, tem uma arma encostada na minha têmpora, com os olhos fixos nos meus. Meu corpo fica totalmente imóvel. O suor frio se espalha por minha pele, e um frisson de medo percorre minha espinha. Não há tempo para sacar minha própria arma, então fico apenas olhando para os olhos mais incomuns que já vi. Um tom de cinza tão claro que quase parece prata.
- Quem diabos é você? - ele pergunta com uma voz grave e rouca.
- Uma idiota, aparentemente.
Ele franze as sobrancelhas e examina minha blusa florida e minha calça branca. Seus olhos se movem para cima até parar no topo da minha cabeça, onde meu cabelo loiro escuro está preso em um rabo de cavalo alto e amarrado com um lenço de seda vermelho. O toque do metal frio em minha têmpora desaparece.
- Dê o fora daqui, tigresa, - ele diz e encosta a cabeça na parede novamente, fechando os olhos. - Garota estúpida.
Tiro minha arma de trás das costas e pressiono o cano em seu peito, logo acima do coração. - Estúpida, mas armada.
Aqueles olhos magníficos se abrem. Ele mantém meu olhar fixo enquanto coloca os dedos em volta do cano e gira a arma, encostando-a na ponte do nariz.
- Faça-me um favor. Não erre. - Sua voz é plana, indiferente, como se
sua vida não significasse nada.
Olho fixamente para o lunático diante de mim, incapaz de quebrar o contato visual. Algumas pessoas podem dizer que não se importam se vivem ou morrem, seja qual for o motivo, mas quando confrontadas com uma situação real de sobrevivência, elas farão o que for preciso para se salvar. A autopreservação é um instinto básico, independentemente das circunstâncias.
- Vamos, tigresa. Não tenho a noite toda. - Com essas palavras, ele
solta minha arma e fecha os olhos novamente.
A coisa mais sensata a fazer seria voltar para o meu carro e deixar o
gostoso com desejo de morrer por perda de sangue, mas não posso fazer isso. E já estabelecemos que sou uma idiota. Abaixo a arma e a coloco de volta na parte de trás de minha calça. Em seguida, puxo o lenço que segura meu cabelo.
A perna da calça do homem está rasgada no meio da coxa, revelando um longo corte que está escorrendo sangue. Enrolo meu cachecol em volta de sua perna, que parece um tronco, logo acima do ferimento, e dou um nó apertado.
- Meu carro está ali. Vou levá-lo a um hospital. - Eu me levanto e
estendo minha mão para ele.
Os olhos prateados se encontram com os meus mais uma vez, depois descem para minha mão estendida, olhando-a como se fosse mordê-la. Lentamente, ele levanta o braço e envolve seus dedos com os meus. Empurrando o chão com a outra mão, ele começa a se levantar. Para cima, e para cima. Quando finalmente está na vertical, tenho que inclinar minha cabeça para o céu para conseguir manter seu olhar.
Não há hospital, - diz ele, soltando minha mão. - Estou
estacionado a várias quadras daqui, é só me deixar lá.
- Claro, - eu digo. - Hum.... Você precisa de ajuda?
Seus lábios se contorcem nos cantos enquanto ele examina todo o meu corpo de 1,65 e balança a cabeça. Posso ter uma altura média para uma mulher, mas ele tem mais de trinta centímetros de vantagem sobre mim.
- Esta não é uma noite de aula? - ele pergunta enquanto se dirige ao
meu carro, apoiando-se na parede do prédio à sua direita.
- Não desde o meu baile de formatura, há mais de um ano, -
respondo, correndo para abrir a porta do passageiro para ele.
Observo enquanto a montanha de um homem ferido se arrasta pela
calçada e se agarra à borda da porta do carro. Seu rosto está pálido, e o lenço que amarrei em sua coxa está completamente saturado de sangue.
- Não há como você dirigir para qualquer lugar nessas condições. - Eu dou a volta no veículo enquanto ele praticamente cai no banco. - Luta com faca? - Pergunto, ligando o motor.
- Bala. - Ele joga a arma no painel. - Meu carro está a cerca de um
quilômetro e meio da rua.
Faço o possível para manter meus olhos focados na estrada, mas eles continuam deslizando para o estranho ao meu lado. Que começa a desabotoar sua camisa!
- O que está fazendo?
Ele ignora minha pergunta e tira a camisa de botão, gemendo no
processo.
Meu Deus! - Eu grito, olhando para a bagunça sangrenta na lateral
de seu tronco.
- Olhos na estrada, tigresa.
- Vou levá-lo a um hospital.
- Não, você não vai, - diz ele enquanto pressiona a roupa enrolada no ferimento sangrento acima do quadril. - Tenho um médico esperando por mim em casa. Só preciso chegar lá.
- Vou levá-lo para casa, então.
- Não.
Aperto o volante e dou uma olhada nele. Onde quer que seja sua casa, ele
vai se esvair em sangue antes de chegar lá. Não é problema meu. Já atingi o limite de 'extremamente estúpida' ao permitir que um estranho armado e com ferimentos de bala entrasse em meu carro. Fazer algo mais é atingir o nível de
'astronomicamente idiota'. Praguejei baixinho e peguei a próxima à direita.
- Vou levá-lo para a clínica veterinária onde trabalho. Vou tentar
estancar o sangramento e depois você pode seguir seu caminho.
* * *
- Você pode subir nisso? - Aceno com a cabeça para a mesa de metal
no centro da sala.
Quando me viro, encontro meu estranho ferido apoiado no batente da porta com o ombro, segurando uma arma na mão enquanto examina o espaço com os olhos.
Somos só nós, - eu digo. - A clínica só abrirá às oito da manhã de
amanhã.
Ele avalia a sala mais uma vez e, em seguida, empurra o batente e manca
em direção à mesa de cirurgia. Ele está quase chegando lá quando, de repente, para e se agarra ao armário à sua esquerda.
Corro até ele e agarro seu braço, colocando-o sobre meu ombro. - Vamos lá, mais alguns passos.
O calor de seu corpo se infiltra em mim enquanto atravessamos a sala. Minha palma da mão esquerda está pressionada em suas costas nuas, logo acima da arma que ele enfiou na cintura, enquanto eu seguro seu antebraço com a direita. Tenho vários amigos homens com os quais sou moderadamente próxima, e abraços aleatórios são uma ocorrência regular. Pode não ser um abraço de verdade, mas com o meu corpo basicamente enfiado no corpo do estranho, estou muito consciente de cada ponto de contato entre nossos corpos. O peso de seu braço em meus ombros. Um leve roçar do meu quadril em sua coxa. Os músculos do antebraço dele sob a ponta dos meus dedos. Seu hálito quente que faz formigamento no topo da minha cabeça. É como se ele estivesse me cercando com sua presença, e todo o resto parece desaparecer. Certamente nunca senti isso com nenhum de meus amigos.
De alguma forma, conseguimos chegar à mesa. Eu o ajudo a se levantar
e, em seguida, puxo o carrinho com os instrumentos e suprimentos cirúrgicos para mais perto.
- Ok. - Tentando reunir minha coragem, respiro fundo enquanto vasculho a primeira gaveta. - Vamos tratar do seu lado primeiro. Deve haver um pacote de bandagens de pressão em algum lugar por aqui. - Meus dedos finalmente se curvam em torno de uma forma tubular familiar e eu coloco o rolo em cima. Ao me endireitar, meus olhos se fixam em uma caixa de luvas de nitrila em um balcão próximo. Minhas mãos tremem enquanto pego duas e as coloco.
Loucura. Tudo em relação a isso é loucura. Essa ideia não parecia tão complicada quando a tive no carro, mas agora estou lentamente entrando em pânico. Estúpida. Estúpida. Estúpida.
- Você precisa remover a bala primeiro, tigresa.
Minha cabeça se inclina em sua direção e eu o encaro com horror. O quê? Não há como eu cavar em sua carne para tirar uma bala. Só pensei em fazer um curativo para ajudar a estancar o sangramento.
Um pequeno sorriso levanta os cantos de seus lábios. Ele parece achar a situação divertida. Minha pulsação dispara enquanto olho para os dois globos prateados que capturaram meu olhar. Não posso deixar de me perguntar que segredos estão escondidos em suas profundezas. Alguma coisa naquelas íris pálidas me faz sentir como se estivesse encarando a morte diretamente nos olhos, mas o batimento selvagem do meu coração não é por causa do medo.
Estou bem ciente de que estamos no meio da noite e que estou sozinha com um estranho - um homem que tem mais do dobro do meu tamanho e que, mesmo ferido, pode facilmente quebrar meu pescoço. Mas não, meus batimentos cardíacos frenéticos não têm nada a ver com medo.
Mais mechas de cabelo se soltaram de sua trança, os fios escuros emoldurando seu belo rosto. Agora, em plena luz, posso ver que ele não é tão perfeito quanto parecia. Há uma cicatriz em sua testa e outra em sua maçã do rosto esquerda, mas elas não o distraem de sua aparência.
- A bala está perto da superfície. - Ele pega os fórceps no carrinho e
os coloca em minha mão. - Você vai se sair bem.
Aperto o instrumento e olho para o buraco em sua lateral. - Só temos
anestésico animal aqui.
- Não gosto de drogas. Vamos fazer sem, - ele diz e se deita na mesa.
- Sem anestesia. Claro. - Eu engulo. Meu Deus, ele é louco.
Fazendo o possível para não surtar completamente, começo a limpar a pele ao redor do ferimento de bala. A única coisa que vejo é sangue, mas, de alguma forma, consigo fazer com que minha mão não trema ao aproximar a pinça do ferimento.
- Está a mais ou menos meio centímetro, - diz ele. - Você deve ser
capaz de senti-la imediatamente.
Não desmaie. Não desmaie. A bile sobe pela minha garganta quando
coloco a ponta do fórceps dentro do ferimento. Já observei animais sendo tratados inúmeras vezes, incluindo algumas lacerações bem desagradáveis, mas nunca presenciei alguém tirando uma bala. A vontade de fechar os olhos, de bloquear as imagens de sangue e carne dilacerada, é irresistível. Eu cerro os dentes para superar isso.
Dedos fortes envolvem meu pulso, movendo minha mão ligeiramente
para a esquerda. A força por trás de seu aperto é inexistente, como se ele tivesse medo de me machucar.
- Pronto. - Eu o ouço, mas não me atrevo a desviar o olhar do
ferimento. - Você pode sentir isso?
Aceno com a cabeça.
- Ótimo. Agora, tire-a para fora.
Prendo a respiração e aperto o pequeno objeto com a pinça. O corpo do estranho se retesa, mas ele não emite nenhum som. Suor frio escorre pela minha testa enquanto retiro lentamente a bala. Instantaneamente, o sangue começa a escorrer do buraco na carne. Jogo o fórceps e a bala no carrinho e pego uma toalha de mão, pressionando-a sobre o ferimento.
- E agora? - Eu me engasgo.
- Limpe o sangue primeiro. Em seguida, aplique um penso - talvez adicione alguns - e cubra-o com uma bandagem. Depois, use a fita para prender tudo.
Sigo suas instruções e, quando consigo prender a bandagem no quadril dele, agarro a borda da mesa e tento controlar minha respiração irregular. Há sangue por todas as minhas mãos e braços, até à metade dos cotovelos.
- Agora, a perna, - ele grunhe ao se sentar. - Você tem bandagens
elásticas?
Acenando com a cabeça, tiro as luvas ensanguentadas e entro na gaveta
para retirar dois pacotes. Meus dedos estão tremendo e mal percebo meus próprios movimentos quando coloco os pacotes em sua mão estendida. A pele de sua palma é áspera, e uma cicatriz grossa e saliente a divide diagonalmente.
- Tigresa.
Meu olhar salta de sua mão para seus olhos. Eles estão me observando atentamente. Há um leve toque em meu pulso direito quando seus dedos o circundam, exatamente como fizeram há alguns minutos. Ele levanta minha mão e encosta os lábios nas pontas dos meus dedos. E de repente me esqueço de como respirar.
- Você se saiu bem. - Sua voz rouca me envolve, quase como uma
carícia, enquanto ele solta minha mão.
Atônita, fico parada enquanto ele arranca o invólucro do rolo e começa a enrolar o curativo em sua coxa. Ele nem sequer se mexe. Meu pânico começa a diminuir, então finalmente consigo processar a visão dele em toda a sua bela glória masculina.
Deixo meus olhos vaguearem por seu enorme peito nu, com cada músculo tão perfeitamente delineado que ele daria um excelente objeto de estudo de anatomia. O quê? Sim, 'estudar', é exatamente o que estou pensando enquanto observo a forma como seus bíceps se flexionam enquanto ele trabalha para enrolar a perna. Essas coisas devem ser mais grossas do que minhas duas coxas juntas. O calor se espalha por minhas bochechas enquanto o observo sem um pingo de vergonha.
Assim como em seu rosto, há pequenas imperfeições na parte superior do corpo. Uma linha de uns doze centímetros de carne levantada em seu antebraço esquerdo. Provavelmente um ferimento antigo de faca. Há também várias cicatrizes pequenas na barriga e no peito, mas não tenho certeza do que poderia têlas causado. A marca redonda em seu ombro, perto da clavícula direita, no entanto, é definitivamente de uma bala.
Quando termina, ele desliza para fora da mesa e, mais uma vez, preciso
inclinar a cabeça para cima para poder encarar seu olhar.
- Da próxima vez que você encontrar um homem com um ferimento de
bala, ou você corre ou o mata. - Ele se inclina até que seu rosto esteja a poucos centímetros do meu, e um dos fios de cabelo escuro solto roça minha bochecha. - Entendeu, tigresa?
- Sim, - eu sussurro.
Ele pega sua camisa arruinada, pega meu lenço de seda descartado sobre
a mesa e o coloca no bolso da calça. No momento seguinte, ele está mancando pela sala, indo em direção à saída.
- Nenhum 'obrigado por salvar minha vida'? - murmuro.
Meu misterioso estranho para, mas não se vira para olhar para mim. - Você está viva, não está?
- Sim. E daí?
- Esse é o maior 'obrigado' que alguém já recebeu de mim, tigresa.
O sino acima da porta toca enquanto a porta se fecha em seu rastro.
Olho para a minha mão. A sensação de formigamento onde seus lábios tocaram as pontas dos meus dedos ainda está lá. Foi um beijo? Fico parada no meio da sala de cirurgia, olhando para a minha mão por quase cinco minutos. Quando finalmente me livrei da névoa de minha mente, corri para a porta, com medo de encontrar o cara de cabelos compridos caído de bruços no estacionamento.
Não há ninguém por perto quando saio. Viro-me, meus olhos procuram a figura alta, mas não encontram nada. Um jornal amassado, jogado por uma brisa, rola pela rua deserta. A lata de lixo no final do quarteirão chacoalha quando um gato de rua pula em sua tampa e depois salta para a varanda acima. Mas não há sinal dele. É como se ele tivesse simplesmente desaparecido.
Tiro o celular do bolso de trás e abro o aplicativo de notícias. Vários artigos com manchetes em negrito piscam na tela enquanto passo o dedo pelo conteúdo. Todos eles são sobre o tiroteio que aconteceu no início da noite, a apenas cinco quadras daqui. Clico no mais recente e dou uma olhada no texto. Nove vítimas, de acordo com a polícia. Um proeminente magnata do setor imobiliário e membros de sua equipe de segurança. Um repórter entrevistou os moradores próximos, mas ninguém viu ou ouviu nada. A única pista em potencial veio de uma mulher que trabalhava no turno da noite em uma loja de penhores próxima. Ela viu um homem indo em direção ao complexo inacabado onde ocorreu o tiroteio. Infelizmente, ela não viu o rosto dele, apenas as costas e o cabelo comprido, enrolado em uma trança.