- Meu Deus. - Ele suspira e se volta para minha irmã, que está
sentada do outro lado da mesa: - Zara, por favor, me passe o pão.
Minha irmã aproxima a tigela de vidro dele e continua comendo em
silêncio. Ela é sempre tão quieta que, às vezes, até esqueço que ela está na sala. Quando éramos crianças, Zara era tão alegre, sempre rindo e tagarelando sobre alguma coisa. Mamãe costumava dizer que se Zara não tivesse uma boca, ela criaria uma por pura vontade. Isso mudou depois da noite em que Elmo foi morto. Desde então, ela não tem sido mais aquela garotinha sorridente que adorava fazer travessuras.
- Sei que concordei que fosse em frente com essa sua ideia maluca,
Nera, mas não quer reconsiderar? - continua meu pai. - Se quer estudar alguma coisa, por que não economia? Ou finanças? Algo que seria realmente benéfico e que você poderia usar no futuro?
- Não.
- Você entende que isso é apenas temporário, certo? Quando se casar, seu marido não permitirá que você passe o tempo inseminando cavalos ou algo assim. Isso é absolutamente impróprio para alguém com seu pedigree.
- Não há quase nenhum cavalo precisando de inseminação em Boston, pai. - Eu suspiro. É a mesma conversa todo domingo quando vou visitá-lo. - Tratamos principalmente de animais de estimação.
- Graças a Deus. - Ele pega seu vinho e toma um grande gole. - Eu deveria ter casado você no momento em que completou 18 anos, mas Massimo disse que eu deveria esperar.
Levantei uma sobrancelha. Eu não sabia que meu pai discutia meu futuro com meu meio-irmão. Massimo está cumprindo uma sentença de 18 anos por homicídio voluntário por matar o cara que atirou em Elmo, e papai o visita uma vez por semana. Toda quinta-feira de manhã, papai viaja para a instituição correcional nos arredores de Boston e fica lá por horas. Sempre me perguntei sobre o que eles conversam. Meu pai é a única pessoa que meu meio-irmão permite que o visite na prisão. Nem eu nem Zara vimos Massimo desde que ele foi preso. Até onde sei, ele nem mesmo deixou Salvo, seu amigo de infância que agora é um dos capos do meu pai, visitá-lo.
- Como ele está se saindo? - Eu pergunto.
- Muito bem, na verdade. Você conhece Massimo, nada o abala muito.
- Ele está preso em uma prisão de segurança máxima há mais de uma
década e está 'bem'?
- Sim, - diz ele. - Ele tem perguntado sobre vocês duas.
Uma respiração aguda vem do outro lado da mesa. Olho para cima e vejo Zara olhando para seu prato, com o garfo a meio caminho de seu destino. Isso dura apenas um momento antes que ela volte a enfiar a comida na boca.
- Mas ele ainda não nos deixa visitar? - Olho de volta para meu pai.
- Ele tem seus motivos. - Papai dá de ombros e muda de assunto. - O filho de Tiziano será batizado neste outono, e haverá um grande almoço em família depois. Preciso que vocês duas compareçam e estejam com a melhor aparência possível. Comprem vestidos feitos sob medida, algo que nenhuma outra mulher terá. Minhas filhas precisam estar acima de qualquer esposa ou namorada de capo. Não quero passar vergonha na frente da família, estão me ouvindo?
- Que dia é hoje? Vou ter que verificar minha agenda na clínica.
- Não me importo com sua agenda de hobbies, Nera. Você vai estar lá, - ele diz, depois aponta o garfo para Zara. - Você também. Com uma roupa apropriada para o local e o clima. Entrarei em contato com você para marcar uma data.
Mantendo os olhos baixos, Zara coloca os utensílios no prato e se levanta
lentamente. Ela não diz uma palavra enquanto se afasta e deixa a sala de jantar.
- Isso foi maldade! - sibilo assim que minha irmã sai do alcance dos
ouvidos.
- Ela não é mais uma criança. Sua irmã tem quase 18 anos e precisa
começar a prestar atenção em como se apresenta. Ela não pode sair por aí coberta da cabeça aos pés em um calor de cem graus, pelo amor de Deus. As pessoas vão falar.
- Então deixe-os falar, porra! - Joguei o guardanapo no meu prato e
corri atrás de Zara.
Seu quarto fica no segundo andar, bem ao lado do meu antigo quarto. Eles são contíguos com uma porta de conexão e, como não passo mais tempo aqui, deixo Zara usar meu quarto de infância como seu estúdio de costura.
Encontro Zara sentada na beirada da cama, segurando a colcha com os
dedos. Revistas de moda, esboços e vários pedaços de tecido estão espalhados por toda parte. Apoio o ombro no batente da porta e observo a bagunça.
- Meu quarto não é suficiente, não é? - Eu sorrio, tentando manter o clima leve. - Vamos lá. Mostre-me no que está trabalhando.
Zara apenas dá de ombros, e seus ombros parecem ter caído ainda mais depois disso. Entro em seu domínio, fazendo o possível para não tropeçar ou desalojar nenhum dos padrões de costura que ela espalhou pelo chão.
- Isso parece incrível. - Eu me inclino e pego um esboço que mostra um vestido sem mangas com um corpete que se amarra ao redor do pescoço. - Eu poderia usar um vestido para aquele almoço com Tiziano, se você tiver tempo.
Os lábios de minha irmã se alargam instantaneamente em um sorriso. Ela se levanta da cama e corre pelo quarto, pegando a fita métrica e um bloco de anotações na poltrona reclinável.
- Você tem certeza sobre o design? - ela pergunta enquanto se agacha
para pegar um lápis debaixo da cama. - Posso fazer alterações se você quiser.
- Nenhuma mudança. Vai ficar perfeito. Como todas as peças de roupa
que você fez para mim.
Passo a mão sobre a manga bufante de sua blusa branca. Ela me disse
que o estilo é conhecido como 'lanterna', em que o material se alarga em direção aos pulsos e os punhos são presos com botões de pérola. A gola da camisa é alta e justa, formando um grande laço em volta de seu pescoço. Ela é muito talentosa.
Pouco depois que nosso irmão foi morto, Zara desenvolveu vitiligo. Começou em seus dedos e pulsos, mas depois as manchas brancas apareceram em seu peito, pernas e braços. Por volta da época da morte de mamãe, o vitiligo progrediu e passou a incluir áreas ao redor dos olhos. Independentemente da temperatura externa, Zara sempre usa decotes altos e mangas compridas porque não gosta que as pessoas olhem para ela. No ano passado, ela tentou cobrir as partes descoloridas do rosto com uma base, mas sua pele não reagiu bem. Mesmo assim, ela continuou trocando as marcas, experimentando outras diferentes, até que desenvolveu uma erupção cutânea tão forte que tive de sentá-la e colocar um espelho em sua mão. Ela é absolutamente linda, e eu tentei fazê-la ver isso. Não há uma única coisa que não seja bonita em minha irmã. Eu queria que ela percebesse isso sobre si mesma, que reconhecesse que é bonita e perfeita, exatamente como é. Ela não acreditou em mim, mas pelo menos parou de usar a base.
- Que tal seda lavanda? - Zara pergunta enquanto passa a fita métrica
em volta dos meus quadris.
- Sim, lavanda parece ótimo. - Levanto meus braços para que ela possa medir meu busto. - Então... Conheci uma pessoa no consultório veterinário na semana passada.
Zara arqueia uma sobrancelha.
- Alto. Tipo, muito alto. Corpo incrível. Cabelos longos e pretos. Ele é provavelmente o homem mais gostoso que já conheci.
- Ele trouxe um animal de estimação para um check-up?
- Hum, não exatamente. - Eu ri. - Ele acabou sendo o paciente.
Conto a ela os detalhes do meu encontro com o estranho, começando por como o encontrei em um beco, mas pulo a parte da arma.
Ainda penso nele. Sua voz áspera e quebrada. A maneira como ele se
deitou naquela mesa, totalmente imóvel, enquanto eu retirava a bala de sua carne. Há alguns anos, um dos guardas de meu pai foi alvejado apenas do lado de fora de nossos portões. Enquanto o bandido que foi estúpido o suficiente para fazer isso foi rapidamente tratado por nossos seguranças, o homem ferido foi trazido para dentro de casa. O médico da família chegou para tratá-lo e, embora eu tenha ouvido que o homem recebeu anestesia, ele ainda chorava alto o suficiente para que eu pudesse ouvi-lo em meu quarto. Provavelmente toda a vizinhança o ouviu.
Mas o que mais me impressionou foram os olhos do meu estranho. Tão bonitos. E tão vazios. Não havia nada naqueles dois globos prateados. Nenhum medo de morrer. Nenhuma preocupação. Nada. Ao olhar para eles, parecia que eu estava olhando para uma alma feita de pedra.
Quando termino de contar sobre nosso encontro, Zara fica me olhando
por alguns instantes, depois agarra meus ombros e grita na minha cara.
- O que se passa na porra da sua cabeça?!
Eu pisco para ela. Zara nunca fala palavrões. E não me lembro da última
vez que a ouvi levantar a voz.
- Sozinha, - ela continua, sacudindo meus ombros. - No meio da
noite. Tratando de ferimentos de bala em um estranho?
- Ouça. Sei que foi estúpido, está bem? Mas quando o vi naquele beco,
apenas olhando para o céu escuro, lembrei-me de mim, de alguma forma. Eu não podia simplesmente deixá-lo lá para sangrar.
- Você poderia ter ligado para o 911.
- Eu sei. Mas não fiz isso. - Suspiro. - Isso não importa agora. De
qualquer forma, não o verei nunca mais.
- Graças a Deus! - Zara balança a cabeça e vai até à cômoda.
Ela se ajoelha no chão e começa a remexer em uma pilha de tecidos coloridos empilhados no lado direito. Há outra pilha à esquerda, mas ela contém todas as cores neutras - bege, branco, marrom e preto. Não há tons vibrantes nem padrões de forma alguma. Esses são os tecidos que ela usa para fazer roupas para si mesma.
- Você tem lavanda suficiente para fazer algo para você também? - pergunto. - Poderíamos ir com roupas iguais, como costumávamos fazer quando éramos crianças.
Zara olha para o grande feixe de tecido dobrado em seu colo e acaricia carinhosamente a seda rosa-púrpura com as pontas dos dedos. Ela ficaria linda nessa cor, especialmente em um dos modelos que vi espalhados pelo chão - um magnífico vestido de noite com um decote em V de ombro a ombro e uma fenda alta ao longo da perna.
- Não, - ela sussurra e se aproxima de mim, segurando o tecido em
seus braços.
Ela coloca o lindo material em volta da minha cintura para ver como ele
fluiria, depois verifica seu esboço e, enquanto observo minha talentosa irmã, meu coração se parte por ela pela milésima vez. Gostaria que ela se visse como eu - linda, por dentro e por fora - e usasse um dos surpreendentes vestidos que ela tanto gosta de criar, em vez de fazê-los apenas para mim e para nossas amigas.
- Como estão as coisas aqui, em casa?
- O mesmo, - diz ela enquanto anota os números em seu bloco de
notas. - Batista Leone veio aqui outro dia, e ele e papai passaram quase três horas no escritório do papai.
Isso não é novidade. Como subchefe de papai, Leone passa bastante tempo em nossa casa. Ele também era o subchefe do antigo Don. Ouvi dizer que ele esperava assumir o controle da família em Boston quando o antigo chefe morresse. No entanto, durante a reunião em que os chefões e os maiores investidores empresariais se reuniram para discutir a sucessão, meu pai foi escolhido como o próximo Don. Foi nessa mesma reunião que o casamento entre meu pai e a viúva do Don anterior, Laura, foi arranjado. Elmo tinha dezesseis anos, eu tinha três e Zara mal tinha um ano quando nossa nova mãe chegou à nossa casa. Massimo, filho de Laura e do falecido Don, tinha 18 anos quando se tornou nosso meio-irmão.
- Você acha que papai deixou Batista permanecer como seu subchefe porque se sentiu mal pelo fato de o cargo de Don ter sido basicamente roubado dele? - pergunto.
- Talvez. Papai nunca foi talhado para ser um Don, e ele sabe disso.
- O quê?
- Hum.... Quero dizer, ele gosta de ser o centro das atenções e que as pessoas o procurem para pedir conselhos, mas seu temperamento não é adequado a um Don.
- O que você quer dizer com isso? Ele está cuidando das coisas para a Família e mantendo a ordem perfeita há mais de quinze anos.
- Sim, certamente parece que sim, - ela murmura. - Você quer o
zíper na lateral ou atrás?
Eu estreito os olhos para minha irmã, imaginando o que ela quis dizer com seus comentários enigmáticos. Eu poderia sondar um pouco mais, mas não adiantaria nada. Quando Zara decide que um assunto está encerrado, é o fim da discussão.
- Na parte de trás está bom para mim, - eu digo.
Zara acrescenta outra nota ao lado de seu desenho, depois pega o tecido lavanda de minhas mãos e começa a dobrá-lo. - Preciso que você me prometa uma coisa, Nera.
- O quê?
- Se encontrar aquele homem que salvou novamente, você se afastará.
- Ele era apenas um cara gostoso aleatório. - Dou de ombros, fingindo desinteresse. - Eu o ajudei. Ele foi embora. Não vejo como poderíamos nos encontrar novamente.
- Aquele homem sabe onde você trabalha.
- Ele provavelmente já se esqueceu de mim, Zara. Não se preocupe.
Eu desvio com uma risada, mas a verdade é que, secretamente, estou
esperando encontrar meu estranho de cabelos longos novamente.