Capítulo 2 O Rei e a Costureira

POV CALEB

A escuridão sempre foi minha aliada. Nela, eu caçava, matava e sobrevivia. Mas agora, ela parecia diferente. Densa. Sufocante. Como se tentasse me arrastar para um vazio do qual eu não poderia escapar.

Então, algo cortou a escuridão.

Um cheiro. Doce, quente. Nada como o sangue ou a terra molhada que eu estava acostumado. Era reconfortante, mas, ao mesmo tempo, errado. Um erro que me fazia querer me afundar nele.

Meu corpo protestou ao mínimo movimento, a dor queimando por cada fibra dos meus músculos. Mas o cheiro persistia, se infiltrando em minha mente, me puxando para longe da inconsciência.

Meus olhos se abriram.

A visão ainda estava turva, mas clara o suficiente para perceber que eu não estava mais na floresta. O calor envolvia meu corpo, uma luz branda tremulava nas sombras. Pisquei algumas vezes, tentando me situar.

E então, eu a vi.

Os olhos verdes.

Os mesmos que me fitaram antes da escuridão me consumir. Agora, estavam ali de novo. Observando. Medindo. Seu olhar era intenso, cheio de algo que eu não sabia nomear.

Por que ela ainda estava aqui?

Minha mente começou a encaixar os fragmentos de lembranças. Neve. Sangue. Uma voz sussurrando promessas de que eu estaria seguro.

O toque de mãos humanas. O toque dela.

Meus instintos gritaram para que eu reagisse, que me movesse, que tomasse controle da situação. Mas eu apenas permaneci ali, a observando.

Ela se movia pelo cômodo com uma calma absurda. Como se eu não fosse uma fera ferida capaz de matá-la em segundos.

Cada passo dela parecia ecoar dentro de mim de uma maneira estranha, desconfortável. Eu nunca me importei com presenças antes. Mas agora...

O que era essa sensação?

Por que minha mente se fixava nela?

A vigiei silenciosamente, analisando cada traço, cada expressão. Seu rosto demonstrava cansaço, mas ela não parecia hesitar em continuar. Por quê? O que a fazia cuidar de algo como eu? Não havia medo nela. Nem repulsa. Apenas aquela calma estranha que me confundia.

Mas logo algo dentro de mim se agitou. Um incômodo. Uma inquietação desconhecida.

Por que eu me importava com onde ela estava?

Meus sentidos se aguçaram quando sua presença desapareceu do cômodo. Minha respiração se tornou pesada. O cheiro dela ainda estava ali, mas seu calor, não.

Onde ela foi?

Um rosnado baixo escapou de minha garganta. Meu corpo ainda estava fraco, mas a necessidade de encontrá-la se sobrepôs à dor. Me obriguei a me mover. Cada músculo queimava. Meu peito protestou, minhas pernas tremeram.

Mas eu não poderia simplesmente ficar ali.

O piso rangeu sob meu peso quando consegui me erguer. Minha cabeça girou. Meu focinho captou um rastro fraco, e eu já estava pronto para segui-lo quando-

A porta se abriu. Lá estava ela.

Os cabelos ligeiramente desalinhados pelo vento frio. O olhar fixo em mim. O cheiro dela tomou o ar, afogando meus sentidos, preenchendo cada espaço vazio dentro de mim.

Eu relaxei sem perceber.

Ela voltou.

- Eu trouxe frutas para você. - A voz dela era suave, mas hesitante. - Não tenho mais nada... Me desculpe.

Ela se desculpava?

Apenas a observei. Comida não era o que eu queria. Mas deixei que se aproximasse, sentando-se ao meu lado, oferecendo um pedaço da fruta.

Seus dedos hesitaram antes de tocarem meu focinho. E quando finalmente tocaram... meu corpo inteiro reagiu.

O calor percorreu minha pele como eletricidade, despertando algo primitivo e perigoso dentro de mim.

Seus olhos deslizaram para minhas presas, refletindo a luz da lareira como lâminas. O medo brilhou em seu olhar por um instante. Ela sabia. Eu poderia acabar com tudo ali, arrancar sua mão, tomar o que quisesse. Ela compreendia isso.

Mas, ainda assim... continuou. E eu deixei.

Ela me alimentou. E eu apenas observei.

Seus gestos eram lentos, delicados, mas determinados. Havia algo fascinante na forma como não recuava.

Por que ela fazia isso?

Ela terminou, e então seus olhos desceram para meu corpo. O cenho franziu.

- Suas ataduras... - murmurou. Havia sangue. - Eu preciso trocá-las.

Seu toque deslizou sobre minha pele. Quente. Suave. Inesperado. Minha mente dizia que eu deveria afastá-la. Mas meu corpo se recusava a obedecer.

Apenas observei enquanto suas mãos deslizavam com delicadeza, desfazendo as ataduras encharcadas de sangue para substituí-las por novas.

A sensação foi indescritível. Um calor, um arrepio. Como algo ancestral dentro de mim respondendo ao toque dela.

A noite caiu, e antes que eu percebesse, o sono me venceu. Mas quando despertei... algo estava diferente.

O ar ainda era frio, mas meu corpo estava quente.

Meus sentidos dispararam. Meu olhar encontrou a razão imediatamente.

Enrica.

Seu corpo pequeno estava encolhido ao meu lado. A respiração suave. Os fios de cabelo bagunçados contra a madeira.

Mas o que me fez travar não foi isso.

Foi a coberta sobre mim. A única coberta que existia ali.

Ela cedeu seu próprio calor para mim.

Meu peito se contraiu com algo estranho. Um impulso primitivo gritou dentro de mim. Algo que eu não reconhecia, mas que rugia com força.

Minha mão se moveu antes que eu percebesse, puxando a coberta de volta para ela. Ela não deveria passar frio.

Foi quando vi. O colar.

Minha visão estreitou.

Uma corrente de camurça desgastada pelo tempo. Um colar simples... para olhos desatentos. Mas eu sabia exatamente o que aquilo era.

Um colar de Ômega.

Meus pulmões travaram. O que diabos isso significava?

O fecho bem preso, a camurça marcada... ela o usava há muito tempo.

Para um humano comum, não significaria nada. Mas para um Alfa como eu...

Aquele colar gritava segredos.

Ele escondia um cheiro. Um cheiro que... agora escapava pelas frestas da camurça.

Minha respiração se tornou pesada. O aroma dela se infiltrava em cada célula do meu corpo.

Suave. Doce. Perigoso.

Meu instinto rugiu. Voraz. Exigindo que eu me aproximasse. Que eu a tomasse.

Minhas presas pressionaram contra meus lábios. Meus músculos se contraíram. Isso não podia estar acontecendo.

Meu corpo se inclinou para frente, movido por algo que eu não podia controlar.

O lobo dentro de mim despertava. Feroz. Faminto. Possessivo.

Eu precisava sair dali.

Me afastei bruscamente, quase tropeçando. A distância era necessária.

O ar frio ardeu em meus pulmões, enquanto eu lutava contra algo que eu não entendia, mas que queria me consumir.

O desejo latejava dentro de mim, pulsante e perigoso. Nunca havia sentido algo assim antes. Algo tão profundo, tão avassalador.

E isso me aterrorizava.

Eu tinha que partir. A decisão deveria ter sido simples. Racional. Mas não era.

Porque ao olhar para ela ali, dormindo, vulnerável, com o cheiro dela grudado na minha pele...

Uma única certeza se cravou dentro de mim.

Se eu partisse agora... jamais conseguiria esquecê-la.

Mas eu precisava voltar para Vartheos. Meu reino me chamava, minha alcateia esperava. Eu não pertencia àquele lugar, e cada minuto que passava ali era uma afronta ao que eu conhecia como ordem.

Mas por que era tão difícil simplesmente me virar e ir embora?

Algo me prendia. Um peso no peito. Uma força invisível que se recusava a ser ignorada. Eu não queria nomear aquilo. Mas ele estava ali, me ancorando naquela cabana.

Naquele cheiro. O cheiro dela. Minha mandíbula travou. Aquilo era irracional.

Eu nunca havia sentido tristeza ao deixar algo para trás.

Minha mente gritava que ela não era minha, mas meu corpo queimava com uma verdade primitiva. Meu lobo discordava. Meu instinto exigia que eu garantisse que ninguém jamais a tocaria em minha ausência.

E então, um pensamento me atingiu como um soco no estômago.

Ela poderia já ter um alfa. Alguém que a reivindicasse.

O fogo em minhas veias se acendeu, abrasador, insuportável. O simples pensamento de outro macho tocando-a, respirando o cheiro dela, reivindicando-a...

Minha respiração ficou pesada. Minha visão turvou em vermelho.

Se isso fosse verdade, eu o mataria.

Rosnei, os músculos tensos com uma fúria que não deveria estar ali. Eu não era um alfa jovem e impulsivo, dominado por emoções. Eu era um rei. Meu dever era comandar, não me perder em algo tão insignificante quanto uma mulher.

Mas meu corpo discordava.

Eu não podia partir sem garantir que ela estaria protegida. Sem deixar claro para qualquer um que se atrevesse a cruzar este território que ela já estava marcada.

Me aproximei da entrada da cabana, erguendo a perna e impregnando minha essência ali. o Mijo quente respingou o suficiente para deixar meu cheiro na madeira do lado de fora.

Um aviso silencioso, uma sentença invisível. Ela não podia ver, mas qualquer alfa sentiria.

Mas não bastava. Eu precisava de mais.

Girei sobre minhas patas e pressionei meu corpo contra a madeira, esfregando cada centímetro de mim contra as paredes externas da cabana.

Meu lobo rugiu, satisfeito. Meu cheiro agora estava nela. No abrigo dela. No único espaço que era só dela.

Cada célula do meu corpo vibrou com satisfação. Minha presença estava ali.

Minha sombra pairava sobre ela.

Ela ainda não sabia. Mas qualquer um que ousasse cruzar este território sentiria a ameaça no ar.

Dei um passo para trás, inspirando fundo. A cabana estava impregnada com meu cheiro. Nenhum alfa ousaria se aproximar sem hesitar.

Era irracional, mas eu me sentia melhor.

Sem olhar para trás, corri para a escuridão da floresta. Meu destino era Vartheos. Meu dever me chamava.

Mas enquanto eu me afastava, o cheiro dela ainda estava em mim.

E uma certeza se cravou em minha mente.

Eu voltaria.

E não sabia dizer se isso era uma promessa ou uma ameaça.

            
            

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