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Quando completei nove anos Ryan me presenteou com Alice no País das Maravilhas e foi o primeiro livro que tive para chamar de meu. Para o seu aniversário lhe dei um chapéu igual ao do chapeleiro maluco. Naquele dia ele fez a barba com a gilete do pai e foi parar no hospital. Parece que ele tinha pouca barba para tirar.
Aos dez anos tivemos a primeira noite na casa da árvore. Nosso primeiro beijo desastrado: dentes batendo, minha boca sangrando. Um castigo de uma semana sem nos vermos.
Com onze anos sangrei enquanto íamos para o rio. Eu disse que o amava e me despedi, achando que estava morrendo. Ele me levou para casa no colo e me pôs na escadaria da casa grande da fazenda e rezou por mim. Daí a Nona me explicou que eu não estava morrendo, que tinha ficado mocinha. E minha mãe disse que eu poderia ter filhos e que não podia mais ficar andando para cima e para baixo com Ryan, porque ele poderia querer botar um bebê em mim. Fiquei alguns meses com raiva dele porque eu não queria ter um bebê. Ryan então deu um beijo em outra garota. E disse que ela sabia beijar de verdade. Lembro que chorei e ele alegou que a menina que era mocinha e não eu. No mês seguinte fingi um desmaio quando menstruei e disse a ele que eu estava morrendo de novo... Só que agora era de verdade. Daí voltamos a ficar amigos, porque Ryan entendeu que todos os meses eu tinha chance de morrer. Ele me explicou que não botaria um filho em mim. Tudo voltou a ser como era antes.
Quando tínhamos 12 anos o pai de Ryan morreu. Foi o dia mais triste da minha vida até então... Porque Ryan estava muito triste. Ele chorou na nossa casa da árvore e eu também chorei. Por uma semana ele não saiu dela e só deixava eu entrar para lhe levar comida. Me senti muito importante, porque Nona e Haidee precisavam de mim para se comunicarem com ele. Lembro que a Nona disse para que a mãe de Ryan que ele precisava daquele tempo sozinho. Será que elas achavam que eu não contava como pessoa? Porque ele não estava sozinho. Tinha eu!
Quando fiz 13 anos depilei as pernas porque todas as garotas faziam aquilo. Não machuquei a pele, mas fiquei bem machucada pelas palavras de minha mãe. Disse que eu estava valorizando meu corpo, estética e beleza mais do que os preceitos da religião. Me chamou de pecadora. E disse que partir daquele momento eu estava também proibida de me maquiar ou usar esmalte nas unhas. Naquele mesmo ano Ryan começou a namorar uma garota da escola. Ele nunca a levou para apresentar a Nona, que sequer quis conhecê-la. Durante aqueles 30 dias que ele esteve com ela eu fiquei sozinha no recreio, porque os dois estavam juntos. Ele me contou que passou a mão dentro da calcinha dela e que ela gostou. Fiquei apavorada. Imaginei que ninguém gostava de mim porque eu não depilava as pernas e as axilas e não usava maquiagem ou pintava as unhas. Tudo passou quando Ryan voltou a ficar só comigo.
No baile de formatura, aos 14 anos, me apaixonei por um garoto pela primeira vez. Fiquei tão encantada que não percebi que Ryan entrou no baile e logo saiu. Descobri depois que passara a noite fora. Quando me explicou sobre sexo, que havia feito pela primeira vez, fugi por uma semana, não acreditando que ele tinha feito aquela coisa nojenta. Naquele ano Cheshire foi atropelado e morreu. Enterramos ele e no outro dia meu gato estava no meu quarto quando acordei. Descobri que gatos tinham sete vidas e restavam ainda seis para o meu.
Quando fiz 15 anos tive uma festa surpresa à fantasia na casa da Nona. Eu era Alice, Ryan o Chapeleiro Maluco. Até que o vi no banheiro, com as calças arriadas, comendo a Branca de Neve. Abandonei minha própria festa, mergulhando em Alice e desejando que o País das Maravilhas fosse real e eu caísse no buraco mágico e nunca mais voltasse.
Depois disto fomos para uma escola de Ensino Médio, que ficava na cidade vizinha. Fazíamos uso do ônibus escolar e íamos e voltávamos juntos. Então eu revi o garoto do baile de formatura do Ensino Fundamental, aquele por quem meu coração bateu diferente. Era praticamente ele que mandava na escola e todos queriam fazer parte do grupo dele. Até mesmo Ryan.
Em poucos meses Ryan já tinha feito sexo com praticamente metade das garotas da escola. E foi exatamente aquilo que fez com que ele chamasse a atenção de Davis Fahy, o garoto que tinha várias tatuagens pelo corpo, o que na minha opinião não o tornava um pecador, como dizia minha mãe. Pelo contrário, eu achava aquela arte que ele tinha no corpo lindíssima.
E foi exatamente ali, naquele encontro com outras pessoas, quando deixamos nosso mundinho secreto, que tudo começou... Ou terminou.
CIDADE DE SOLIDÃO, NORIAH SUL (COMO TUDO COMEÇOU)
Mamãe tirou o bolo do forno e senti o cheiro entrando pelas minhas narinas. Meu estômago chegou a roncar.
- Posso fazer uma cobertura? – pedi, empolgada – De brigadeiro.
- Não, não vamos perder tempo com coberturas.
- Mas... É o meu aniversário, mãe.
- Já estou fazendo muito em lhe dar o bolo, garotinha. Então não peça mais do que eu posso, por favor.
Suspirei e fiquei olhando o bolo na janela, a fumaça branca com cheiro de pão de ló se misturando ao ar fresco do anoitecer. Vi o rosto de Ryan na janela. Ele abriu um sorriso e piscou, fingindo que iria roubar o bolo. Comecei a rir e minha mãe gritou:
- Ryan, não toque no bolo!
Ela adivinhou que ele estava ali, talvez pelos passos, que nem eu mesma ouvi. Ryan entrou e trazia na mão um embrulho.
- Trouxe um presente? – Levantei, empolgada. Eu amava presentes.
Ele riu e sentou-se no sofá, de forma tranquila:
- Só ganhará o presente depois que eu comer o bolo.
- Mamãe, vamos comer o bolo? – Fui rápida.
- Está quente! Quer queimar a boca do seu convidado?
- Ela nem me convidou! – Ryan alegou enquanto levantava os braços e se escorava neles, usando o encosto do sofá de forma preguiçosa.
- E precisava? Você esteve em todos os meus aniversários, mesmo sem eu convidá-lo!
- E estarei nos próximos. – Garantiu, piscando o olho – Se eu não apareço, você não ganha presente!
Fiz careta e a porta se abriu:
- Sim, ela ganha presente! – Sirena entrou, trazendo uma torta.
Arregalei os olhos e corri na direção dela, tentando pegar a torta. Sirena levantou os braços, me impedindo de pegá-la, enquanto ria:
- Primeiro vamos cantar "parabéns a você".
- Eu não gosto! – Reclamei.
- Mas vai ter que ser cantado. – Deu um beijo na minha bochecha – Afinal, não é todo dia que se faz 17 aninhos! – suspirou – A partir de agora sua vida vai começar de verdade.
- Não enfie coisas na cabeça da sua irmã, Sirena. A vida dela já começou. – Mamãe gritou da cozinha.
Sirena pôs a torta sobre a mesa e olhei, maravilhada.
- Do que é a cobertura? – Perguntei.
- Brigadeiro, seu preferido.
Sorri e minha mãe apareceu, secando as mãos no pano de prato:
- Por que insiste em passar por cima das minhas ordens? – Olhou diretamente para minha irmã, de forma séria.