/0/14927/coverbig.jpg?v=4763b180359ddb197ede0d6eb89be6ea)
Capítulo 3
Eliza Altheron
O cheiro do couro do banco e da poeira da estrada misturava-se ao enjoo no meu estômago. Cada solavanco do carro era como um soco nas minhas costelas, lembrando a queda, a pancada no ombro, o arranhado nos joelhos. Mas nada disso doía tanto quanto o fato de estar sentada, novamente, perto do homem que matou meus pais. Só que também me salvou da morte.
Ele não dizia nada. Parecia ser mudo, o filho da mãe.
As mãos firmes no volante, os olhos sempre à frente. O silêncio entre nós era grosso, como fumaça densa num quarto sem janelas. Eu queria gritar, pular outra vez, fazer qualquer coisa - mas o medo de falhar de novo me colava no banco.
.
Quando o carro finalmente parou, eu me levantei num sobressalto, como se o próprio movimento pudesse me dizer onde estávamos. E foi aí que percebi.
Os portões diante de nós se abriram automaticamente, como se já soubessem quem vinha. Era um condomínio, mas não desses comuns. Era o tipo de lugar que a maioria das pessoas nunca pisa na vida. Cercado de árvores altas, uma guarita discreta e impecável, seguranças vestidos como banqueiros. A rua era tão limpa que refletia as luzes dos postes. Cada casa que passávamos parecia saída de uma revista de arquitetura. Mansões, piscinas, jardins simétricos, colunas brancas, sacadas com lustres.
Era surreal.
- Onde...? - comecei, mas ele não respondeu. Apenas continuou dirigindo com a mesma cara sem expressão que parece querer matar a todo segundo. Agora mais devagar, como se quisesse me dar tempo pra observar. Ou me assustar.
O carro estacionou diante de uma mansão de três andares, com portas de madeira esculpida e janelas imensas de vidro. Um silêncio elegante pairava sobre o lugar.
Ele desceu e abriu a porta pra mim.
Permaneci sentada por um instante, confusa, cansada... desconfiada.
- Vai descer ou quer que eu te carregue? - ele perguntou, com aquela voz que parecia sempre prestes a explodir.
Desci.
Foi então que a porta da casa abriu.
Um homem apareceu. Alto, grisalho, vestindo um blazer casual por cima de uma camisa de linho. Parecia calmo, limpo demais pra estar envolvido em algo sujo. Tinha os olhos claros, mas não frios. E quando me viu, sorriu.
- Eu não acredito... - ele disse, andando até mim, rápido. - Não acredito que alguém conseguiu te encontrar e trazer pra cá com vida.
E então ele me abraçou e eu congelei.
Aquele homem me abraçava como se eu fosse... dele.
- Filha! - ele disse, com a voz embargada. - Minha filha... finalmente!
Filha?
Minha mente parou. Tudo ao redor sumiu. O jardim, o carro, o outro homem, o céu, o som dos pássaros. Tudo se dissolveu.
Que merda era essa?
Fiquei ali, imóvel, sendo envolvida por braços de um estranho que me chamava de filha. Uma parte de mim queria empurrá-lo. A outra... não sabia o que pensar.
- O que tá acontecendo? - consegui perguntar baixinho - O que vocês querem de mim? Quem é você? - tremi.
O homem me soltou, mas manteve as mãos nos meus ombros, me olhando de maneira esquisita.
- Eliza... meu nome é Samuel Altheron. E eu sou seu pai. Você é a herdeira de Joseph Altheron, seu avô. Estive te procurando por anos.
Meu coração parou por um segundo. Ou talvez tenha sido minha cabeça, tentando entender se aquilo era alguma alucinação provocada pela queda, pela dor, ou pela insanidade.
- Não. Meu pai morreu. Ele... morreu a pouco. Esse infeliz o matou! - apontei para o que me carregou até aqui com a voz embargada - Eu vi o corpo. Eu...
- Eu matei. Sou pago pra matar. Que fique bem claro - aquele brutamontes falou e o encarei.
Samuel me olhou com um semblante que parecia preocupado.
Olhei pra trás,novamente. O assassino parecia querer me matar também. Ele apenas cruzou os braços como se nem me ouvisse e desviou o olhar.
"Entendi... Ele está lavando as mãos."
- Aqueles nojentos não são seus pais. Eu sou responsável por você. Consegui te recuperar - o homem disse, mas nada fazia sentido pra mim.
- Eu não estou entendendo nada - balancei a cabeça - Cresci com eles, bom... Parcialmente. Me deram educação, e...
- Bom você precisa descansar da viagem. Vai tomar um banho. Tem roupas pra você no closet e depois a gente vai conversando e eu explico tudo - senti a mão dele nas minhas costas e percebi que estava sendo levada pra dentro. Mas era tão confuso.
- Eu não sei se devo... - ninguém parecia me ouvir, e foram praticamente me empurrando.
Vi o homem que me trouxe ficando do lado de fora e senti um arrepio estranho quando entrei na casa e a porta enorme fechou.
- Você costuma ficar trancado?
- Força do hábito, minha filha - essa palavra me causava arrepios. Meu peito ainda dói por aqueles que morreram. Como simplesmente esquecer tudo?
- Como sabe que é meu pai? Quem seria minha mãe? - questionei.
- Venha até o escritório - o segui.
Ele começou a abrir gavetas e tirar pastas.
- Aqui tem um exame de DNA. Mandei fazer quando te encontrei no internato. Sua mãe morreu quando nasceu. Você foi roubada quando bebê. Ainda estávamos fragilizados com a morte dela e alguém entrou na casa. Te procuramos por anos.
- E porque me roubariam?
- Seu avô era muito rico. Te nomeou única herdeira dele e seu tutor receberia os ganhos até seus vinte e um anos. Depois disso você mesma poderia assumir os negócios e se apropriar dos seus direitos.
- Por que um tutor? E você? Por que não cuidaria de mim?
- Eu fiquei em choque com a morte da sua mãe. Ele não sabia se eu seria capaz de te assumir, então ele assinou o testamento assim. Os papéis desapareceram do cofre no dia em que você foi levada. Uma vez por ano o dinheiro foi sumindo da sua conta. Seus sequestradores sacaram cada vez numa cidade diferente. Você não percebeu porque foi mantida presa naquele internato, coitadinha.
- Então foi isso? Eles me deixavam lá enquanto viviam desfrutando do dinheiro do vovô?
- Provavelmente.
- Mas pode ficar tranquila. Agora você tem a mim e também a todos da casa... - colocou a mão sobre meu ombro.
- Não gosto daquele homem que me trouxe. Se possível o deixe longe de mim.
- Não vamos nos preocupar com isso hoje. Amanhã a gente resolve os por menores. - Assenti sem entender direito.
Ele me conduziu até o corredor e chamou um senhor que me levaria para um quarto.
Quando iria entrar, lembrei que minhas coisas ficaram no carro daquele homem que me arrastou pra cá, então desci as escadas apressada e estava indo até a sala, quando uma voz me chamou muito a atenção:
- Sim, a Eliza é sua - parei onde estava e me aproximei - Prometi que daria minha filha em casamento pra quem a trouxesse sem nenhum arranhão e vou cumprir. Amanhã anunciaremos pra ela que vai casar com você pela manhã e oficializamos a tarde.
Abri a porta de repente. Precisava saber quem estava ali, e que brincadeira de mal gosto seria aquela, mas quase caí de costas com o que vi.