O conselheiro deu um passo à frente, sua figura esguia projetando uma sombra longa e sinuosa sob a luz avermelhada dos candelabros. Sua voz era melodiosa, mas fria como o aço recém-forjado.
- Majestade, - começou ele, com um leve aceno de cabeça -, a Assembleia reunida esta noite busca esclarecer o ocorrido no cais de Londres. Um roubo ousado, executado com precisão incomum, culminou na violação direta de nossas leis mais antigas. A apropriação indevida do tesouro real.
Um murmúrio atravessou o salão. Alguns vampiros, trajando ternos impecáveis, trocaram olhares condescendentes. Outros, de aparência mais selvagem e moderna, sorriram com malícia - apreciando o espetáculo iminente.
O conselheiro continuou:
- A ladina desconhecida interferiu nos interesses de colecionadores ligados à Corte Real. O artefato em questão... - fez uma pausa, deixando o suspense pender no ar - ...parece ter valor além do material. E há suspeitas de que ela agiu com intenções que ultrapassam o mero furto.
Liliana manteve-se imóvel, o rosto sereno como mármore. Por dentro, sentia o coração batendo firme, pesado, mas controlado. Sabia que uma única expressão errada poderia condená-la.
O conselheiro virou-se para Léo, que estava um passo atrás dela, encostado com indiferença em uma das colunas do salão.
- Mestre das Informações, confirmas que esta mulher está sob tua guarda e proteção? E nos revele seu nome...- A pergunta veio embalada em uma polidez venenosa.
Léo endireitou-se lentamente. O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Ele lançou um olhar breve a Liliana - indecifrável, como sempre -, depois ergueu o queixo e respondeu com uma voz grave, arrastada, que ecoou pelas paredes de pedra:
- Sim, meu Lorde Douglas, confirmo - disse Leo, a voz serena, mas firme o suficiente para dominar o salão. - O nome dela é Liliana. É uma vampira errante, atualmente sob minha guarda, e advogo por sua permanência entre nós. Qualquer julgamento precipitado seria... inconveniente, para todos os lados envolvidos.
Lorde James Douglas inclinou-se levemente, desconfiado.
- Apenas Liliana? A vampira não possui ascendência registrada?
Antes que Liliana pudesse responder, Leo ergueu uma mão sutilmente, impedindo-a. O gesto foi discreto, porém definitivo.
- Somente Liliana - respondeu ele, com um leve sorriso. - É o nome que ela escolheu, e isso já diz muito. A origem pode definir o sangue, mas não o valor.
Um murmúrio correu entre os conselheiros, e Leo continuou, o tom calmo, mas com o peso de quem sabe o poder das palavras:
- Em tempos em que alianças se fragilizam e velhas linhagens se perdem em vaidade, talvez devêssemos valorizar aqueles que se sustentam pelo próprio nome - e não pelo de seus antepassados.
O salão silenciou. Liliana manteve-se imóvel, o queixo ereto, o olhar firme. Sob o verniz de serenidade, Leo havia feito mais do que defendê-la - havia lembrado ao Conselho que o poder não vinha apenas da herança, mas da escolha.
O conselheiro franziu o cenho, mas não ousou responder de imediato. O olhar do Rei, ainda frio, pousou sobre Léo por um instante. A tensão era quase palpável.
Então, com um leve movimento da mão, o Rei falou pela primeira vez. Sua voz era profunda e calma, carregada de uma autoridade que parecia nascer do próprio silêncio.
- Que ela fale, então. - disse, olhando diretamente para Liliana. - Quero ouvir da própria ladina o que a trouxe ao meu domínio.
O murmúrio voltou, mais intenso. Liliana ergueu o rosto, o olhar firme. Sabia que cada palavra a partir dali poderia selar seu destino - ou abri-lo para algo muito maior do que imaginava. O olhar do Rei repousava sobre Liliana, e bastava sua quietude para que até os mais antigos ali se encolhessem, como se a própria noite esperasse sua sentença. Mas, antes que ele falasse, Léo deu um passo à frente.
- Com todo o respeito à Vossa Majestade - disse, num tom sereno, mas carregado de ironia calculada -, creio que estamos prestes a julgar uma sombra antes mesmo de entender o que ela reflete.
O murmúrio entre os vampiros ecoou como o farfalhar de asas. Léo continuou, impassível:
- Majestade - começou Leo, a voz controlada, sem elevar-se além do necessário. - A ladina não representa ameaça real, por ser errante, a ladina desconhece as leis da Sociedade, é apenas uma criança da noite. Se tivesse qualquer intenção hostil, já teria desaparecido há semanas - como tantos outros que o Conselho nunca conseguiu rastrear.
Ele cruzou as mãos às costas, medindo cada palavra.
- Em vez disso, permaneceu acessível, observável, e sem demonstrar sinais de aliança ou rebeldia. Isso, a meu ver, fala mais de prudência e busca de redenção do que de conspiração.
Uma breve pausa, o suficiente para que o silêncio do salão se adensasse.
- Talvez, antes de julgá-la, devêssemos perguntar - com quem interessava que essa história chegasse até aqui. - O olhar dele ergueu-se, sereno, mas cortante em direção dos membros do Conselho. - A informação viajou depressa demais para ser acaso... e a pressa, Majestade, costuma servir melhor aos traidores do que aos inocentes.
Aquelas últimas palavras deixaram o ar denso, quase elétrico. Alguns se entreolharam, outros desviaram os olhos - ninguém ousava encarar o rei.
Léo, porém, manteve-se firme.
A voz saiu calma - calma demais para não ser perigosa.
- Ela está sob minha guarda. E enquanto eu responder por ela, nenhum decreto será selado sem a minha palavra. Nem mesmo o trono está acima disso.
Um murmúrio abafado atravessou o salão.
O ar pareceu pesar. Até as chamas nas tochas vacilaram, como se o próprio fogo hesitasse.
O Rei não respondeu de imediato.
Inclinou ligeiramente a cabeça, os olhos fixos em Léo - olhar de predador que mede a distância entre o desafio e a punição.
Quando falou, sua voz era baixa, mas o som dela atravessava o ar como aço:
- "Nem mesmo o trono?" - repetiu, quase num sussurro. - Dizes isso na minha presença, Léo?
Admirável... e insensato. Há séculos ninguém ousa medir forças com o Rei - e ainda assim tu o fazes como quem fala de igual para igual.
Deu um passo à frente.
O leve sorriso que curvou seus lábios não trazia humor, apenas domínio.
- Sempre foste ousado, Mestre das Informações. As tuas palavras erguem pontes, sim - mas pontes podem ruir com o peso de quem as atravessa.
Ainda assim... - o olhar desviou-se lentamente para Liliana - o objeto do teu zelo desperta a minha curiosidade.
E curiosidade, neste trono, é quase sempre o prelúdio de algo inevitável.
Liliana sentiu o coração acelerar.
Era como se aquele olhar atravessasse camadas de tempo, tentando decifrar não apenas o que ela era - mas o que poderia vir a ser.
O Rei voltou-se então para o Conselho, a expressão indecifrável, e o silêncio retomou seu lugar.
- Por ora, não vejo motivo para julgamento - declarou o Rei, a voz firme, ressoando pelo salão como um veredito incontestável. - Contudo, a observação permanece. A neutralidade dela será testada... e, naturalmente, avaliada à luz da lealdade de quem a protege.
Um murmúrio inquieto percorreu o Conselho antes que Douglas se adiantasse, incapaz de conter-se.
- Majestade, com todo o respeito... - começou, a voz carregada de protesto. - Isso cria um precedente perigoso!
O olhar do Rei voltou-se lentamente para ele, frio e paciente - o tipo de olhar que silencia antes mesmo da resposta
O Rei deixou o silêncio se estender por tempo suficiente para que a ousadia de Douglas ecoasse no ar. Então, inclinou ligeiramente a cabeça, o tom baixo e polido - o tipo de calma que sempre precedia o medo.
- Um precedente perigoso, Conselheiro? - repetiu, com um leve sorriso. - Acredito que o verdadeiro perigo reside em julgarmos rápido demais o que ainda não compreendemos por completo.
Douglas abaixou o olhar, recuando um passo. O salão permanece que nenhuma decisão tomada aqui hoje fugirá do meu alcance.
Douglas abaixou o olhar, recuando um passo. O salão permaneceu em silêncio, a tensão dissolvendo-se apenas o suficiente para que o Rei voltasse a se sentar.
- Sigamos - disse ele, com serenidade ensaiada. - A noite é longa, e os impacientes costumam se perder antes do amanhecer.
Um leve sorriso curvou seus lábios, mais uma promessa do que um gesto de aprovação, e o salão tremeu sob o peso implícito de suas palavras. Léo manteve a postura, consciente de que aquele "não julgamento" tinha, na verdade, um preço invisível.
...
Antes que o clima pudesse se estabilizar, o murmúrio de passos elegantes cortou o salão. Um grupo de vampiros surgiu das sombras, vestidos com roupas que misturavam o contemporâneo com detalhes tradicionais: sedas coloridas e jóias reluzentes. À frente deles, um homem alto, de pele bronzeada, de cabelos escuros e expressão marcada por uma intensidade tranquila, avançou. Seu rosto era anguloso, a mandíbula firme, o sorriso malicioso, os olhos como se pudessem enxergar através de qualquer mentira. Sua voz, quando rompeu o silêncio, tinha a firmeza de comando de alguém acostumado a ser ouvido sem questionar:
- Eu, Rajko Ursari, do Sindicato dos Ladinos, reclamo a responsabilidade de Liliana.
O salão se aquietou, os olhares voltaram para ele, e Léo sentiu o peso da presença daquele homem. Havia nele algo presunçoso, algo que dizia que não aceitava ordens sem considerar suas próprias regras. Mesmo sem uma palavra de mais, o gesto de suas mãos e a firmeza do corpo deixavam claro que a disputa estava apenas começando.
O Rei inclinou a cabeça novamente, avaliando o novo fator com interesse contido, os olhos se estreitando apenas o suficiente para deixar claro que nada passaria despercebido.
- Vejo que temos... diferentes interpretações de responsabilidade - disse, com a voz tão gelada quanto diplomática. - Que a movimentação dela seja, então, um espetáculo digno de nossa atenção.
O grupo ciganos acenou em silêncio, e o homem à frente lançou um olhar desafiador, mas respeitoso, para Léo, como quem diz que nada seria decidido sem consulta. O salão, antes contido, agora vibrava com a promessa de conflitos futuros, sutis e perigosos, que só se revelariam aos olhos atentos.
- Vejo que há divergências sobre como zelar por ela - disse Léo, a voz firme, mas sem perder a calma que já começava a incomodar os outros presentes. - Mas deixo claro: enquanto Liliana estiver sob minha proteção, qualquer tentativa de interferência direta será considerada uma ameaça pessoal.
O homem cigano não recuou. Ele inclinou levemente a cabeça, o cabelo escuro caindo em ondas sobre a testa, e um sorriso enigmático surgia apenas nos cantos de seus lábios.
- Zelar por ela, talvez - respondeu Rajko, com a cadência calma de quem está acostumado a ser ouvido, não a pedir licença. - Mas não confundam zelo com submissão.
Deu um passo à frente:
- Liliana é ladina. E os ladinos sempre estiveram sob o manto do Sindicato - não por conveniência, mas por necessidade. Protegemos aqueles que vivem nas frestas da Sociedade: os esquecidos, os errantes, os que servem de escudo e de sombra para que esta nobre ordem continue erguida.
Fez uma pausa breve, deixando o silêncio trabalhar a seu favor.
- Se agora reclamamos responsabilidade sobre ela, não é desafio - é coerência. O Conselho governa pela ordem; nós, pela sobrevivência. E, até prova em contrário, essa moça pertence ao nosso sangue tanto quanto às suas leis.
Léo sentiu o peso implícito das palavras: o homem não apenas reivindicava Liliana, mas deixava claro que conhecia partes dela que Léo ainda desconhecia. Um alerta silencioso, mas carregado de promessa de embate.
O Rei em seu trono, bateu lentamente os dedos sobre o braço do assento, como se marcasse o compasso de um jogo que apenas ele entendia.
Permaneceu em silêncio por um instante longo o suficiente para que o salão inteiro se contivesse. Seu olhar percorreu Rajko, depois Léo, e por fim repousou sobre Liliana, avaliando-a como quem mede o peso de uma escolha antes de selá-la.
- Muito bem... - disse por fim, a voz baixa, porém cortante. - Que fique registrado: a vampira estará sob a guarda e proteção do Sindicato.
O eco de suas palavras pareceu atravessar o salão como uma lâmina. Quando o silêncio voltou, ninguém ousou respirar alto - todos sabiam que, sob o verniz da concessão, havia uma sentença ainda em aberto.
Rajko manteve-se imóvel por um instante, os olhos fixos no Rei. Depois, lentamente, inclinou a cabeça em um gesto que misturava respeito e ironia contida - o tipo de reverência que mais parecia um lembrete de igualdade.
- A sabedoria de Vossa Majestade é, como sempre, incontestável - disse ele, com um sorriso breve, que não chegava aos olhos. - O Sindicato cumprirá seu papel com a lealdade de quem conhece o valor da vigilância... e os riscos do descuido.
O Rei sustentou-lhe o olhar por um momento, como se medisse a espessura daquela promessa, e então desviou a atenção.
Por um instante, o silêncio que se seguiu pareceu vibrar - como se o salão inteiro reconhecesse que, sob a máscara da diplomacia, havia começado um novo jogo.
Léo respirou fundo, sentindo o frio da determinação se instalar em sua espinha. A partir daquele momento, cada gesto, cada escolha, seria vigiado - e ele teria que provar que era mais do que apenas palavras firmes.
Liliana permaneceu imóvel por um momento, sentindo cada palavra e cada olhar como pequenas lâminas tocando sua consciência. A reivindicação do grupo cigano a pegara de surpresa - não esperava que alguém ousasse interferir tão abertamente, ainda mais diante do Rei e de Léo.
Ela inclinou levemente a cabeça, cumprimentando de forma quase imperceptível o homem à frente do grupo, sem sorrir, sem se curvar. A expressão era calma, mas alerta, como uma gata que reconhece um intruso em seu território, pronta para reagir, mas sem revelar suas intenções. Qualquer gesto em falso poderia inflamar a situação. Ela precisava permanecer contida, quase invisível, calculando cada movimento, cada palavra, sem ceder ao impulso de reagir. O medo não podia ditar suas ações - apenas a sagacidade poderia manter seu caminho seguro. Sob proteção ou não, suas escolhas ainda tinham peso, e ela precisava usá-las para avançar em seu objetivo: investigar discretamente, aprender sem ser notada, descobrir o que a Sociedade e o Conselho realmente planejavam. Cada olhar, cada gesto, cada informação sutil podia se tornar uma peça crucial no jogo que estava apenas começando.
O Rei ergueu-se lentamente. O salão inteiro pareceu prender a respiração, enquanto ele deixava que o silêncio falasse por alguns instantes, pesado como ferro. Cada olhar se fixava em sua figura, cada presença sentia o peso de seu julgamento iminente.
Ele fez uma pausa, percorrendo o salão com olhos que pareciam perfurar os segredos de cada um, até que encontraram Liliana. O calor do olhar era inesperado, quase íntimo, e por um instante o ar entre eles se carregou de algo que nenhum dos presentes ousaria nomear. Ela permaneceu firme, mas sentiu um leve arrepio percorrer sua espinha - e não era medo, apenas consciência de que estava sendo avaliada de um jeito diferente.
- Eis, então, a minha sentença - declarou o Rei, erguendo um dedo na direção do grupo cigano. A voz ecoou firme, sem pressa, carregada de poder. - A reivindicação do Sindicato será atendida.
Fez uma pausa, o olhar percorrendo o salão antes de repousar sobre Liliana.
- Contudo, a vampira servirá ao Conselho Real de perto - não como prisioneira, mas como agente de informações e guarda designada à Coroa. Estará sob observação constante.
Deu um leve passo à frente; o rosto, liso e impassível como mármore, manteve-se inabalável - apenas a sombra de um sorriso cruzou-lhe os lábios, contida e indecifrável.
- Não gozará de liberdade plena, mas sua função será vital... e sua presença, indispensável. Liliana colocará suas inegáveis habilidades a serviço da proteção do Conselho pessoalmente - sob meus olhos e olhos diretamente da Sociedade.
O murmúrio que se seguiu foi breve, tenso. O Rei apenas recostou-se no trono, satisfeito, como quem acabara de transformar um problema em peça útil do próprio tabuleiro.
Por um instante, o salão pareceu congelar. A decisão do Rei caiu como uma lâmina afiada em meio à tensão - elegante, inevitável, e impossível de contestar.
Liliana piscou uma única vez, o suficiente para trair o instante de surpresa antes que a compostura voltasse. Mas ela manteve o queixo ereto e os olhos firmes no trono. Agente do Conselho Real. A frase ecoava dentro dela, entre fascínio e desconfiança. Não era uma condenação - mas tampouco uma escolha.
Rajko, ao lado, levou um segundo a mais para reagir. O sorriso que esboçou não chegou aos olhos. Ele compreendeu o movimento com a rapidez de quem conhece a dança política dos poderosos: o Rei não havia cedido - havia apenas transformado a "reivindicação" em controle velado.
- Uma honra inesperada... - murmurou, com o tom justo entre respeito e ironia. - O Sindicato servirá, como sempre, aos desígnios da Coroa.
Leo, por sua vez, manteve-se imóvel. Por fora, uma máscara de serenidade; por dentro, a sentença lhe pesava. A nomeação de Liliana era um gesto de confiança aparente, mas ele conhecia o subtexto melhor do que ninguém: o Rei a queria por perto - e sob vigilância. O olhar de Leo cruzou o de Liliana por um breve instante. Não precisaram de palavras. Ambos sabiam que, a partir dali, o jogo havia mudado - e que nenhuma das peças estava realmente segura.
O Rei reclinou-se de volta ao trono, satisfeito com o silêncio que se seguiu, e concluiu em tom baixo, quase indulgente:
- Que seja feito. E que a noite nos mostre quem serve com lealdade... e quem apenas aprende a fingir.
Liliana inclinou a cabeça em cumprimento contido, mantendo o semblante sereno, mas seu coração batia mais rápido do que qualquer diplomacia poderia permitir. Ela entendeu o recado: servir ao Conselho não seria apenas um dever, mas um teste - e o Rei, mais do que ninguém, estaria atento.
O som grave do bastão do arauto ecoou pelo salão, selando o julgamento. O murmúrio cessou, e a ordem foi dada:
- Curvem-se diante do Rei.
Léo foi o primeiro a avançar e se ajoelhar. O gesto era preciso, protocolar, mas sua postura firme revelava que jamais seria servil. Rajko seguiu, o movimento elegante e quase desdenhoso - como quem obedece por cortesia, não por reverência.
Liliana permaneceu imóvel por um breve instante. O peso do gesto se abateu sobre ela como uma lembrança antiga. Ajoelhar-se. Beijar o anel. Uma formalidade para todos ali - mas para ela, uma ironia cruel.
Por dentro, algo se contraiu. Já fizera isso antes - há séculos, diante de um trono muito mais antigo, um trono diante da fogueira e entre tendas e carroças, de um homem que fora Rei por direito e alma, não apenas por título. O destino, impiedoso, agora a colocava ajoelhada de novo... diante de outro soberano. Lembrando-lhe também de que já fora rainha - e esposa de um rei cuja presença dominava séculos, não apenas salões.
Com um suspiro quase imperceptível, ela se inclinou. Lentamente, ela se curvou, o movimento preciso, mas tenso. Quando estendeu a mão, o mundo pareceu encolher até caber naquele único gesto.
O Rei observava em silêncio. E então, o toque.
Quando a ponta dos dedos dela roçou a mão real , um sobressalto atravessou os dois - breve, involuntário, impossível de disfarçar. O toque foi leve, mas o suficiente para alterar o ar ao redor.
Os lábios estavam pressionando o ouro frio do anel, e por um instante o mundo pareceu conter o fôlego. A pele do Rei era fria, firme, sedosa. Seu cheiro era o do inverno prestes a ceder - fresco, levemente amadeirado, que lembrava os ciprestes após a chuva. Um aroma que parecia nascer da própria noite. Uma centelha - tênue e perigosa - percorreu o espaço entre ambos, como se algo adormecido reconhecesse a si mesmo.
Liliana ergueu o olhar devagar. Os olhos tristes dele eram como estrelas a brilhar na escuridão. Seu rosto jovem de anjo caído. O Rei não recuou. Por um instante, a distância entre o trono e o chão desapareceu - havia apenas dois imortais presos à lembrança de algo que não sabiam nomear.
Do trono, o Rei fitava Liliana com atenção silenciosa. Havia algo naquela mulher: o contraste entre a figura pequena e alva com a postura altiva, o brilho dos cabelos cor de chocolate à luz das tochas, os lábios macios, quentes, carnudos e rosados a tocar levemente a sua mão, um perfume floral, leve e fresco, envolvia-a - lírios, talvez rosas... e flores de laranjeira misturados a algo indefinível, um aroma que parecia ter vontade própria, insinuando-se ao redor dele, suave e hipnótico, e, sobretudo, aqueles olhos - de uma cor que mudava com o ângulo, ora mel, ora verde, ora âmbar - como se carregassem séculos de lembranças que ele não sabia decifrar. Por um breve momento, ele esqueceu o tempo e o espaço - havia apenas o olhar dela, fixo, profundo, implacável, e a sensação de que nada além daquilo realmente existia.
Então, ele recolheu a mão com suavidade, quebrando o encanto.
- Que a noite os guie - disse o Rei, a voz quase um murmúrio.
Liliana inclinou a cabeça em silêncio. As borboletas em seu estômago tornaram-se um peso confuso, denso - uma sensação estranhamente familiar, que só havia sentido uma vez antes... diante de um homem que, há muito tempo, fizera o mundo parecer suspenso da mesma maneira.
Quando se ergueu, Liliana sentiu o corpo responder com uma leve vertigem - como se o toque ainda ecoasse nela, um vestígio impossível de apagar. Endireitou a postura, o olhar distante, forçando-se a respirar com calma.
Fraqueza, pensou. Só isso. Uma reação, nada mais.
Mas, ao tentar afastar a sensação, percebeu que ela não se dissipava - apenas se tornava mais discreta, como uma chama pequena que se recusa a apagar.
Do trono, o Rei continuava a observá-la em silêncio, embora agora fingisse atenção aos protocolos que seguiam. Liliana desviou o olhar, mas ainda sentia o peso do dele, firme, constante, quase reverente.
Vossa Majestade Logan Stuart aparentava juventude, mas carregava nos olhos o peso de séculos. Sua presença impunha respeito - não pelo medo, mas pela quietude firme de quem governa entre sombras e intrigas. Procurava ser justo, manter a ordem num meio em que a lealdade era raramente pura.
Ainda assim, algo naquela mulher - Liliana - o perturbava em silêncio.
Não como ameaça, mas como lembrança.
Uma sensação incômoda e quase familiar, que lhe despertava um instinto antigo - um chamado que ele não sabia nomear.
Havia nela algo que o fazia conter o olhar... e, justamente por isso, olhar de novo.
O modo como a luz tocava o rosto dela, o brilho do rubi em seu pescoço, o ritmo quase hipnótico dos gestos calmos - tudo o levou de volta a uma noite recente, ao salão de vidro e ferro do Nocturne Club, quando, por entre luzes vermelhas e sombras dançantes, ele a vira pela primeira vez.
A mulher que dançava sozinha.
A mulher que desaparecera antes que pudesse descobrir quem era.
E agora, ali, diante do trono, ela estava novamente - viva, concreta, enigmática.
O destino, mais uma vez, provava que tinha senso de ironia.
Um mistério. Um eco.
Endireitou-se no trono, a expressão impassível, e inclinou-se ligeiramente em direção ao conselheiro.
- James - murmurou. - Quero que investigue essa mulher em sigilo. Todo errante tem uma história, e eu pretendo descobrir a dela. Seja discreto. Não quero o Mestre das Informações envolvido, nem monopolizando o fluxo de dados sobre ela.
O conselheiro franziu o cenho, desconfortável.
- Logan, Majestade... - respondeu em voz baixa. - Por que uma mera marginal, e agora membro do Sindicato, merece tanto interesse da Coroa? Promovê-la a Agente Real? Isso é temerário... e incomum.
Logan virou o rosto na direção dele, o olhar frio como gelo.
- James Douglas - disse com calma que pesava mais do que grito -, és meu braço direito e amigo leal, mas nunca te dei o direito de questionar uma decisão real.
James abaixou o olhar, contrito, mas ainda inquieto.
Logan continuou, o tom mais baixo, quase introspectivo:
- Há algo nessa menina... algo que escapa à razão. - A voz de Logan soou baixa, pensativa. - Não consigo ler a mente dela, James. Está a me bloquear... e isso é raro. Raríssimo. - Ele fez uma pausa, o olhar perdido em algum ponto distante, como se tentasse decifrar o próprio desconforto. - Especialmente para alguém que parece tão simples à primeira vista.
Virou-se de leve, a expressão agora mais sombria.
- Se o destino resolveu me testar através dela... - murmurou, quase para si. - Quero estar pronto antes que ele revele o que realmente pretende.