Belly
Angelina chorava tanto que meu coração parecia afundar no peito. Eu não sabia como reagir. Comecei a andar de um lado para o outro, perdida, sem saber se abraçava, gritava ou quebrava tudo pela raiva que eu sentia... mas não era dela. Era de mim. De mim por não perceber nada. De mim por não proteger a minha irmã.
- Ele... ele me oferecia dinheiro - disse ela, limpando o rosto com a manga da blusa, mas as lágrimas insistiam em cair.
- Dinheiro para eu... para eu ficar calada, para eu deixá-lo encostar em mim. Mas eu nunca aceitei, porque você é minha irmã. Você é... é quase uma mãe para mim.
O chão fugiu dos meus pés.
- Gabrielle... - a voz dela falhou.
- Eu nunca, nunca trairia nossa amizade. Nunca faria nada para te ferir. Eu te amo. Você é tudo o que eu tenho.
Ela respirou fundo, como se aquilo doesse mais do que qualquer coisa.
- Se você não quiser mais a minha presença aqui nessa casa... vou embora. Mas precisava te contar. Porque estou me sentindo sufocada, mana. Eu não aguentava mais carregar isso sozinha.
A dor que ela carregava pesava tanto que senti que poderia quebrá-la se respirasse mais forte. Dois dias depois, enquanto eu me arrumava para ir à audiência, encontrei Angelina no quarto dela fazendo as malas. A mala aberta na cama, roupas mal dobradas, lágrimas secas no rosto.
- O que você está fazendo? - perguntei, com o peito apertado.
- Vou alugar um apartamento perto do meu trabalho - respondeu sem me olhar.
- A Tiana está na escola, o papai está dormindo e a moça que vai cuidar dele deve chegar daqui a pouco...
Ela engoliu a seco. Tremia. E eu não suportei. Puxei-a pelo braço, de surpresa, e a abracei forte. Tão forte que senti seus ossos vibrarem. Angelina afundou no meu peito e chorou como quem implora por perdão.
- Eu nunca culparia você - sussurrei contra os cabelos dela.
- Conheço o Mário. Sei muito bem do que ele é capaz. Sei o quanto ele pode ser... podre. Eu te amo, irmã. Te amo tanto. E eu tenho ódio de mim por deixar você passar por tudo isso... sozinha.
Ela soluçava, me agarrando como se eu fosse a única salvação num mar revolto.
- Mário é a pior pessoa que eu já conheci - continuei, sentindo o rímel descendo com as lágrimas.
- Por causa dele perdi o meu filho...
Minha voz se quebrou. Ela riu entre lágrimas, aquela risada nervosa e desesperada de quem não sabe se desaba ou grita. Foi ali, entre choro e raiva, que finalmente fizemos as pazes. Angelina era uma boa irmã. Sempre foi. E aquele desgraçado nunca mais ia ter poder sobre nós. Nunca mais. Podíamos ser pobres, podíamos morar num prédio simples, mas tínhamos algo que nenhum homem conseguiria destruir:
Caráter. Honestidade. E coragem.
- Você está perdoada - falei, limpando a última lágrima dela.
- Agora vamos. Porque você ainda vai fazer a minha maquiagem, e olha para mim... estou um farrapo! Como é que vou me apresentar no fórum desse jeito?
Ela riu, linda como sempre, com aqueles cabelos negros ondulados que lembravam o papai. Enquanto ela me arrumava, minha mente insistia em fugir. Eu pensava no Rafael. No cheiro dele ainda impregnado no terno que escondi no guarda-roupa. No nosso sexo absurdo dentro daquele avião. No corpo dele. Na voz dele.
Será que a noiva voltou? Será que ele se lembra de mim? Será que... ah, dane-se também. Quando cheguei ao fórum, ajeitei meu rabo de cavalo, respirei fundo e segurei minha pastinha de documentos como se fosse um escudo. Minha calça jeans, meu salto leve e o blazer branco, presente de mim para mim mesma no México, me davam confiança. E então o vi.
O bonitão. O promotor. O homem que virou meu corpo do avesso e agora estava ali, à minha frente, folheando papéis como se eu fosse somente mais um processo qualquer. Fingi que não doeu. A audiência foi um caos. Minha ex-patroa e a filha rindo, debochando. Mentindo. Me acusando até de assassinato. Eu quase pulei no pescoço da desgraçada. Mas meu advogado segurou minha mão e eu segurei minha dignidade. Rafael Delmon anunciou a sentença com aquela voz grave que me deu um arrepio na espinha. Ganhei tudo.
Tudo. Direitos. Seguro-desemprego. Indenizações. E a honra de ver Jamile bufar de ódio. Quando tudo acabou, eu tentei falar com ele. Mas ele saiu rodeado de gente. Uma morena linda, que eu lembrava do México. Uma loira pendurada no braço dele. Homens armados ao redor. Um carrão.
Ele era importante. E eu? Eu era uma formiga no meio do asfalto quente. Observei escondida. Como sempre. Fui pegar o táxi. Só queria ir embora. Mas Jamile me agarrou pelo braço com tanta força que quase me derrubou.
- Isso não vai ficar assim! - gritou ela, me sacudindo.
- Você destruiu meu namoro! Ele foi embora por sua culpa!
Respirei fundo, quase vomitei de raiva. E aí... Aconteceu. Meu estômago virou. O enjoo subiu. E na cara dela, naquela cara maquiada e cretina, foi parar tudo. O vômito espirrou no vestido branco dela como uma obra de arte acidental.
Ela gritou:
- SUA VAGABUNDA!!!
Ela levantou a mão e desejou bater no meu rosto e então uma carinha que mamãe sempre beijou neguinha nenhuma iria bater! A empurrei e entrei no táxi e a famosa frase até a vista baby. É uma famosa frase do meu filme favorito. Schwarzenegger, mostrei o meu dedo do meio e ela gritou ao jogar a bolsa no chão e então aquele sorriso brotou em meus lábios. Jamile é loira, tem um corpo bem magro e os cabelos são curtos. Por todo o caminho penso nele e como a vida é injusta. Queria vê-lo e fui praticamente ignorada e aquela noite nunca existiu?
Que seja! Minha vida ficou ainda mais difícil quando pela manhã descobri a gravidez de dois meses. Todos os lugares estavam buscando por emprego. Ninguém me aceitou e aquela miserável ainda conseguiu falar que sou da favela e me envolvia e iria roubar seu estabelecimento.
O tempo passou, e com o dinheiro que recebi daquelas bruxas consegui sobreviver. Não era muito, mas foi o suficiente para manter meu pai vivo, comprar remédios e segurar a minha própria saúde enquanto a barriga crescia. Nove meses depois, estava ali, deitada numa maca barulhenta daquele hospital público, tão perto do lugar onde cresci, e tão longe da vida que sonhei. As dores eram terríveis, cortavam minha lombar como lâminas em brasa. Gritei, supliquei, perdi o fôlego, recuperei, empurrei mais uma vez.
E, na última força que minha alma ainda tinha, ela veio ao mundo. Minha filha. Minha Isabelle. Olhei para aquele rostinho miúdo, enrugadinho e perfeito, e meu coração se abriu de um jeito que nunca havia conhecido.
- Tenho que encontrar o seu pai... - sussurrei, a voz trêmula.
- Ele precisa saber que você existe, minha filha. Mas onde vou encontrar?
Beijei-a devagar, sentindo aquele cheiro doce de recém-nascido que acalma até a alma machucada. Ela era linda. Um presente de Deus, mesmo que viesse com dores, medo e uma solidão que eu fingia não sentir. E toda vez que eu encarava o rostinho da minha princesa... eu o via. Os traços eram sutis, mas inconfundíveis. Como apagar algo tão marcado assim?
Uma hora depois...
Fui levada para a sala pós-parto. Eu mal conseguia me sentar, o corpo parecia desmontado. As enfermeiras me ajudaram com cuidado, posicionando Isabelle no meu peito. Ela abriu a boquinha e começou a mamar, e naquele segundo eu soube que viveria por ela. Minhas irmãs entraram logo depois, emocionadas.
- Que linda, irmã... - a menor disse, passando a mãozinha na cabeça da bebê.
- Nossa Belinha nasceu - completou Angelina, com um sorriso orgulhoso.
- Vamos cuidar bem dela, dar tudo o que precisa para crescer forte, saudável e amada. Ela vai ter tudo, eu prometo.
As palavras dela me desmontaram. Chorei. Chorei de alívio, de medo, de gratidão. Elas não sabiam a verdade. Eu nunca contei quem era o pai da minha filha. Nunca tive coragem. Nunca soube se deveria. Nunca soube se ele merecia saber. Até que... o destino resolveu cuspir tudo na minha cara naquele mesmo dia. A televisão da sala estava ligada, passando um telejornal qualquer. Nem dei atenção no começo, estava ocupada demais admirando os dedinhos minúsculos da Isabelle.
Então ouvi o nome. E o mundo parou. A notícia dizia que um juiz havia sofrido um acidente. Nada grave. Estava se recuperando em casa, segundo o repórter, e "passava bem ao lado de sua noiva". A câmera mostrou-o. Meu coração travou. Meu sangue gelou. Angelina percebeu minha expressão e me encarou. Engoli seco, a voz quebrando antes de sair.
- Ele é o pai, Angelina...
Ela arregalou os olhos.
- O quê?
Respirei fundo, como se confessar aquilo fosse tirar um peso de milhões de toneladas do meu peito.
- Rafael. Ele é o pai da minha Bellinha. - Senti a lágrima quente escorrer.
A lágrima quente deslizou pelo meu rosto. Angelina arregalou os olhos, completamente chocada.
- O quê? - Ela colocou a mão na boca.
- Belly, tem certeza? Não é possível... o juiz da TV? Irmã, pelo amor de Deus, é ele mesmo? Aquele homem do sexo incrível em seu retorno ao país?
Assenti devagar, o coração pulsando dolorido.
- É ele... eu o reconheceria até de olhos fechados.
Angelina piscou várias vezes, tentando absorver tudo.
- Nossa... que mundo pequeno esse, viu? Justo ele... justo o homem que você achou que nunca mais fosse ver. - Ela se sentou ao meu lado, ainda em choque. - Irmã... o que você vai fazer agora? Agora que sabe quem ele é de verdade... vai atrás dele? Vai contar sobre a Isabelle?
Meu peito apertou. Suspirei fundo, olhando para minha filha dormindo tranquila, tão inocente em meus braços.
- Não, Angelina... - murmurei, empurrando o ar para fora em um fio de voz.
- Não vou atrás dele. Não sou nada na vida dele, nem ninguém para atrapalhar a vida perfeita que ele tem. Ele tem uma noiva, uma carreira, um nome limpo... sou só... eu.
Angelina arregalou mais os olhos.
- Como assim "só você"? - disse com indignação.
- Você é uma mulher guerreira, você passou pelo inferno e saiu viva. Você nunca foi pouca coisa! E outra: ele tem o direito de saber que tem uma filha!
- Sei... - sussurrei, apertando o lençol.
- Mas eu também sei o meu lugar. A vida dele é perfeita, Angelina. A minha... virou um caos. E eu não quero que a Bellinha seja motivo de destruição para ninguém.
Angelina segurou meu rosto entre as mãos, com firmeza e os olhos marejados.
- Irmã... você não destrói nada. Você constrói. Você sempre construiu. Você sempre levantou todo mundo. Você não tem culpa de nada do que aconteceu. - Ela respirou fundo.
- Mas me diz, de mulher para mulher: você ainda gosta dele?
Engoli seco.
O silêncio respondeu por mim.
Ela balançou a cabeça, compreendendo tudo sem eu precisar explicar.
- Então você vai mesmo criar a Bellinha sozinha? Vai guardar esse segredo para sempre?
Olhei minha filha, tão pequena, tão frágil, tão parecida com ele... e senti o peito arder.
- Vou... se for para protegê-la. - Minha voz falhou.
- Prefiro sofrer sozinha do que destruir a vida de alguém. O amor não obriga... e eu não vou implorar.
Angelina enxugou minhas lágrimas com os dedos.
- Você é forte, irmã... mas não precisa ser forte sozinha.
- Eu sei irmã, te amo muito, que bom temos você... - Ela disse e eu encostei a testa na dela, exausta, dolorida, mas com minha decisão feita.