Capítulo 4 Prefiro morrer a vê-lo novamente na minha frente!

Belly

Por mais que doesse admitir, ele tinha razão. Não significou nada. Nada além de dois adultos tomados por um momento de loucura e bebida. Tirei meu rosto do ombro dele e virei para o lado oposto, sentindo ainda o cheiro dele impregnado na minha pele, o calor do seu toque em meu braço, que me fazia estremecer.

- Fui deselegante com você. Perdão, não queria ser tão rude - disse ele, a voz baixa, quase quebrando.

- Eu devia ter me controlado.

- E você tem alguém, não é? - murmurei, quase sem fôlego.

Sentindo uma pontada de arrependimento misturada à raiva.

- Sim, tenho. E por ela ainda tenho sentimentos... - ele suspirou, pesado.

- Traí o que sentia e me deixei levar pela bebida, pela nossa conversa...

Não queria ouvir. Não queria absorver aquelas palavras, mesmo que fossem um pedido de desculpas. Somente olhei para ele e solicitei, com o olhar, que se calasse. Não havia necessidade de justificar o que aconteceu. Não havia futuro nisso. Respirei fundo e disse em voz baixa:

- Está tudo bem. Não precisa se explicar tanto. Não temos nada, e não haverá nada. Somente... esqueça.

Ele me lançou um olhar que misturava arrependimento e desejo, mas não havia como ignorar a tensão que ainda pairava entre nós. A noite anterior, a bebida, o calor do corpo dele... tudo ainda estava fresco em minha pele, pulsando em minhas veias.

Não sei ao certo quando adormeci, mas percebi que Rafael havia apagado primeiro. Vi quando ele praticamente devorou uma garrafa inteira de vinho antes de se entregar ao sono. No dia seguinte, despertei com a aeromoça tocando meu ombro e o terno dele cobrindo meu corpo como um cobertor improvisado.

- Poderia ter esperado... - murmurei para mim mesma, sentindo o calor do corpo dele mesmo adormecido.

Percebi que já estávamos no Brasil. Ao tocar no bolso do terno, senti o perfume dele misturado ao tecido e um bilhete rasgado caiu junto, com seu número escrito à mão.

Então... era uma chance. Uma mínima, tênue chance.

- Melhor não criar expectativas - pensei. - Mas vou guardar esse número.

Quando saí do avião, vi as pessoas que mais amo no mundo: minhas irmãs e nosso pai. Eles estavam ali, exatamente no momento em que precisava deles. Meus olhos se encheram de lágrimas e corri para abraçá-los.

Algo, porém, chamou minha atenção à distância. Vi um carro luxuoso se aproximando, cercado de seguranças. Um frio percorreu minha espinha, mas voltei meu olhar para minha família.

- Estou bem - respondi, tentando esconder a ansiedade. - Mas não precisava trazer o pai.

- Pai, você precisa se cuidar. Por que veio? - perguntei, preocupada.

- Tiana, Angelina, eu disse para não trazê-lo, olhem como está emotivo. Isso não faz bem ao coração. Merda, vem cá, me dá um abraço também, urso!

Rimos, e fui abraçada por todos. Um calor familiar me envolvia, mas meus olhos continuavam a seguir o carro luxuoso que já se afastava.

- Mana, o que você tanto olha naquela direção? Já foram - disse Angelina, curiosa. Mudei de assunto rapidamente.

- Vamos. Enfim, estou no Brasil. Angelina, você fez tudo o que eu te solicitei?

- Sim, tudo certo. Encontrei o apartamento e o lugar para nos mudarmos. É em um condomínio fechado, bem seguro e organizado.

- Ótimo. Mas... quem andou procurando por mim?

Angelina hesitou. O silêncio dela foi suficiente para me deixar alerta.

- Você não vai acreditar... Desde que você foi para Portugal, ele saiu da prisão. Acho que ninguém lembra mais do caso...

- Quem, Angelina? - Minha voz falhou, o arrepio subindo pela minha espinha.

- Mário - disse ela, finalmente.

Meu corpo estremeceu.

- Ele disse que tem alguém, que está noivo e... que se arrependeu de tudo no passado. Que queria me pedir perdão pessoalmente.

- Quero-o longe de mim! - falei na hora, sem pensar duas vezes.

- Ter aquele homem por perto me faz lembrar do filho que perdi naquela noite.

Olhei firme para minha irmã.

- Não conte a ele sobre o meu retorno. Prefiro morrer a vê-lo novamente na minha frente!

Ano atual:

2022

No caminho até a favela de Heliópolis, senti meu peito apertar. Tantos anos longe e, de repente, lá estava eu, voltando exatamente ao lugar onde tudo começou, onde cresci, onde apanhei da vida e onde aprendi a sobreviver. A cada rua estreita, a cada laje velha, a cada escadaria marcada pelo tempo, era como se pedaços da minha infância voltassem a pisar no meu calcanhar.

Eu estava acompanhada do meu pai e das minhas irmãs. Todos os moradores olhavam, murmuravam, apontavam. Parecia até que eu era uma celebridade, e isso me deixava sem saber se ria ou se me escondia.

A primeira pessoa que correu até mim foi a mais impossível de todas: minha prima Júlia. Do jeitinho dela, exagerada, intensa, coração maior que o mundo.

- Belly! - gritou ela, com os olhos cheios de lágrimas, linda como sempre, e me abraçando com tanta força que senti meus ossos reclamarem.

O abraço dela... não era nada comparado às nossas chamadas de vídeo. Aquilo, sim, era real. Era quente. Apertado, até demais.

- Cara, que saudades! - ela disse ainda me esmagando. - Não posso acreditar que minha prima está aqui! E me perdoa... sinto muito pelo que te aconteceu. Mamãe está arrasada, sabia? Ela até pediu demissão, e aquelas duas... ah, aquelas duas serpentes, eu juro que corto a língua das miseráveis!

Quase ri da fúria dela, mas a dor por trás daquelas palavras era verdadeira. Minha tia, mãe da Júlia, nunca teve culpa de nada. Ela engolia sapos todos os dias por causa da Jamile, minha ex-patroa. Era ela quem me defendia nas armações, quem chorava por mim escondido na cozinha, quem me solicitava paciência e força.

Se não fosse minha tia, eu nunca teria conseguido desaparecer, muito menos ir parar no México e recomeçar minha vida do zero.

- Gabrielle... - escutei minha tia dizer meu nome completo quando se aproximou, a voz embargada.

Ela largou a bolsa no chão e abriu os braços, como se estivesse segurando o mundo inteiro só para me receber. Os olhos dela estavam vermelhos, inchados de tanto chorar.

- Minha filha, graças a Deus você voltou. Eu sempre soube que você era inocente. Sempre - disse ela, me abraçando como se tivesse receio de que eu sumisse de novo.

O momento acabou sendo interrompido quando o dono da boca, cercado pelos seus homens, parou bem na minha frente. Ele me olhou de cima a baixo, com aquele sorriso torto e perigoso de sempre.

- A quebrada sentiu tua falta, Belly. Está linda, viu? - disse, ajeitando o cordão de ouro no pescoço antes de seguir com a sua tropa, rindo de canto.

Júlia se inclinou até meu ouvido.

- Prima, você viu? O trafic nunca te esqueceu - murmurou, debochada.

Eu só respirei fundo e abri um sorriso educado, do tipo que se dá quando a única coisa que se passa pela cabeça é vou dar o fora desse lugar assim que der.

O barraco estava aos pedaços. Só uma reforma leve havia sido feita e um puxadinho improvisado ao lado. Pela casa toda havia montes de materiais jogados: sacos de cimento, pisos empilhados, potes de tinta abertos, ferramentas largadas em cima das cadeiras.

Eu sempre mandava dinheiro quando podia, e minha maior preocupação era o meu pai e minhas irmãs. Angelina havia contratado dois pedreiros para agilizar tudo. Ela me mandava selfies da obra pelo celular, orgulhosa, se gabando que já tinha consertado o telhado, levantado as paredes e trocado parte do piso.

Na época em que eu era casada com Mário, mal conseguia ajudar com nada. Vivia contando moedas. Só quando comecei a trabalhar no México a minha vida virou de cabeça para cima, finalmente para melhor. Tiana, ainda nos estudos, fazia cursinho de inglês e espanhol com a ajuda da Angelina, que trabalhava na casa de um empresário e fazia diárias extras sempre que conseguia.

Angelina sempre teve seu salário certinho, pagava a faculdade - trancava e voltava mil vezes - e ainda bancava parte dos medicamentos do nosso pai. O sonho dela era ser dentista, embora ainda estivesse longe de concluir.

Olhei ao redor e concluí que, no fundo, pouca coisa havia mudado na quebrada. A vida aqui corria do mesmo jeito: dura, injusta, acelerada. Júlia atendeu uma ligação e, em segundos, sua expressão se fechou. Ela afastou o telefone do ouvido, mas o homem do outro lado vociferava insultos que preenchiam o ambiente.

Ele a xingava sem parar, cuspindo ameaças. Tudo porque, na noite anterior, ela mordeu o pau dele. E tudo porque ele tentou enfiar tudo goela abaixo sem deixá-la respirar. Ouvi cada palavra, cada frase nojenta, sentindo a raiva subir como fogo. Mas não era só isso. Ele também havia sido extremamente agressivo. O hematoma roxo embaixo do olho dela, a ferida no canto da boca... agora faziam sentido.

Meu pai apareceu na porta, ajeitando o cinto, impaciente.

- Filha, podemos ir? Estou pronto. Suas irmãs também. E então? - disse, olhando diretamente para mim, com aquele ar de quem queria tirar todo mundo dali o mais rápido possível.

Antes que eu respondesse, outra voz ecoou pelo barraco.

Abigail. Minha tia. Vestida como sempre: saia longa que cobria os joelhos, cabelos presos numa touca, Bíblia apertada contra o peito, o rosto montado na expressão chorosa que ela adorava usar como máscara.

- Gabrielle, minha filha! Soube que voltou. O que faz aqui? - disse meu nome todo, já com o falso choro escorrendo escandalosamente.

Quando minha mãe foi embora, Abigail jurou que cuidaria de mim e das minhas irmãs. Mas nunca fez. Nunca esteve presente. Nunca perguntou se precisávamos de comida, remédio ou um abraço.

- Senti tanta saudade... - disse ela, enxugando lágrimas inexistentes.

Angelina revirou os olhos. Júlia cruzou os braços e abriu um sorriso ameaçador.

Eu só a encarei, sabendo exatamente o que ela queria.

O marido dela era um viciado em jogo do bicho, e ela vivia devendo meio mundo. Mesmo assim, nas igrejas, era tratada como santa. O marido chamava-a de "mulher virtuosa", e a própria Abigail adorava esfregar o título na nossa cara.

Então, claro, ela veio solicitar dinheiro.

Respirei fundo, controlando a vontade de rir.

- Tia, tudo que tenho é pouco. Eu não tenho trabalho ainda, e o que eu trouxe pertence a uma amiga. Não posso gastar.

Júlia perdeu a paciência na hora.

- Vaza, tia. Vai solicitar dinheiro para quem deve! - disse ela, apontando para a porta.

Angelina concordou, irritada. Tiana continuou calada, mas seu olhar dizia tudo: ela conhecia a tia tão bem quanto nós e detestava a ganância dela. Abigail bufou, fez mais um teatro, murmurou que Deus estava vendo tudo e saiu com pressa, sem olhar para trás.

Fiquei ali pensando. Ela nunca tinha vindo me ver quando eu morava aqui. Nunca trouxe um pacote de café, nunca perguntou se eu precisava de sabão. Mas agora, porque voltei de mala e cuia, de repente parecia que eu havia voltado rica.

O dinheiro que tinha na minha conta não era meu. Minha amiga no México não sabia o que me acontecera. Foi tudo tão rápido que eu nem tive tempo de explicar. Tínhamos um plano: abrir um restaurante juntas. Será que ia dar certo? Eu não sabia. Mas quando entrei no carro, vi a notificação do depósito: cem mil reais. Metade era minha parte. Metade era dela. Uma sociedade que a vida decidiu atropelar.

Liguei para ela no México. Ela atendeu com a voz sonolenta e doce. Minhas irmãs ficaram em silêncio, olhando maravilhadas enquanto eu falava espanhol com fluência. Transferi o dinheiro de volta. E, para minha surpresa, ela me enviou mil reais de presente. Não era muito, mas foi o suficiente para arrancar minhas lágrimas. Aquele dinheiro auxiliaria nas despesas até a mudança.

Angelina encontrou um aluguel barato no centro, num condomínio simples, mas seguro. Estava tudo preparado. O caminhão de mudanças já estava encostado no portão. Júlia olhava o celular, distraída. Quando desviou o olhar para mim, soltou a pergunta que sempre evitou... mas que não podia mais segurar.

- Prima, quando vai largar essa vida?

            
            

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