Capítulo 8 Lamento muito, sua reputação é suja.

Belly

Eu mal conseguia respirar depois de tudo o que havia acontecido lá fora. Minhas pernas tremiam tanto que pareciam não aguentar meu peso, mas minhas irmãs me seguraram antes que eu desabasse. Elas me envolveram num abraço apertado, quente, cheio daquele amor que sustenta quando o mundo inteiro tenta derrubar a gente.

Elas sabem do meu passado. Sabem por que fico assim só de ouvir o nome daquele miserável? Sabem por que eu tremo. Sabem do buraco que se abriu na minha vida quando perdi meu menino. Meu Davi... O filho que me foi arrancado. O bebê que morreu por causa da crueldade daquela família que eu preferia nunca mais lembrar.

- Calma, a gente está aqui - Angelina sussurrou.

Senti outra mão nas minhas costas; era Letícia, tentando segurar as próprias lágrimas.

- Se ele pensa que você é a mesma de antes... - Letícia cerrava os dentes - está muito enganado.

Assenti, enxugando o rosto.

- Não quero aproximação nenhuma. Não quero vê-lo. Não quero nem que ele respire perto de mim.

Entramos no apartamento em silêncio, tentando recuperar o fôlego, e o primeiro som que ouvi foi o resmungo baixo da minha bebezinha. Ela estava deitada no bebê conforto novo que comprei com tanta luta. As três "bruacas", aquelas patroas ingratas, me deviam três meses de pagamento.

Mas eu já tinha enfiado um advogado no meio - uma hora ou outra elas iam pagar.

Coloquei as sacolas na cozinha e comecei a organizar tudo. Depois arrumei as coisinhas da minha pequena no quarto: fraldas, lenços, xampu, uma roupinha nova. Comprei até uma tortinha pronta - simples, mas cheia de significado. Eu queria fotos das três juntas celebrando os quatro meses da minha princesa.

Fui tomar um banho rápido para tirar o peso daquela rua, daquele encontro inesperado que quase abriu feridas que levei anos para fechar. Quando saí com a toalha na cabeça, meu pai estava no quarto assistindo seu jogo favorito. Gritava a cada ataque, vibrava como se tivesse minha idade.

- Pai! - reclamei, encostando-me na porta. - O médico falou para não exagerar!

Ele olhou para mim e deu aquele sorriso bobo e carinhoso que sempre me desmonta.

- Ah, minha filha... sou forte feito um touro.

- Nem tanto - respondi, rindo sem vontade.

Ele estendeu os braços e encostei minha cabeça em seu peito. Ele afagou meu cabelo devagar.

- Você é meu orgulho - disse baixinho.

- Você e suas irmãs são o presente que Deus me deu. Queria ser mais forte para ajudar em casa, para ser o pai que merecem... mas fiz o que pude.

- Pai, eu te amo - murmurei, beijando sua bochecha.

- E você já ajuda. Só precisa se cuidar.

Voltei para a sala e peguei minha pequena, que abriu os olhinhos castanhos como quem reconhece minha voz. Sentei, ajeitei-a no colo e comecei a amamentar. Era o único momento em que eu esquecia realmente de tudo. O único momento em que meu coração sossegava.

Tiramos as selfies ao lado da tortinha depois, sorrindo como se o mundo fosse simples. Minha filha parecia um anjinho - e, com o tempo que passo olhando para ela, percebo cada vez mais como se parece com o pai.

O homem que marcou minha vida para sempre... para o bem e para o pior. Os cabelos ela puxou de mim, mas o resto... é a cara cuspida dele. E isso, às vezes, me machuca mais do que admito. À noite, antes de dormir, fiquei encarando o teto. Será que ele se lembrava de mim? Será que sabia de tudo o que destruiu? Ou será que fui só mais uma pedra no caminho dele? Talvez seja melhor não pensar.

No dia seguinte, tudo começou cedo. Minha prima apareceu para me visitar e eu já estava atrasada para o trabalho. A babá havia acabado de chegar. Ela aceita metade do pagamento porque sabe da minha situação e, quando posso, ajudo com o que ela precisa.

Minha irmã também cuida da pequena quando está de folga, e sempre deixo potes de leite materno na geladeira. Dói sair de casa, dói ficar longe, mas não tenho escolha. A mamãe tem que trabalhar. Minha prima estava animada, com um brilho diferente no olhar.

- Prima, ontem eu estava na discoteca, né? Acompanhando um cliente... - ela começou devagar, como quem saboreia a fofoca. - Aí ele foi ao banheiro, e uma mulher linda, loira, toda elegante, veio em minha direção.

Fiquei esperando.

- Ela me entregou um cartão. Disse ter uma agência de modelos e que eu era linda demais para estar nessa vida. Que se eu tivesse interesse... para ligar.

Eu sorri de verdade pela primeira vez naquele dia.

- Prima, segue teu coração. Se sempre quis... tenta. É melhor do que continuar nessa vida.

Ela assentiu, pensativa.

- Vou pensar. Não é certo ainda... mas talvez seja a chance.

Depois ela começou a contar histórias dos clientes, incluindo um que pagou uma fortuna para ela fazer cócegas no pé dele. Rimos tanto que até esqueci o horário. Quando vi, já estava atrasada. Saí correndo, cheguei à clínica no limite, coloquei o jaleco enquanto andava e fui direto para a sala. Nem sentei. Foi quando minha supervisora me chamou em particular. Fechou a porta. Meu coração desceu para os pés.

- Lamento, querida. - começou, segurando um envelope grosso.

- Mas recebemos uma denúncia. Este material foi entregue aqui esta manhã. Você está no processo por ser acusada de roubo... e de envolvimento em outras irregularidades. O chão sumiu debaixo dos meus pés. As palavras dela ecoaram na minha mente como se não fossem reais. E, por um segundo, tudo voltou: minha luta, minha filha, meu passado. E a sensação de que alguém estava tentando me destruir de novo.

- Belly, vou pagar o tempo que você trabalhou conosco... não podemos manter alguém assim conosco. - Minha supervisora respirou fundo, como quem tenta justificar o injustificável.

- Mas preciso que entenda: faço isso pelo bem maior da clínica. Não podemos estar envolvidas em escândalos.

Não pude acreditar. Não podia. De novo. Outra vez. A vida esfregando a cara da injustiça na minha. Senti meu estômago embrulhar. Senti meus dedos gelarem. E senti aquela velha sensação de impotência subindo pela garganta, a mesma que conheci nas mãos daquelas duas demônias metidas a patroas, que arruinaram minha vida mais de uma vez. Quantas vezes desejei que elas tropeçassem bem alto e caíssem de cara no asfalto?

Muitas. Mas sempre que esse tipo de pensamento surge, lembro que o mal que a gente deseja volta. E eu não quero nada que volte para mim nem para minha filha. Então deixo nas mãos de Deus. Ele que sabe. Ele que resolve. Mesmo assim, a revolta queimava meu peito.

Olhei a carta de demissão nas minhas mãos. O papel parecia rasgar meus dedos. Eu não conseguia acreditar que após quatro meses me matando de trabalhar, sorrindo, ajudando, ganhando o carinho de quase todos ali dentro... eu seria descartada igual lixo.

- Demitida...? - minha voz saiu falha, estrangulada. - A senhora vai mesmo me demitir? Assim?

- Belly... sinto muito...

- Não, não sente. - Dei um passo para trás, como se assim pudesse me proteger.

- Eu... eu não acredito que isso está acontecendo de novo. De novo! - Minha respiração acelerou.

- Fiz tudo certo. Tudo!

Minhas mãos tremiam tanto que a carta sacudia junto.

- Você sabe quem fez isso, né? - perguntei, com amargura.

- Sabe que são elas. Aquelas duas me odeiam. Elas estão me perseguindo. Sempre estiveram.

Minha supervisora baixou o olhar, sem coragem de negar.

- Você é uma excelente funcionária, mas não posso arriscar o nome da clínica... lamento por tudo, sua reputação está suja e eu temo que a pessoa que fez a denúncia nos cause problemas.

- O nome da clínica? - ri, um riso triste, cansado, doído.

- E eu? Eu não tenho nome? Não tenho história? Não tenho um bebê em casa esperando por mim?

O silêncio dela foi a confirmação. Eu estava sozinha de novo. Engoli o choro com dificuldade.

- Eu só queria trabalhar - sussurrei, exausta.

- Só isso.

Senti meus olhos queimarem, mas levantei o queixo. Sempre levanto. Sempre me obrigo a levantar.

- Está bem. - Respirei fundo, tentando manter a voz firme.

- Se é isso... então está. Mas saiba que quem devia ter vergonha não sou eu.

Peguei a carta, dobrei com cuidado, como se dobrar aquilo fosse me devolver um pouco de dignidade, e virei para sair. A porta parecia longe demais. Pesada demais. Mas eu abri. Porque minha filha me esperava. E por ela eu não caio. Nunca mais. Antes de ir eu disse:

- Pensei que fosse diferente, eu me enganei!

            
            

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