Belly
Falei ao notar os chupões no pescoço da minha prima, as marcas roxas espalhadas pelos braços e a expressão cansada que ela tentava esconder.
- Belly, você sabe que dependo dessa vida... quem vai pagar a minha faculdade? - murmurou Júlia, tão baixo que quase não ouvi, porque meu pai observava tudo enquanto terminava de carregar as nossas coisas para a mudança.
Eu entendia a minha prima. A vida nunca havia sido fácil para ela, e cada um carrega feridas e necessidades que só o próprio coração sabe explicar. Júlia se prostituía porque os homens que a procuravam eram ricos, generosos... ou pelo menos fingiam ser. Ela recebia cheques que davam inveja a qualquer gerente de banco, comprava bolsas caras, roupas importadas e vivia produzida como uma boneca de luxo.
Com o dinheiro, pagava seu apartamento, sua faculdade de administração e ainda guardava o que podia. Sonhava em sair daquela vida, mas dizia que só conseguiria quando juntasse o suficiente para se sentir segura. A mãe dela, minha tia, não fazia ideia de nada disso. Estava morando no México, mas havia ligado avisando que voltaria ao Brasil em três dias. Júlia estava apavorada com isso.
Assim que saímos da favela, respirei um pouco melhor. Não demorou muito para chegarmos ao condomínio. O porteiro abriu o portão e o velho Uno vermelho do meu pai entrou soltando fumaça como se estivesse prestes a explodir. Ainda assim, era o carro que sempre nos salvou.
Arrumamos tudo juntas. As meninas me ajudaram a organizar cada caixa, cada detalhe da nova casa. Recebemos visitas à noite, parentes curiosos, vizinhos barulhentos... e o tempo foi passando. Agora, já fazia dois meses que estávamos morando ali.
E eu? Nada de trabalho. Nenhuma oportunidade. Nenhum retorno. Se não fosse o dinheiro que minha amiga do México me dera, estaríamos completamente destruídas.
Voltar ao Brasil não havia sido nada agradável. Além da decepção, da frustração e tudo o que deixei para trás, ainda tinha a lembrança daquele homem... aquele estranho que me deixou sem chão no avião. O cheiro dele ainda estava impregnado no terno que guardei dobrado no armário. Às vezes eu o pegava só para sentir o perfume de novo.
Eu precisava esquecer. Mas não conseguia. Cada noite era um tormento, cada dia uma repetição do mesmo pensamento: e se eu o encontrasse de novo?
A vontade era tanta que até me assustava.
Minha prima veio nos visitar um dia desses e, novamente, estava cheia de hematomas pelo corpo. Olhei para ela com a alma em pedaços. Quantas vezes tentei aconselhar? Quantas vezes implorei para que ela abandonasse aquela vida? Milhares. E, mesmo assim, ela nunca me ouviu.
Os dias estavam frustrantes, mas eu não podia desistir. Amanhã eu iria à clínica. Eles me prometeram uma entrevista e eu tinha fé. Aceitaria qualquer coisa, até serviços gerais.
No dia seguinte, depois de toda a espera, a recepcionista nem conseguiu olhar na minha cara. Disse que a vaga havia sido preenchida minutos antes. Estranho. Muito estranho. Mas aceitei. Não tinha escolha.
Voltei para casa com o coração apertado, e foi então que o mundo desabou. Poucos metros antes de entrar no prédio, encontrei meu pai caído no chão. Gritei por socorro, liguei para a ambulância, minhas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar o celular. Ele teve um infarto. Três semanas no hospital. Três semanas cuidando dele, dormindo em cadeiras de plástico, vivendo de café e rezas tortas. Quando finalmente voltou para casa, eu estava destruída, mas aliviada. Ao chegar, o síndico me entregou uma correspondência. Meu coração disparou, acreditando que finalmente seria um emprego. Uma chance. Uma luz no fim do túnel. Mas não. Era uma intimação. Uma audiência. Minha antiga patroa, aquela demônia, tinha conseguido me processar aqui no Brasil também. Como se tudo o que ela fez não tivesse sido suficiente.
Antes que eu pudesse reagir, Angelina se aproximou, inquieta, com as mãos trêmulas segurando o canto da blusa. Seus olhos estavam grandes, cheios de medo e uma tristeza que me cortava o peito. Ela respirou fundo, tentando se controlar, e então falou:
- Ele... o Mário... ele deu em cima de mim, mana - disse, com a voz trêmula, quase um sussurro, enquanto olhava para o chão. - Não foi só um beijo, Gabrielle... Ele tentou várias vezes me tocar, principalmente quando eu estava dormindo... Uma vez acordei melada de sêmen no rosto, ele estava fazendo coisas horríveis com a minha calcinha enquanto eu dormia. Foi... tão desagradável, tão nojento...
Ela engoliu em seco, fechando os olhos, e eu senti meu estômago embrulhar com a lembrança do quanto aquele homem era desprezível.
- Eu nunca dei atenção, mana, nunca aceitei nada. Mas aquele beijo, aquele beijo que ele conseguiu, para mim... não significou nada. Nada! - continuou, com a voz agora mais firme, cheia de dor e raiva misturadas.
- Não senti nada por ele, e nem quero sentir. Nunca. Só queria que tudo aquilo acabasse e que você soubesse a verdade.
Ela chora e entrega mais dos podres dele:
- Ele me pegava pelo braço no meio da noite, tentava me obrigar a ir para o quarto com ele. E quando eu resistia... ele ficava bravo, me ameaçava. Uma vez acordei e ele estava mexendo nas minhas coisas... minhas roupas íntimas... e eu não conseguia gritar, tinha receio de que você soubesse.
Ela apertou os punhos, tremendo, e eu pude sentir a raiva e o desespero emanando dela.
- E ele não parava, Gabrielle. Tentava me agarrar, me beijar à força. Tentou várias vezes. Eu me escondia, trancava portas, mas ele sempre achava um jeito de me seguir. Eu... eu sentia repulsa, raiva e medo ao mesmo tempo. - A voz dela falhou, e ela se encolheu, como se cada palavra a ferisse de novo.
Respirei fundo, apertando sua mão, tentando dar força, mas minha própria raiva crescia como um incêndio incontrolável.
- E aquele beijo, mana... aquele beijo foi só um reflexo, uma situação que ele forçou.
- Para mim, não significou nada. Nada! - Angelina levantou o rosto, olhando-me nos olhos, tentando transmitir toda a sinceridade e desespero.
- Eu não sinto nada por ele, nunca senti. Só queria que você soubesse a verdade...
Ela engoliu seco, como se o ar tivesse ficado pesado demais.
- Uma noite ele me prendeu tentando me violentar, mas tudo que ele conseguiu foi me beijar. Empurrei-o e dei um tapa. Depois, mordi a boca dele.
- Não te contei porque tive receio. Medo de você sofrer mais, medo de que ele fizesse algo com você, medo... de tudo. Mas eu precisava te contar. A culpa me consome diariamente. Eu te amo, irmã. Nunca seria capaz de te trair. Nunca. Você me perdoa?