O ano novo tinha acabado de passar e eu não tinha arrumado aquele quarto. Era um quarto pequeno, mas eu tinha sorte de não ter que dividi-lo. Cada uma de nós tinha seu quarto. O meu era o segundo menor e o de Ceci era maior e mais bem cuidado, benefícios em passar no vestibular de primeira. O de Karol era um antigo escritório que lhe servia de dormitório e quarto de brinquedos. O da minha mãe era no andar de baixo e era sem dúvidas o melhor. Cabia dois quartos meus dentro do dela. O meu além de ser o mais miudinho era o pior. Porque era de cara com a rua, ou seja, quando havia algum tipo de festa, ou um carro com um som alto perto do portão. Meu quarto virava uma gigantesca caixa de som. Prendi meu cabelo com uma piranha, ainda molhado e decidi deixá-lo secar por conta própria, não antes de passar um leave in nele, evitando desastres futuros.
Desci as escadas e me joguei no sofá. A sala estava assustadoramente arrumada. Minha casa seria bonita se não tivesse tanta gente bagunceira. De todos, só minha mãe era organizada, gostava de tudo no lugar, mas adorava bugigangas. E as filhas adoravam deixar as coisas espalhadas, tirar seus enfeites do lugar e isso a enlouquecia, já que sempre procurava deixar tudo arrumado. E hoje ela devia estar pulando de alegria ao ver a sala arrumada, sem os batons e revistas de Ceci, e os brinquedos de Karol haviam sumido. E os DVD's no raque de mogno? Haviam desaparecido completamente. O tapete cor de vinho da minha mãe estava bem esticado e a mesinha de centro escondia a pequena mancha de suco de laranja que Karol havia feito há algumas semanas. E além do mais tudo brilhava. Os quadros na parede, as fotografias na estante, os sofás bem arrumados, a mesinha perto da janela sem as chaves jogadas. Tudo assustadoramente organizado. Só meu livro havia sido deixado na mesa de centro, juntamente com as revistas sobre economia, política e artes que normalmente só eu e o marido de minha mãe costumávamos ler.
Logo notei que Ceci queria realmente impressionar o carinha e que seria interessante e divertido conhecê-lo, o tanto de piadas que eu podia fazer e como envergonhar Ceci como uma boa irmã mais nova que eu sou era catastrófico e adorável. Talvez o jantar não fosse tão desastroso, tedioso e cansativo assim, pensei.
No andar de cima eu podia ouvir a algazarra de Karol no banheiro, na cozinha minha mãe cantarolava e infelizmente, ela não tem uma voz muito doce... E Ceci andava de um lado para outro pela casa. Subindo e descendo pelas escadas, tirando os chinelos espalhados pela casa, mudando a posição dos anjinhos de porcelana da minha mãe na estante e quase furando o chão com tanta agitação. Procurei pegar meu livro e me distrair de toda a barulheira e ansiedade de Ceci, mas foi impossível.
– Dá pra pelo menos ficar parada?– comentei, já tonta com sua agitação. – Ou eu vou pregar seus pés no chão!
– Você parece irritada.
– Se eu estivesse irritada, você não estaria entre os que são desse mundo. Traduzindo, morta.
– Minha vida tornou-se emocionante desde que você veio morar conosco, as ameaças me emocionam.
Eu não podia dizer que havia sido tão emocionante, para mim. Eu havia decidido deixar meu quarto grande e confortável, a liberdade e frieza que meu pai me proporcionava e a irritante e monstruosa madrasta nova para trás quando me mudei para cá. Ganhando de brinde duas irmãs calorosas e irritantes. Uma mãe superprotetora, um padrasto indiferente e cheio de frescuras e dengos com a minha irmã mais nova e colegas de escola que dariam tudo para me ver cair do skate, de preferência com a cara no chão, todo dia quando me viam chegar à escola. Era uma troca bem divertida, é claro. Vivendo perigosamente e tudo o mais.-
– Também te amo irmãzinha. – sorri ironicamente e voltei a ler o livro.
– Malu...? – olhei para ela que havia sentado na escada, olhando para mim entre os vãos do corrimão. – Estou atrapalhando?
– Imagina. Você atrapalhar? Que isso! – disse irônica.
– Sorte a minha. – ela sorriu, a olhei com cara de assassina.– Tudo bem, leia seu livro em paz.
– Obrigada. – voltei a ler. Então percebi que Ceci batia o pé no chão no ritmo de alguma música sertaneja (de quebra, a mais irritante) que ela gostava. Isso começou a me irritar. Bufei, vencida. – Ta legal! Fala logo o que você quer.
– Ahhh obrigada! – Ela sentou-se no sofá graciosamente, mas ainda assim animada. Seu sorriso era resplandecente, a pele não possuía qualquer traço de alguém que morava na praia, Cecília abusava de filtro solar. Os olhos castanhos amendoados pareciam sorrir também. Diziam que nossos olhos eram iguais, a mesma cor, mas os de Ceci pareciam imensamente maiores, mais bonitos e destacados pela maquiagem bem feita. Era uma moça bonita e irresistível a minha frente, não era a toa ela viver rodeada de rapazes apaixonados. Suspirei e abracei os joelhos, juntamente com o meu livro. Preparada para o tédio.
– Ele é perfeito.
– Eles normalmente são.
– Não, ele é diferente. Realmente diferente. – ela quase suspirou e eu pude ver como seus olhos brilharam. E meio que me assustei com isso. – Ele é engraçado, sexy, trabalha pouco, ganha muito dinheiro. É bonito... Muito bonito. Não que eu me importe tanto com o trabalho e a beleza dele.
– Ah ta... – tentei não rir de sua 'piada', mas foi difícil. Ela me cutucou.
– É sério! Ele é tão legal e divertido. Ele me trata bem e tudo o mais.
– Já ouviu falar que é sempre assim no começo, não é? Mas os cafetões se tornam violentos depois de um certo tempo...
– Malu! – ela começou a rir, bem humorada do meu comentário jocoso. É, eu estar arrumada, ou seja com os cabelos penteados, surtia efeitos bons no humor dela. Ceci não suportava eu viver sempre de shorts, vestidos fora de moda, e blusas compridas. Sem contar as roupas que eu usava quando ia andar de skate, coisa que a deixava completamente horrorizada. Onde já se viu uma menina viver com arranhões, hematomas, bonés e rodeadas de garotos que falam gírias incompreensíveis? Eu era um caso sério, muito sério para ela que queria que eu usasse saias plissadas, blusinhas apertadas e os cabelos sempre presos em penteados elaborados, ou simplesmente soltos. Sem contar os malditos arquinhos que Ceci tentava de todo jeito empurrar para mim. Ela amava arquinhos e eu odiava-os. Eram irritantemente meigos, e viviam espalhados por aí. E ela ainda tinha a mania ridícula de pedir minha opinião sobre eles. E isso não tinha nada a ver comigo. Eu gostava de roupas leves, os cabelos presos em um rabo de cavalo frouxo e andar de sandálias por aí. Vivia cheia de machucados nos joelhos e com a pele queimada de sol por viver na praia. Eu não trocava meu livro por qualquer pessoa no mundo e tinha abominação por maquiagem. Não sabia usar. Eu era um desgosto para toda a espalhafatosa feminilidade da família, principalmente por parte de Ceci.
– E esse maravilhoso emprego de trabalhar pouco e ganhar muito é como? Quem sabe posso mandar meu currículo.
– Bem... Ele trabalha com a tia.
– Em que exatamente? – ela fez uma careta. A olhei indignada. – Vai dizer que não sabe?
– Quando ele pagou tudo que comemos no passeio que fizemos ao shopping, eu só queria que ele me beijasse. E ele beija super bem. Rá!
– Claro, típico! Está namorando algum Miss Perfeição da vida. – Sinceramente... Não me admirava ele ser 'perfeito'. Ceci normalmente pegava os caras mais legais. O problema é que chutava eles depois de algumas semanas, repito. Eu a achava meio insensível com isso. Tanto que até tentava consolar os idiotas que acabam ficando na porta de casa por alguns dias, jogando-lhes um balde água fria, literalmente. Para aplacar o fogo da paixão deles, que droga. Mas sabe como é... Mesmo não gostando da conduta da Ceci com seus relacionamentos, já havia desistido de discutir com ela sobre isso há um longo tempo. Eu era ignorante nessa matéria.
– Você acha mesmo que estou exagerando?
– Acho.
– Foi uma pergunta retórica!
– Desculpe. – eu ri de leve. Olhei para ela, que olhou para a porta pela milésima vez. – Tudo bem, entendi. Você gosta mesmo dele. Prometo me comportar.
– Sem piadinhas sem graça?
– Eu nunca conto piadas sem graça.
– Era uma vez um pato que nunca ria. Aí um dia ele tropeçou e rachou o bico. – ela ficou séria olhando para mim. E sem querer eu desatei a rir, muito alto! Logo ela estava me acompanhando. Embarcamos juntas numa gargalhada a lá mamãe. Alta e sem parar, quase nos engasgando. Ceci se recuperou antes de mim e eu respirei fundo, limpando algumas lágrimas que escaparam no esforço do meu riso. Ceci me olhava em expectativa, um sorriso brincalhão no rosto:
– Sem piadas sem graça, então?
– Promete?
– Fala sério, Ceci. Não duvide de mim, ok?
– Obrigada. – A campainha tocou nesse momento, então ela arregalou os olhos. Olhei para trás do sofá e vi uma silhueta parada na porta, mãos no bolso. Cabeça baixa. Antes que Ceci se levantasse Karol desceu correndo as escadas, os cabelos castanhos claros úmidos balançando atrás de si e o vestidinho levemente amassado. Ceci tentou impedi-la, mas ela abriu a porta.
– Ei, você é o namorado da minha irmã?– Ouvi uma risada grave e meio rouca, falhando quando chegava ao final... Paralisei.
– Sim. – ele disse docemente para minha irmã e eu paralisei no sofá. Meus dedos gravados na capa do livro. Não. Não pode ser. Era impossível!
– Vamos, entre. – Ceci chamou. Olhei para baixo, para o livro. Ouvi quando Ceci apresentou ele, a porta ainda aberta, para Karol e minha mãe. – Ei, Malu. Venha cá.
Tentei controlar aquele medo ridículo dentro de mim. Essas coisas não podiam acontecer. Com as pernas tremendo me levantei. Me convencendo que eram só vozes parecidas e nomes parecidos. Caminhei ainda de cabeça baixa para perto da porta. Então levantei os olhos.
Eram eles, aqueles mesmos olhos castanhos. Vi que ele espelhou a expressão do meu rosto. Assustado, incrédulo, perdido. A garganta secou, sem saber o que fazer continuei parada, xingando mentalmente a mim mesma e meu maldito carma.
– Vocês já se conhecem?– Ceci perguntou, desconfiada.
– Não! Claro que não! – eu disse alto. Nos olhamos assustados novamente. Senti o rosto corar e vi que suas bochechas também coravam sob a pele bronzeada.
– Certo... – Ceci sorriu, animada. Agarrou o braço dele, o puxando para perto. – Igor, esta é minha irmã Malu. E Malu este é o Igor, meu namorado.
Ela lançou um olhar para mim, esperando que eu dissesse algo. Engoli em seco. Sem saber como assimilar tudo. Eu queria rir, gargalhar!, dessa grande ironia e ao mesmo tempo queria chorar de tamanha falta de sorte. Eu queria estapeá-lo e a Ceci, e ao mesmo tempo queria puxá-la para longe dele. Eu era cheia de vontades, mas meus pensamentos estavam vazios, ocos... A única coisa que eu realmente conseguia pensar enquanto Ceci me olhava orgulhosa e exibia Igor que essa situação era horrível e insana. Como uma piada de humor negro, eu não conseguia rir ou sorrir diante daquela situação. Tudo o que eu conseguia pensar era quando eu o chamava de meu.
O jantar foi extremamente desconfortável para mim. Igor mostrou-se calmo e controlado. Fazendo todos da mesa rir, menos eu. Eu apenas olhava a comida, sabendo que seria uma tarefa de Titãs digeri-la. Percebi que Ceci me olhava com desaprovação, querendo que eu me soltasse mais, embarcasse na conversa com o namorado e o entretesse com minhas observações irônicas, coisas que eu sempre fazia. Eu costumava ser bem soltinha no jantar, porque não conseguia calar a boca quando tinha uma situação constrangedora dessa na minha frente. Mas isso aqui era um absurdo. Eu simplesmente não conseguia, principalmente porque Igor não parava de me encarar.
– Como vocês se conheceram?– Karol perguntou animada. Ela gostava dessa coisa de casaizinhos, mesmo sendo tão novinha.
– Karol... – Ceci ficou vermelha e me perguntei porque ela estava se fazendo de tímida. Quis bater na cara dela, um tapa bem forte a ponto de fazê-la cair da cadeira. – Bem, foi na praia. Ele ficou me encarando... Aí... Fui falar com ele, e bem... Foi divertido. Trocamos telefone e mantemos contatos. Bem rápido. E lindo.
– Legal. – Karol disse, não tão animada com a conversa agora. Ela gostava de coisas épicas, como esbarrões em corredores de escola ou algo semelhante, flores no dia dos namorados, papéis de carta e amor à primeira vista como nos filmes que ela gostava de assistir. Essas bobagens enganadoras, que teimavam em dizer que o amor era lindo. Blérgh!
Meros mortais, sempre pensando positivo sobre coisas que estão fadados ao fracasso apenas por serem baseados em ilusões. Eu não entendia como podiam acreditar que esbarrar em uma pessoa e dividirem o gosto por economia e gastos, somente isto, poderia levar uma relação adiante. Tinha que ter uma coisa inexplicável no meio também, e afinidades; é claro, já que são elas que levavam o trem para frente, trilhando os trilhos com anos de casamento e companheirismo. Infelizmente, a minha família possuía um histórico impressionante de trens fora dos trilhos, divórcios e separações. E claro, troca de namorados constante. Ou seja, os relacionamentos amorosos estavam fadados ao fracasso, comigo não poderia ter sido diferente.
– Então Igor, no que trabalha?– Minha mãe perguntou, direta e rápida.
– D. Betânia, eu trabalho... – ele parou ao ver a careta da minha mãe. Me olhou confuso e eu me perguntei porque não olhou para Ceci, mas procurei deixar para lá.
– Ela não gosta de Betânia, se quiser chame de Tia Betty. Nunca Betânia. – expliquei.
– Ah, me desculpe.
– Tudo bem. – Minha mãe sorriu, parecia cada vez mais encantada.
– Pois bem... Eu trabalho no planetário no centro da cidade, meio período. Das 10 as 6 e depois tenho faculdade. Mas estou de férias e tudo o mais. Consegui o trabalho porque minha tia é astrônoma, já trabalhou lá e arranjou um trabalho para mim.
– Sério? Nossa, isso é ótimo. Mora com seus pais?
– Não... Eu tenho meu próprio apartamento.
– Tão jovem?
– Quando meu avô morreu, eu tinha 16 anos, ele me deixou um bom dinheiro. Nessa época meus pais já haviam me emancipado por... me acharem maduro o suficiente. – O olhei curiosa, não conhecendo esse detalhe sobre a família dele. Ele nunca falou sobre os pais, ou algo semelhante. – O dinheiro foi o exato para comprar uma casa para mim e pagar minha faculdade de Astronomia. Com meu emprego, paguei um carro para mim.
– Você parece um garoto decidido. Ao contrário da minha filha, Maria de Lourdes.