– Eu te dou uma segunda chance e tudo o que você tem é isso?– comecei a rir pela situação e ele me acompanhou.
– Tecnicamente a culpa é sua.
– Hãn?
– Você me deixa nervoso. – O olhei incrédula. Ele era péssimo em matéria de paquerar, verbalmente falando, mas todo seu fascínio estava contido na voz, e nos olhos. Quase não me importei com o que ele falava. Ele podia recitar uma passagem em latim da Bíblia que ele ainda pareceria agradável. Sua presença era agradável. – Pode crer, é mais estranho pra mim do que pra você.
– Oh... – Ficamos em silêncio e eu sem saber o que fazer. Normalmente eu era bem soltinha, principalmente quando estava semi-interessada em alguém. Eu não era boa com garotos, não no sentido de se relacionar com algo além de um ou dois beijos e longas conversas sobre modelos de skate. Mas agora perto desse cara, simplesmente... Não sabia o que falar.
– Você sabe? – ele me tirou dos meus devaneios.
– O que?
– Surfar...– disse, apontando mar.
– Eu não sei nem boiar.
– Sério? – ele disse, rindo de leve.
– Arran. O mar parece meio... grande.
– Essa foi uma ótima definição. – ele mordeu o lábio entre os dentes e provavelmente o riso também. Não me deixei abater por sua cara sexy:
– Obrigada. Ah... Ele é assustador também.
– Ele só é assustador de longe, de perto ele é a coisa mais doce do mundo. – O olhei incrédula. Como ele podia achar doce o mar que afundou tantos navios tantos anos atrás? O mesmo mar que engoliu homens inteiros pela suas profundezas, que destruiu embarcações inteiras de viajantes espanhóis, portugueses e ingleses? Eu tinha medo do mar pelas histórias. Pela convivência. Por todo seu esplendor. E por toda a intimidade que possuíamos. Eu cresci com o cheiro salgado do mar no meu nariz. Era e sempre fora a minha vida, vê-lo de longe, seu vento dobrando-me as páginas de um livro desde os 9 anos. E não importa se era aqui no Rio ou do outro lado do mundo. O mar nunca seria doce, sempre teria o doce salgado do sangue, da tristeza, da esperança e da minha infância. Refleti por alguns segundos e acabei sorrindo diante de sua declaração, não era culpa dele se eu era fadada ao medo do mar e a esses pensamentos exagerados e dramáticos, ele tinha sorte de conseguir enfrentá-lo. Arrisquei até uma pequena piadinha:
– Doce não, o mar é salgado. – seu rosto distendeu-se em um meio sorriso.
– Eu poderia te ensinar.
– Esqueça jow, você não ia querer passar vergonha com uma garota de boias no braço no meio do doce mar...
– Você não me conhece. Não sabe do que sou capaz...
– Sério? Tem razão. Você é um desconhecido, eu não deveria falar com você. – Fiz uma cara de assustada, colocando a mão no coração. – Você pode ser um psicopata!
– Não foi isso que eu quis dizer. Ei! Aonde você vai? – levantei da cadeira, pegando minhas sacolas extras, cheias de lixo e fui caminhando cambaleando até uma lixeira perto de onde eu estava sentada. Eu havia dado ao garoto do mar uma chance de me entreter, fora divertido, é claro. Mas não sei... Ele me deixou confusa e senti esse desejo repentino de deixá-lo com seus pensamentos confusos. Pude ver alguns garotos jogando vôlei em um canto. Seus olhares convergiram na minha direção. Um deles, mais corajoso me lançou um alto, sonoro e animado 'hey', brindando-me com um sorriso gigantesco. Ignorei-o e seus amigos soltaram risadinhas. Voltei para minha cadeira... Onde o tal de Igor ainda estava sentado, observando meus movimentos. Dobrei a minha cadeira, que graças aos céus dobrava fácil e ficava bem pequena, então delicadamente, com toda a intimidade do mundo empurrei Igor da outra cadeira. Ele caiu na areia e me olhou indignado. Sorri irônica, dobrando a outra cadeira e colocando as duas cadeiras na sacola maior. Peguei minha bolsa de praia e a sacola e comecei a andar, deixando um garoto e uma prancha para trás.
– Ei, espera. Não sabia que você levaria aquela coisa de desconhecido a sério. – ele me alcançou em passos largos. A prancha pendurada no braço, perguntei se ela não seria pesada para ele, mas vendo seus braços... Vi que talvez ela fosse leve. – Você é meio bipolar?
– Na verdade... Sou.
– Bipolaridade é algo super sexy, pode crer. – Me virei para ele, meio que rindo.
– Certo, eu fico com você. – senti que corava pela minha cara de pau. Mas era engraçado testá-lo. Vi que quando eu disse isso ele deu uns dois passos a frente, ficando mais perto. – E você vai ir embora?
– É uma troca? Um beijo seu e tenho que ir embora? – O dedo dele se ergueu, tirando uma mecha de cabelo do meu pescoço. Eu apenas fiquei parada. Sem saber o que fazer. Só conseguia pensar que ele estava perto... Demais. Esperei que ele me beijasse. Eu havia quase esquecido como era sentir os lábios de alguém nos meus. Ele me surpreendeu, mais uma vez. – Se for, recuso. Não poderei cumprir esse trato.
– Então você sempre cumpre promessas?
– Só quando as pessoas valem à pena.
– Ninguém vale a pena. – tirei sua mão da base do meu rosto e sorri desapontada.
– Você acha isso?
– Eu sei disso.
– Pra uma garota nova, você é meio amarga. – É o que dizem. Eu quis dizer, mas me calei. Preferindo outra resposta.
– Você nem sabe minha idade. – Eu disse, dando alguns passos para trás. Na defensiva. Parecia que ele conseguia me ler...
– Tem 15 anos, se chama Malu e gosta de Mc Lanche Feliz. Eu sei até onde você dorme!
– Como?– cruzei os braços desafiadoramente.
– Bem, você tem um quarto de solteiro no hotel, enquanto seu pai e uma mulher ficam uns 4 andares acima. Sua cama deve ser meio parecida com a minha, colchão macio, fronha do travesseiro azul...
– C-como você sabe disso?
– Seu quarto no hotel é do lado do meu. Você fica no numero 11 e eu no 12.
– Como você sabe disso... também? – arregalei os olhos, ainda mais assustada.
– Eu vi você fazendo reserva com seu pai.
– Oh! – Isso fazia mais sentido.
– Então, para seu completo azar, você não vai se livrar de mim tão cedo. Te vejo depois, Maria de Lourdes.– Então ele simplesmente me deixou lá e foi caminhando para o mar. Eu fiquei parada no mesmo lugar, completamente boquiaberta enquanto ele se afastava. Completamente confusa e raivosa, por ele ter dito meu nome em voz alta. Meio assustada, mas surpresa. Se era de um jeito bom ou ruim... Não consegui me decidir. Ele olhou para trás uma vez e pude enxergar seu sorriso torto. Sacudi a cabeça, caminhando para o meu hotel. Que cara estranho! Talvez ele seja mesmo um psicopata. Ou não... Talvez só fosse meio imbecil por conversar comigo e querer repetir a dose.
Caminhando pelo saguão do hotel, acabei encontrando a noiva do meu pai, Cristina. Ela era atraente do ponto de vista físico, com os cabelos ruivos curtos e o corpo levemente rechonchudo. Possuía uns 10 anos a menos que meu pai, havia feito faculdade de Gastronomia, pois acreditava que isso a ajudaria a encontrar um bom marido e realizar a única coisa que ela realmente queria ser, dona de casa. Não que isso fosse ruim, mas o fato dela ter procurado um cara casado pra construir a própria família destruindo outra fazia com que eu a desprezasse. Ela tinha um ar de pessoa boazinha, mas nós nos detestávamos. Ela por talvez pensar que seu futuro marido ter filhos e um antigo casamento estragava seu sonho de família feliz. E eu por achar que ela estava roubando o pouco do pai que me restava.
– Onde você estava? – ela disse arrogante.
– Na praia. Dã. – levantei minhas cadeiras e minha sacola e ela revirou os olhos.
– Seu pai está te procurando.
– E onde ele está? – ela me encarou por mais alguns segundos, mas acabou apontando na direção do bar do hotel. Dei um acenosinho antipático enquanto me arrastava e fui até lá. O bar que meu pai estava era o da área fechada, não o outro que dava de frente para o mar. Ele tomava um suco provavelmente com tônica, debruçado no balcão, enquanto conversava com o garçom. Podia imaginar sua voz polida e animada, sempre simpático e caloroso, como um bom corretor de imóveis que ele era. Parei ao lado dele. – Chamou?
– Sim. – ele sorriu um pouco. – Se divertiu na praia hoje?
– Arran.
– Isso é bom... – Ficamos em um silêncio desconfortável por alguns segundos. Impaciente, resolvi quebrar o silêncio.
– Pai, porque não fala logo o que tem a dizer?
– Certo. – ele respirou fundo. Como sempre fazia quando iria dizer algo que me aborreceria. – Queria saber se você se importaria se eu fosse jantar com a Cristina no restaurante no centro da cidade.
– Só vocês dois?
– É.
– Obrigado. – ele sorriu bem mais animado, não sorri de volta dessa vez. – Você tem certeza? Não quero te deixar sozinha e...
– Pai. Eu adoro ficar sozinha. Não se importe.
– Devia ter convidado alguma amiga pra vir com você, assim não ficaria tão sozinha.
– Elas foram viajar com as mães... – Meu pai fez uma careta. Eu também. Fazia alguns dias que eu não ligava para minha mãe e meu pai sabia disso. Ele se importava por eu não passar tanto tempo com ela, mas eu não ligava tanto assim. Procurei deixá-lo mais a vontade, dando um tapinha de leve em seu braço. – Não se preocupe. Estou ótima. É sério.
– Então tudo bem. Vou trazer algo do centro pra você.
– Perfeito. – sorri para ele, que esfregou meu braço em um gesto de carinho raro. Acabei ficando sem graça e procurei escapar. – Hãn, vou subir para tomar um banho e guardar essas coisas, certo?
– Espera. Toma o dinheiro pro seu jantar, já que sei que não gosta da comida do hotel. – ele me esticou algumas notas, que eu apertei entre meus dedos suados. – Carlos está aí, vá jantar com ele.
Carlos era o irmão mais novo de Cristina. Era um moreno com cachos, o que sempre me fazia crer que Cristina pintava os cabelos e havia feito permanente. Só isso explicava os cabelos tão ruivos e lisos. Enfim, ele era alto, tinha 22 anos e era quase tão insuportável quanto a irmã. Possuía verdadeiro prazer em me provocar e acompanhar meus passos, como se me monitorar agradaria de alguma forma meu pai e o tornaria mais generoso.
– Não, obrigada. Eu me viro.
– Nada de sair por aí a noite sozinha.
– Pai... Por favor, né? Sou bem grandinha já. Bom jantar pra você.
– Obrigado. – virei as costas e subi pelo elevador calmamente. Parei em frente a porta marrom do meu quarto e não pude deixar de olhar para a porta ao lado. Balancei a cabeça em desaprovação, meio confusa e mexida pelo encontro da praia girando a maçaneta. O quarto estava bem organizado, uma coisa bem rara para uma garota desorganizada como eu. Então para mudar um pouco, joguei as sacolas na cama e caminhei para a minúscula varanda que tinha, deixando meus chinelos cheios de areia para trás. Dando de cara com a vista das palmeiras e uma piscina própria do hotel. Olhei para o lado.
Havia outra varanda igualmente minúscula, idêntica a minha em muitos aspectos. O espaço que separava a minha varanda daquela era razoavelmente pequeno. Imaginei o tal de Igor no quarto ao lado. Sabia que há essa hora ele ainda estaria na praia, curtindo as últimas ondas, já que começava a escurecer. Olhando mais uma vez a varanda, tive a certeza que não me livraria tão fácil dele. Em outros tempos, eu esqueceria aquele episódio. Ele meio que me recusara de uma forma educada, mas eu não queria me envolver com alguém neste lugar, mesmo que fosse só amigavelmente. Não era boa com qualquer tipo de relacionamento. Meu status de relacionamento era sempre: não existe relacionamento.
Bem, eu sabia que eu devia fazer amigos, já que eu era até uma pessoa comunicativa, mas não conseguia evoluir para algo mais íntimo. Não tinha amigos de infância, não tinha uma melhor amiga ou melhor amigo. E isso meio que fazia falta... Suspirei, sentindo o calor me sufocar um pouco, mesmo não estando tão quente quanto de tarde. Voltei ao quarto, tomando um banho frio.
Saí bem mais relaxa e despreocupada depois do banho super frio e relaxante, e da minha cantoria rotineira. Eu gostava de cantar no banho, como uma boa adolescente feliz. Era divertido, principalmente quando a água era fria e eu tremia de leve enquanto cantava alguma música que possuía muitos gritos e screamos. Enrolada na toalha felpuda e branca do hotel, fui até a minha mala, que eu não desfizera, e com preguiça de vasculhar algo para vestir, peguei apenas um vestidinho, meio arroxeado que marcava bem minha cintura, era um vestido de verão, alegre e leve que ia até um pouco acima dos joelhos. Coloquei uma sandália preta nos pés. E decidi descer para comer alguma coisa.
Entrei no elevador, e acabei dando de cara com o garoto que havia dito 'hey' para mim enquanto jogava vôlei. Como havia umas cinco pessoas junto conosco no elevador ele se limitou a sorrir para mim, um sorriso malicioso que acabou me deixando vermelha. Ele era bonito; estatura mediana, meio magro, com dois enormes olhos azuis. Feito bolinhas de gude. Sem graça com o contato visual ininterrupto, desviei olhar. Quando a porta do elevador se abriu, eu saí dele rapidamente. Pensando em deixar o carinha de elevador para trás. Mas não pude me conter, acabei olhando para trás. Uma garota o tinha parado logo na frente do elevador, abraçada a sua cintura. Mas ele ainda olhava para mim. Típico galinha.
Andei pelo hall, com o dinheiro para meu futuro jantar, que seria algum lanche por aí, na minha bolsinha de lado. Sem saber o que fazer, resolvi dar uma volta. Caminhei pela rua, próxima a praia, andando devagar. Minhas sandálias fazendo um barulho conhecido aos meus pés. Observando como só parecia ter casais no caminho. É dia dos namorados e eu não estou sabendo? Estamos em pleno novembro!
Quando cheguei em uma rua razoavelmente vazia comecei a sentir passos atrás de mim. Gelei na hora, odiava a sensação de ser seguida. Apressei o passo, sentindo um frio terrível na espinha. Querendo encontrar logo alguém. Não me atrevi a olhar para trás, mas comecei a sentir uma espécie pânico crescente. Me controlei para não correr, até que senti os passos ainda mais rápidos, meu perseguidor estava a poucos passos de mim. Então, sem poder me conter, comecei a correr. Senti que a pessoa atrás de mim começava a correr também. Uma mão me girou, me puxando para uma parede e me prensando nela. Soltei um grito agudo.
– Bu! – Uma voz gritou junto comigo e depois desatou numa risada escandalosa. Respirei fundo de alívio, sentindo meu coração socar entre minhas costelas, apertando os braços e controlando o susto, a mão no coração. Depois comecei a sentir raiva e dei tapas a torto e a direito sobre a figura a minha frente. Até ele se encolher, ainda rindo.
– Seu idiota! – Igor ainda ria, esfregando o braço onde eu tinha batido. – Quer me matar de susto?
– Sua cara foi hilária!
– Não foi hilária. Eu poderia ter morrido! E se eu tivesse morrido, você também estaria morto. Porque eu iria te matar!– O que foi que eu acabei de dizer mesmo? Que droga sem sentido... Mas isso foi um incentivo, já que ele começou a rir ainda mais. Raivosa, esperei ele parar de rir:
– Para de ser melodramática. Você só se assustou um pouquinho... – Então ele fez uma careta de pânico, bizarra e engraçada, seus traços se contorcendo numa falsa imitação de medo, talvez tentando me imitar. Acabei soltando uma risadinha e bati novamente no braço dele.
– Estúpido. – cambaleei, recomeçando a andar. Ele começou a andar na minha frente, ainda soltando risadinhas. Maldito! Realmente me assustou... – Porque estava me seguindo?
– Eu não estava te seguindo...
– Imagina!
– Certo. Eu apenas vi você saindo do hotel sozinha e vim perguntar se você gostaria de companhia. Isso não é seguir.
– Se eu disser que não quero companhia, você vai ir embora?
– No. – ele me cutucou com o cotovelo e eu revirei os olhos.
– Você gosta de ser chutado, é isso?
– Claro que não! Só que o difícil me atrai. – ele começou a andar a minha frente, virado na minha direção.
– Você não desiste fácil, não é?
– Não. – Finalmente chegamos a uma rua mais movimentada. As pessoas passavam e algumas nos notavam, sorrindo. Os casais se dispersavam entre a rua em que havia uns 5 restaurantes/lanchonetes. Paramos, ele me encarando. Esperando o que eu iria dizer. Suspirei, derrotada:
– Certo. Vamos comer! Que tal o...
– Mc Donalds?
– Você aprende rápido. – Mordi o lábio e ele me puxou para uma loja de fast food. Segurando minha mão. Lá estávamos, mais um casal no estranho dia dos namorados. Em pleno novembro!
– Isso não é um encontro, não é? – o analisei melhor, vendo sua blusa azul e a bermuda jeans bem assentada. Os cabelos estavam em uma desordem casual, a pele dele ligeiramente bronzeada exalava um cheiro de perfume masculino forte e marcante. A atendente que nos serviu o olhava frequentemente e acho que um sanduíche meu nunca veio tão bem caprichado.
– Claro que não... – ele disse, a expressão séria. Mas a ironia era clara em sua voz. – Não foi planejado. Eu não planejei. A não ser que você tenha planejado quase morrer de susto no meio da rua.
– Você é tão engraçadinho...
– Fico feliz que estejamos nos dando bem.
– Estúpido. – murmurei pela milésima vez. Abocanhando meu X-Bacon. Ele se limitou a rir, colocando uma batatinha na boca, mastigando lentamente. Então ele parou, concentrado, olhando para mim e desatando a rir logo em seguida. Engoli rapidamente, confusa.
– O que foi?
– Está sujinho ali ó. – ele apontou para meu rosto com o queixo. Constrangida passei a mão no rosto freneticamente, tentando limpar.
– E agora?
– Ainda ta sujo. – ele riu novamente e se inclinou na minha direção. Passando o dedão pela minha bochecha, fazendo o contorno do meu lábio inferior. Senti o rosto queimar. Ele sentou-se em seu lugar novamente, lambendo o dedo. – Agora sim, está limpo.
– Ér... Obrigada. – voltei a comer, agora em silêncio.
Percebi que ele não parava de me olhar, isso me incomodava. Ele me analisava com seus olhos grandes e poeirentos. Como se pudesse ver através de mim. Como se pudesse ver tudo que eu tentava esconder. E seu sorrisinho irônico me inquietava, não só por ele parecer ler meus pensamentos. Mas porque eu não conseguia deixar de achá-lo atraente com isso. Ele era bonito, mas ele era mais perigoso do que só bonito. Ele era divertido e até seu jeito irritante era atraente. Ele parecia meio que irresistível. O jeito de falar, andar, agir, sorrir, olhar... Era... Meio que apelativo para mim. Não de uma forma ruim. E o pior, eu estava falando com ele a menos de duas horas. Não era possível me sentir tão afetada. Eu nunca fui assim. Demorava séculos para me sentir atraída por um garoto, tanto que logo passava. Eu só havia beijado três garotos a vida toda. E o último já fazia quase um ano. Sim, definitivamente sou desejada, certo?
– Não sei muito de você. – ele quebrou o silêncio, me fazendo estremecer. A voz passou pelos meus ouvidos e percebi que o refrigerante na minha mão tremeu de leve.
– Pensei que soubesse bastante.
– Foi pra tentar impressionar.
– Quer dizer que não está mais tentando me impressionar?
– Pelo contrário... É só que você não parece ser do tipo de garota que se impressiona fácil.
– Isso você tem razão. – bebi o refrigerante, querendo aliviar a garganta seca.
– Então... O que me diz sobre você? – Percebi que ele não desistiria fácil.
– Certo. Lá vamos nós... Tenho 15 anos, me chamo Malu. Tenho duas irmãs. Meus pais são divorciados e vejo minha mãe nos feriados prolongados e férias. Moro com meu pai há uns 3 anos, desde que eles se separaram. Ele vai passar dois meses aqui, por conta de trabalho, enquanto eu e a noiva dele ficamos de férias. Eu gosto de praia, mas tenho medo do mar. Gosto de skate e... Adoro ler. Francamente, sou bem estranha.
– Você sabe andar de skate? – Tanta coisa pra perguntar, sobre minhas irmãs, minha vida infeliz com meus pais. E ele vai perguntar sobre meu skate.
– Arran.
– Uau! Eu não sei andar nem de bicicleta direito. – ri baixo de sua expressão surpresa.
– Skate é fácil. É sério.
– Fácil pra quem sabe.
– Já quebrei o tornozelo por causa do skate.
– Como?
– Eu tenho uma grande propensão, ou seria mania? De fazer coisas estúpidas e imprudentes.
– Como aceitar jantar com um estranho, que você achou que fosse psicopata e retardado logo no primeiro contato.
– Por aí... – ele riu baixo.
– Bem, nunca quebrei o tornozelo andando de skate. Minha vida não é tão emocionante. Mas eu já quebrei o braço, quando tinha 6 anos. Caí da escada.
– Eu já caí de andador da escada quando tinha 6 meses. E o máximo que aconteceu comigo foi ficar com um arranhãozinho no braço e na testa. Ganhei nessa de quedas.
– Espera... Como você conseguiu cair da escada de andador? Não tinha ninguém de olho em você?
– Minha mãe era meio distraída e eu era discreta. Foi a maior façanha que já fiz.
– Impressão minha ou você tem orgulho disso? – ele parecia se divertir com a situação e eu sorri de leve, vitoriosa.
– Claro que tenho! Sou ninja desde criança... – ele riu de novo. Apoiei os cotovelos na mesa. – Sua vez.
– Bem, tenho 17 anos. Sou apaixonado pelas estrelas e pelo mar. Também estou nessa cidade por férias, com meu melhor amigo. Estamos hospedados no mesmo hotel e tal. Vamos passar dois meses fazendo trabalho voluntário no planetário perto daqui. Conhece? – acenei positivamente me lembrando vagamente do lugar. – Então... Irei começar a faculdade de Astronomia no começo do ano que vem. Não tenho irmãos e meus pais ainda são casados.
– Sua vida não é tão emocionante e dramática quanto a minha.
– Tem razão. Que vida feliz, não é?
– Realmente, bom garoto.
– Sobre esse negócio de ler, eu até gosto. Mas prefiro que leiam para mim.
– Ser ou não ser folgado, eis a questão.
– Eu não sou folgado. É só que... Quando as pessoas leem pra mim, parece que elas interpretam as palavras melhor, não sei. É divertido.
– Ainda acho você folgado.
– Por quê?
– Por tudo! Você senta em cadeiras de praias alheias, persegue e assusta garotas por aí a noite...
– Ei! Eu não persigo garotas por aí. – ele disse rindo junto comigo. Depois tentou se explicar. – Não persigo ninguém. Você foi uma exceção e eu nem estava te seguindo. Eu estava apenas casualmente tentando te alcançar para saber se você precisava de companhia.
– Você estava me seguindo!
– Não estava. Vou ter que explicar tudo de novo? Tenho que anotar no meu caderninho: Além de desconfiada, ela é teimosa.
– Isso do caderninho é uma metáfora, não é?
– Por enquanto.
– Você é muito estranho.
– Mais uma coisa para anotar: Ela gosta de me chamar de estranho; estúpido e derivados. – Acabei sorrindo.
– Estúpido! – Com isso ele começou a rir meio que engasgando com o refrigerante. Depois de se recuperar, um pouco vermelho, ele disse:
– Você ainda vai me matar, garota.
– Você diz isso em menos de 24 horas de convívio. Acho que isso é um novo record para mim.
– Record? Quem é estranho mesmo?
– Cala a boca! – rimos e terminamos de comer em meio a risadas. Ele suspirou fundo, rasgando o guardanapo que sobrou entre os dedos longos.
– Quer ir embora?
– Pode ser. – ele se levantou e eu o segui. Na porta ele me esperou e me deixou passar na frente. Lá fora bateu um ventinho gostoso, me fazendo sentir serena. – A noite está tão bonita hoje.
– Acho que a noite é uma das poucas coisas que ainda verei você elogiar. – ele pilheriou de mim.
– Yep. Elogios são chatos. Xingar é mais legal.– Começamos a andar, voltando para o hotel pela mesma rua que tínhamos vindo, vazia e escura. So que agora eu não me sentia assustada ou desconfiada. Me sentia... segura? Bem, isso de fato se devia ao cara ao meu lado que caminhava com as mãos no bolso despreocupadamente.
– Então prefere que te xinguem do que te elogiem?
– Eu não disse isso. Eu disse que eu gosto de xingar.
– Você é complexa demais.
– Prevejo uma desistência... – cantarolei.
– Só se desiste quando se quer alguma coisa.
– Então quer dizer que esta falando comigo por acaso? Só por falar?
– Não foi isso que eu disse. Foi só um comentário. – ele ergueu os braços e eu arqueei as sobrancelhas.
– Eu poderia ter me ofendido se o efeito da coca cola já estivesse passado.
– Que efeito?
– A euforia. Eu não fico sorrindo assim sempre não! – acabei rindo, empurrando-o de leve. – Você devia se sentir um cara de sorte.
– Eu me sinto um cara de sorte por isso, então. – olhei para ele, desconfiada. E percebi que ele estava perto demais, os nossos braços praticamente roçavam. Constrangida e um pouco tonta, desviei o olhar.
Ficamos em silêncio até eu poder avistar o hotel. O hotel era lindo, de frente para a praia. Bem localizado, e decorado de forma simples e aconchegante. Chamava atenção ao longe. Olhei de esguelha para Igor, ele olhava o céu. A luz da lua batia diretamente em seu rosto bronzeado. Segui seu olhar, olhando as estrelas. Estava uma noite muito, muito linda. Tropecei, já que olhava a lua e senti um aperto forte no braço, me devolvendo o equilíbrio e me ajeitando.
– Cuidado. – ele disse, ainda segurando meu braço e voltando a caminhar.
– Ops. – murmurei.
– Efeito da coca cola também inclui paixão pelo chão?
– Oh não. Não preciso da coca cola pra isso.
– Não duvido. – A mão dele escorregou do meu braço e desceu parando no pulso. Sua expressão adquiriu um quê de curiosidade. Amaldiçoei as batidas do meu coração, que pareciam até mesmo audíveis. Me perguntei se ele conseguia sentir as batidas no meu coração pelo meu pulso. E pelo sorrisinho estúpido dele julguei que sim, mas mesmo envergonhada não puxei a mão. Continuamos caminhando, a mão dele esquentando meu pulso. Entramos no hotel, que estava razoavelmente vazio. Olhei as horas, quase 9 da noite. Ele parou no meio do hall.
– Você já quer subir? Está meio cedo...
– E pra onde iríamos?
– Praia. Senhorita óbvia.
– Ah, a praia... – parei, pensando nas possibilidades. Eu poderia ficar com meu lindo livrinho no meu quarto, bem tranquila, até cair no sono. Assistir algum filme que passasse na TV a cabo. Ou sair com ele. A presença dele me agradava, é claro. Ele era legal, e me deixava à vontade ao conversar com ele. Mas tinha também o receio.
– Então...? – ele interrompeu meus pensamentos. Pisquei rapidamente, e ele me olhou meio que sugestivamente. Eu sabia que devia dizer não. Mas, mais uma vez, fui vencida. Totalmente derrotada murmurei.
– Não posso voltar tarde. – ele pegou meu pulso novamente e fomos caminhando pra praia.
Na praia ficamos andando sem rumo, apenas caminhando e conversando. Igor me fazia rir toda hora com suas piadas idiotas e gestos exagerados enquanto explicava algo. Percebi que estava gostando de ficar com ele, trocando palavras sobre bandas e músicas. Estava gostando mesmo... Nossos pés estavam descalços, sentindo a areia acariciá-los de forma agradável. Nossos tênis estavam presos em nossas mãos e às vezes Igor sacudia o dele enquanto gesticulava e falavam, de forma engraçada. E vermelha de tanto rir eu acabava esbarrando nele e ele em mim, o toque dele, mesmo que por pequenos instantes, me arrepiava. O mar batia contra a areia, chiando de leve, me deixando calma e a vontade. O cheiro de maresia conhecida no meu nariz fazia meu peito estremecer de prazer, ainda mais com aquela companhia. Até que de tanto esbarrar sentei na areia, cansada demais para andar. Igor riu, sentando-se ao meu lado.