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Demorou em torno de duas horas para conseguirmos sair do escritório. O carro ficou parado em frente ao galpão sem se mover, sem sair ninguém, até que em algum momento ele desistiu e foi embora. Rafael falou para que esperássemos para ter certeza, e depois de trinta minutos, como o carro não voltou, fomos embora.
Combinamos de pegar os arquivos daqui a uma semana e meia, já que iria demorar para ele conseguir clonar a chave do armário de Lima. Não conversamos sobre o que aconteceu entre nós, em nenhum momento durante as duas horas. Simplesmente ficamos jogando conversa fora, e eu até que gostei, pudemos conversar sobre coisas banais e sobre o que gostávamos, nada muito sério. Foi algo leve, tranquilo.
Quando saímos do escritório, ele me acompanhou até a minha moto, me disse que o carro dele estava estacionado ali perto e foi embora. Subi a moto e andei devagar até a estrada, com uma estranha sensação de que estava sendo vigiada. O caminho de volta para casa foi tranquilo, a principio. Não conseguia tirar nosso momento da cabeça, como um filme, em que eu assistia de novo e de novo.
Não era como se eu gostasse dele, mas eu gostei de beijar ele, gostei muito, e faria isso de novo. Acabei me pegando sorrindo com o pensamento. Sabia que poderia ser perigoso, afinal ele fazia parte de uma facção, cujo o líder era um psicopata preconceituoso. E que todos os potenciais amigos que eu tinha feito não gostavam dele, e também ouvi histórias sobre como ele já tinha tentado beijar todas as garotas que vivem aqui. Mas por algum motivo, eu queria ficar com ele. Não entendia muito bem porquê. Mas era o que eu queria. Tem certos desejos que não tem muitas explicações.
Fiquei tão perdida em meus pensamentos que mal percebi quando um carro colou atrás de mim. Só precisei dar uma simples olhada para ver que era o carro preto que estava do lado de fora do galpão. Acelerei a moto sem saber ao certo o que fazer.
O carro atrás de mim também acelerava cada vez mais.
Aquilo não fazia o menor sentido, por que me seguiriam? O que eu poderia ter feito?
Decidi ultrapassar entre os carros, na tentativa de me livrar dele, mas de alguma forma, o carro sempre conseguia ficar na minha cola. Meu coração acelerava em meu peito e não parecia ter ar o suficiente para que eu respirasse, o que era irônico, com a quantidade de vento que batia em mim.
Rapidamente chegamos a cidade, então decidi fazer a única coisa que passou em minha cabeça. Joguei minha moto de última hora para dentro de um beco estreito. Acelerei ainda mais quando cheguei ao outro lado e virei a esquerda em uma rua. Comecei a reconhecer o local. Novamente virei em alguns becos até chegar na praça e ter certeza de que não tinha mais ninguém atrás de mim. Parei a moto na frente da lanchonete e retirei o capacete para que pudesse respirar ar puro.
Assim que senti meu coração desacelerar, comecei a rir. Uma crise de riso que não terminava. Nunca tinha sentido aquela emoção em toda minha vida e achei simplesmente maravilhoso. A adrenalina era algo impagável. Não tinha dinheiro no mundo que poderia me dar essa sensação.
Então, fiz a única coisa que pude pensar no momento, liguei para Rafael.
O telefone chamou várias vezes, e ninguém atendia. Mandei várias mensagens que não foram respondidas. Então eu desisti.
Olhei para a cidade e fiquei sem saber o que fazer. Depois do que aconteceu, nenhum dos meus amigos iriam querer falar comigo tão cedo, claramente eles ficaram irritados. Também não queria voltar a minha casa, ainda estava agitada e precisava pensar, além disso estava com medo de chegar e me deparar com o carro a minha espera.
Voltei a andar com minha moto por algumas ruas, dando voltas sem rumo, pensando onde poderia ir. Até que passei pelo Mirante. Então estacionei minha moto em frente ao parque e andei até o edifício.
Assim que cheguei ao topo, e o elevador abriu, vi que não estava sozinha lá. Sentada na beirada do prédio que dava a vista para cidade estava Talita, com seus cabelos azuis inconfundíveis. Hesitei por alguns segundos, então decidi me sentar do lado direito, olhando em direção à praia.
Quando andei, chamei a atenção dela, que se virou na mesma hora para ver quem estava atrás dela.
- Parece que todos tiveram a mesma ideia hoje. – Ela reclamou.
- Desculpa, mas achei que fosse estar vazio. - Murmurei, parando de repente.
- Geralmente fica, não é sempre que enche.
Andei devagar até a direção dela.
- Posso? – Perguntei e quando ela acenou devagar, me sentei ao lado dela – O que você quer dizer com todos estiveram a mesma ideia?
- Já apareceu umas quatro pessoas aqui. Aquele garoto com quem você anda foi um deles. Matt.
Acenei com a cabeça e forcei um sorriso.
- Acho que é culpa minha, briguei com eles mais cedo.
Apesar de haver tristeza em seus olhos, ela abriu um sorriso genuíno para mim.
- Matt é um cara legal, mas é meio esquentado, a Morena geralmente coloca razão na cabeça dele. Ela perdoa as pessoas muito rápido. Eles formam uma boa balança.
- Nunca havia pensado nisso. - Respondi lentamente. - Quero dizer, já havia notado que os dois eram próximos, e o modo como ele olha para ela às vezes...
- Às vezes? - Ela soltou uma gargalhada. - Ele venera o chão que ela pisa. E ela simplesmente não tem olhos para outro. Não ficou com ninguém desde que se aproximou um pouco dele. Todo mundo sabe como eles se sentem. Os únicos que não percebem, bem, são os dois.
A encarei durante alguns minutos pensando naquilo. Sempre havia achado que o amor era algo irreal. E que casamentos não passavam de contratos. Não conseguia entender como duas pessoas poderiam simplesmente conviver juntas e sair um bom resultado disso. Mudar por conta de outra pessoa parecia ser uma ideia idiota. Será que duas pessoas poderiam realmente melhorar uma a outra? Olhando para os dois, eu diria que era possível. Mas como poderiam fazer isso, se nem ao menos admitiam?
- Por que acha que eles fazem isso? - Perguntei enfim. - Negam o que sentem um pelo outro.
- Não sei. As pessoas fazem coisas estupidas quando estão apaixonadas.
- E você, por que está aqui? – Perguntei, querendo mudar de assunto.
Não que eu não pudesse falar sobre Matt e Morena, ou sobre o amor. Mas aquilo parecia tão supérfluo enquanto tinha tantas coisas acontecendo em minha vida.
- Eu tenho um irmão gêmeo. - Ela respondeu, tirando toda a suavidade de seu rosto. - Ele está com alguns problemas e não me deixa ajudar. Ele sempre se mete em problemas.
Me lembrei da história de Rafael, que deu em cima de uma garota que tinha um irmão gêmeo. Ele tinha a habilidade de telecinese. Pensei um pouco: se ele não queria a ajuda ela, o que tinha de tão ruim nisso? Afinal, você já fez sua parte, já ofereceu. O que mais poderia fazer? Tentei falar isso da forma mais suave que pude.
- Mas qual é o problema de ele não querer sua ajuda?
- Você tem irmãos? – Ela se virou para me encarar.
Balancei a cabeça, meus pais nunca quiseram outros filhos, e para falar a verdade, também não queria irmãos. Até onde sabia eles só serviam para perturbar você e te forçar a dividir suas coisas. Quando se é filho único, você tem toda a atenção e presentes só para você. Julgo que isso seja melhor que qualquer irmão.
Porém, a encarando, reparo em seus olhos azuis vibrantes da mesma cor que seus cabelos, aflitos e preocupados, talvez para ela ter um irmão fosse algo importante.
- Você não entende. Meu irmão faz tudo por mim, ele é toda a família que eu tenho. Ele faria tudo por mim, e eu por ele. Eu sei que ele corre perigo, mas ele quer resolver tudo sozinho, quer que eu fique fora disso.
- Ele quer te proteger.
- Eu sei, mas não preciso de proteção, preciso dele. Preciso que ele pare de fazer coisas estúpidas só por fazer.
Eu não entendia direito esse conceito, talvez porque a única família que eu tinha era meu pai, e ele não era exatamente muito próximo de mim. Mas se alguém quer me proteger, eu deixo. Vale a pena mesmo arriscar sua vida por alguém? Sua vida não é o que você tem de mais valioso? A observo, vejo que ela arriscaria tudo, daria tudo, até sua própria vida pela a dele. E aparentemente ele faria o mesmo por ela.
- Talvez você só deva conversar com ele, mostrar que não precisa de proteção. Ou tentar impedi-lo de fazer essas burrices.
- Talvez. Não é tão fácil assim.
Ficamos ali em silencio por alguns segundos. Percebi que ela não queria estender o assunto. Não me conhecia tão bem assim para isso. Até que eu decido perguntar algo que está em minha cabeça.
- Seu cabelo é tingido?
Ela abre um sorriso pequeno.
- Na verdade não, meu pai tem cabelo azul, eu e meu irmão nascemos assim.
- Seu pai é um mestiço? - Pergunto, sabendo da existência de alguns que nasceram com características únicas.
- Deus. Ele foi um pouco rígido, queria que fossemos perfeitos, mesmo não estando presente. Nós fugimos para cá quando fizemos dezoito anos. Suponho que poderia ser pior, pelo menos sabemos quem ele é.
Sorri com o pensamento. Ela tinha fugido para cá com seu irmão para se livrar de seu pai. Meu pai tinha me mandado para cá para se livrar de mim. Era engraçado como as coisas funcionavam.
- Seu pai poderia ter te expulsado para outro país para se livrar de você. Acredite, as coisas poderiam ser piores.
Ela me encarou novamente. Seus olhos azuis brilhavam com intensidade.
- Eu acho que ele se mete em confusões por causa disso. Ele quer a atenção de nosso pai. Então ele apronta todas. Bombas, tiroteios, assaltos. A cada semana é uma visita na cadeia ou no hospital.
Por algum motivo, a informação não me surpreende. Essa não deveria ser a reação de uma pessoa normal.
- Se ele apronta tanto, por que não está preso? - Pergunto.
- A cadeia daqui funciona em um tempo diferente. Ideia genial do nosso prefeito. Você passa uma semana, mas se está lá dentro parece que foi anos. E sai sem ter envelhecido nada.
- E por que está me contando dos crimes dele? Isso não deveria ser segredo?
- Todo mundo sabe disso. Não é mais segredo. Ele faz questão que a noticia se espalhe.
- Talvez você só precise mostrar a ele que não precisa da atenção do pai. Que ele já tem tudo que precisa.
Ela concorda suavemente com a cabeça e desvia seu olhar de mim, encerrando o assunto.
- Eu sei que você está com a moto de Rafael. – Ela disse de repente. – Luana me contou que andou com você no outro dia. Naquele dia na praça que eu te ajudei, você estava brigando com ele, o que aconteceu?
Suspirei fundo, era exatamente o que eu não queria, não tinha ido atrás de Matt ou da Morena para não ter que falar sobre isso. E aqui eu estava, com uma outra pessoa me perguntando sobre as mesmas coisas.
- Ele me deu a moto, querendo perdão. - Falo, simplesmente.
- Parece que alguém gosta de você.
- Por que diz isso?
- Eu o conheço a muito tempo, ele já deu em cima de mim e em várias outras garotas. Ele sempre foi muito arrogante e convencido. Ele não pede perdão. Mas te deu a moto dele, que ele nunca andava sem, com o intuito de pedir desculpas.
- Não acho que seja o caso. Do jeito que eu vejo, ele provavelmente só está querendo perdão mesmo.
- Então você é muito cega, ele gosta de você.
Ela diz isso e se levanta, se virando para ir embora.
- E se foi por isso que brigou com o Matt, acho que deveria ligar para ele. Ele só devia estar preocupado com você.
- Você conhece alguém que tem um Sandero preto? - Perguntei antes que ela pudesse ir embora. - Janelas escuras. Não consegui ver a placa.
Ela parou de repente e se virou para mim. Analisou minha expressão por alguns minutos, antes de responder.
- Somente pessoas que não querem ser reconhecidas. É um carro muito comum por aqui, por um motivo. Pode ser de qualquer um. Mas talvez você deva prestar atenção. Algumas pessoas gostam de deixar sua marca no carro. As vezes para poder identificar um dos seus, as vezes por burrice mesmo.
- Uma marca?
- Pode ser qualquer coisa. Um emblema, uma faixa de cor.
- Entendi. Vou ficar de olho, obrigada.
Ela fez menção de se virar para ir embora. Mas mudou de ideia, me dando uma última olhada.
- Milena, você está aqui a pouco tempo, mas já está com sérios problemas. - Ela abriu um sorriso. - Se precisar de algo, pode me chamar. Tem o meu número.
Então ela finalmente se foi. Me deixando sozinha com meus pensamentos.