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Sinto o vento batendo forte em minha pele.
Me arrependo na mesma hora de não ter pego um casaco, mas não imaginava que fosse ficar até tão tarde na rua. Rafael acelera cada vez mais, e meu coração bate forte em meu peito, grito para ele ir mais devagar, mas de algum modo, isso só o faz rir.
Andamos pela cidade somente por alguns minutos antes de chegar em uma lanchonete a frente de uma praça. É um local simples, para falar a verdade parece ter saído de um filme dos anos 60. O chão com piso quadriculado preto e branco e mesas com poltronas vermelhas. Tem uma varandinha com três mesas ali, que dá visão a praça. Em cima de cada mesa tem algumas velas, claramente colocada ali para criar um clima mais romântico. Ele estaciona em uma vaga logo à frente da lanchonete e desliga a moto. Vamos até uma das mesas que se encontra do lado de fora. Hesito um pouco antes de sentar, sinto que se concordar em ficar aqui, vou estar confirmando que é um encontro. Rafael, que já está sentado, olha para cima com uma sobrancelha levantada, claramente intrigado comigo.
- Você não paga para sentar não.
- Por que sentamos aqui fora?
- E voltou ela com as perguntas intermináveis. - Ele desviou sua atenção de mim, olhando para a rua. - Eu gosto daqui de fora.
Demoro um pouco, porém cedo logo e me sento a sua frente. Assim que nos acomodamos a garçonete já nos entrega os cardápios. Então sem dar muita atenção a isso, Rafael coloca o cardápio de lado, se apoia a mesa e olha para mim. Eu abro o meu cardápio e começo a ler as opções. De onde eu venho, na minha família, nunca tive muitas oportunidades de comer fast food, e nunca gostei muito. O fato de sujar minhas mãos para comer algo gorduroso nunca foi meu forte, mas como estou em um país novo, com uma nova vida, decido dar uma chance. Pelo o que eu me lembro o gosto até que é bom.
Assim que escolho o que eu quero, olho para cima e percebo que ele ainda está me encarando. Então sem dar muita atenção, somente digo com voz de desdém:
- Gosta do que vê?
- Muito – Diz ele sorrindo.
- Pode parar de me encarar e talvez escolher o que vai comer.
- Eu já sei o que eu quero, venho aqui todos os dias.
- Parece uma rotina monótona.
- Até que não, comer no mesmo lugar todo dia me poupa de ter que ficar escolhendo o que eu quero. Economizo tempo.
- Tudo sempre tem duas perspectivas.
- Pode se dizer que sim.
Finalmente fecho o cardápio e encaro ele. Percebo que embaixo da blusa dele, perto da clavícula do lado direito, tem uma cicatriz. Como não a tinha visto antes? Me lembro que na praia ele se sentou ao meu lado direito, e quando se levantou para ir embora, já estava de camisa. Me inclino para frente, me apoiando na mesa, o que me deixa mais perto dele. Então pergunto:
- Onde conseguiu a cicatriz?
Ele é poupado de responder pela chegada da garçonete. Droga. Sei que isso significa que talvez ele não vá voltar ao assunto, então tinha perdido minha chance. Depois de fazermos nossos pedidos, ele levanta uma sobrancelha para mim e joga o seu corpo para trás.
- Qual é seu nome?
Sorrio. Sei que ele vai conseguir descobrir meu nome de qualquer jeito, porém talvez eu consiga tirar uma vantagem se eu mesmo contar.
- Pensei que você fosse descobrir sozinho.
- Poderia, mas se você me contar, tudo fica mais fácil. - Disse ele cruzando seus braços.
- Prefere ganhar as coisas da maneira mais fácil?
- Quem não prefere?
- Eu gosto de um desafio ocasionalmente.
- Vou manter isso em mente.
Conseguia ver uma faísca em seus olhos de diversão.
Me inclino para frente e me apoio na mesa, abro um sorriso e jogo o meu cabelo para frente. Tento parecer o mais atraente possível.
- Vai me contar sobre a cicatriz?
- Só se você me contar seu nome.
Me jogo para trás, me apoiando na cadeira, finjo que estou analisando minhas opções, apesar de ser obvio para mim o que fazer. Mas eu gosto de deixar a outra pessoa pensando que tem a vantagem, quando na verdade, eu já tinha planejado tudo o tempo todo. Então inclino minha cabeça para o lado e o encaro.
- Milena De Angelis.
Ele sorri, puxa a gola da camisa.
- Consegui em uma briga de rua.
- Uma briga de rua?
- Sim.
Estreito os meus olhos, desconfiada, ele seria mais inteligente de não entrar em uma briga com alguém que tenha uma faca na mão. Então como se lesse minha mente, ele balança a cabeça e diz:
- Eu sei o que tá pensando, eu não me meti exatamente na frente de uma faca, eu entrei em uma briga, estávamos desarmados, porém o cara era telecinético. Quando começou a perder, puxou uma faca e enfiou em mim.
- Não me parece muito justo.
- Não é, mas ele teve o que mereceu.
Olho para ele genuinamente surpresa.
- Você o matou? - Pergunto, sentindo todos os meus pelos se arrepiarem.
Ele cai na gargalhada, como se eu tivesse contato uma piada.
- Qual é a graça?
- Você achar que eu mataria alguém por conta disso. Ele foi preso. Se bem que não por muito tempo, certeza que já deve estar solto agora. - Ele adquiriu uma expressão pensativa. - Eu entro em brigas quase sempre, se eu matasse alguém toda vez que isso acontecesse... Não sobraria ninguém nessa cidade. Sem contar que, eu não sou um assassino.
Repasso a sua frase em minha cabeça. Ele diz não ser um assassino, mas o modo como fala isso com naturalidade, faz meu coração disparar em meu peito.
- E por que você entrou na briga com um mestiço? - Pergunto, querendo matar minha curiosidade.
- Creio que "falei gracinhas" - ele fez aspas com suas mãos - para a irmã dele.
- Você faz isso com todas as garotas que vê pela frente ou eu e ela temos algo especial?
Ele leva a mão ao queixo e olha para cima, como se tivesse pensando sobre o assunto pela primeira vez na vida.
- Creio que todas têm algo especial.
Reviro meus olhos e respiro fundo, como se tivesse impaciente.
- Você sabe que um dia isso vai acabar te matando.
- Pelo menos morrerei feliz.
Me viro para o lado e começo a prestar atenção na praça, vejo que está vazia, porém olhando para o relógio que está do outro lado da rua, percebo que está tarde demais para ter alguém aqui de qualquer jeito. Vejo pelo canto do olho que ele me observa, porém não digo nada. Percebo que ele abre a boca para falar algo, porém é interrompido antes mesmo de começar, pela garçonete com nossos pedidos.
Quando ela coloca o meu pedido em minha frente, hesito por um minuto antes de começar a comer e fico encarando o meu prato, tento me lembrar a última vez que comi isso, e logo começo a pensar nas coisas que eu comia em minha casa. Rafael fica parado me olhando como se isso o entretece.
- Você sabe que não vai vir nenhum animal irritado atrás de você querendo vingança, só porque você comeu um hamburguer né?
E como mágica, ele mal termina a frase, e passa um boi, bufando e correndo pela rua de um lado para o outro, atrás de um garoto que aparenta ter minha idade, apesar de estar sendo seguido por um animal irritado, o garoto ri como se nunca tivesse se divertido tanto na vida. Acho graça e começo a cair na gargalhada, realmente não esperava por isso. Olho para Rafael, que tem uma expressão confusa no rosto, tento respirar fundo e digo:
- Então o que você ia dizendo?
Ele fica vermelho na mesma hora, claramente sem graça pelo seu comentário. E então ele começa a rir junto comigo. Quando olhamos novamente para a rua, tem dois garotos conversando, um claramente irritado, e o que estava sendo seguido não tinha parado de rir, ele acena para a gente e Rafael diz:
- É o nosso prefeito. Ele gosta de assustar os outros, pregar peças, transformar pessoas em animais, temporariamente, é claro, e às vezes, quando ele está muito atentado, ele sai por aí brincando de atirar com os outros, explodindo coisas.
- Não me parece muito justo, já que ele é imortal, e praticamente invencível.
Todos conhecem a história, há muito tempo atrás houve um surto, uma doença que estava matando muitas pessoas. E nessa mesma época, muitas mulheres ficaram grávidas de seres imortais. E dessas mulheres nasceram criaturas com extremo poder, eles podiam fazer tudo que quisesse, tinham força, controlavam mentes, criavam coisas, se teletransportavam... eram onipotentes. Acreditavam-se que era os deuses que vieram viver entre nós, e como um presente, demos nossas terras a eles, cada um ficou responsável por uma cidade ao redor do mundo, assim eles seriam os prefeitos e protetores de cada terra.
Depois de um tempo, os deuses começaram a ter filhos com os humanos, e seus filhos nasciam com um só poder vindo dos deuses, nós os chamamos de Mestiços. Algumas pessoas acreditavam que eram aberrações e que deveriam morrer por conta disso, e muitos morreram. Porém, depois de muitos conflitos e sangue derramado, foram criadas leis que protegiam eles. Apesar disso, sei que muita gente não gosta dos Mestiços até hoje, só por serem diferentes, poderosos.
Volto a realidade quando Rafael fala comigo.
- Não é para ser justo. – Ele começa a rir. – Mas em defesa dele, ele cura todo mundo depois e conserta tudo. É até divertido, demos até um nome para ele. Tânatos.
- Esse não é o deus da morte?
Me lembrava de aulas de historia na escola, na antiga Grécia eles acreditavam em deuses, porém diferentes dos nossos, cada um era responsável por uma coisa. Zeus era o deus dos raios e controlava os céus, Poseidon era o deus dos mares, Athena era da inteligência e estratégia em batalhas. Diferente do que muitos acreditam atualmente, Hades era o deus do mundo inferior, ele governava o reino dos mortos, mas era Tânatos o deus responsável por levar as almas de pessoas que já morreram.
Sendo assim, se eles tem como prefeito um deus que sai atirando em todo mundo e os cura depois, é um bom apelido.
- Sim, é o mais apropriado.
Começamos a conversar distraidamente, jogamos conversa fora, nenhum assunto pesado ou desconfortável. Conto para ele minha idade e que venho da Itália, sou poupada de dar detalhes sobre isso. Ele me conta que tem vinte e dois anos e que trabalha em uma empresa. O tempo passa rápido, e eu me divirto bastante.
Não imaginei que ele iria fazer eu me sentir assim, calma, eu sempre fico na defensiva quando se trata de garotos, nunca deixo nenhum se aproximar, não realmente. Gosto de fazer jogos, me fazer a garota indefesa, boba que está caindo no seu papo. Enquanto na verdade, sou eu que estou manipulando tudo. Isso me impede de sair ferida. Quando se trata de mim, os caras só querem duas coisas, dinheiro ou sexo. Aprendi a lidar com isso desde cedo, sempre chamei atenção, sempre tive uma beleza óbvia, e como sempre sai em todas as redes de fofoca da onde eu morava, todos sabiam quem eu era. A garota inconsequente, rica, mimada, egoísta, que sempre acabava bêbada em algum bar. Mas aqui, agora, longe de tudo isso, percebo que ninguém está atrás do meu dinheiro, pode estar somente atrás da outra coisa, mas com isso eu posso lidar.
Quando acabamos nossas refeições, ele paga a conta e se levanta rapidamente, me puxa pela mão e me leva para a praça. É um lugar bonito, é rodeado por um muro baixo. Nos quatro cantos da praça tem um gramado, assim como também tem quatro saídas. Pela entrada tem um caminho largo de pedra, que passa pela praça inteira e da na outra saída. No exato meio da praça tem um chafariz enorme e pode-se ver o outro caminho de pedra passando por aqui. Os caminhos formam uma cruz na grama. Andando pela praça existem áreas de socialização e esculturas. Até tem uma parte cheia de Food Trucks. Chegamos em um lugar onde tem vários sofás, pufes, cobertores e travesseiros, assim como alguns colchonetes empilhados. Puxamos um e colocamos no chão, Rafael pega um cobertor e travesseiro para mim, então deito e ele senta em um pufe ao meu lado e começa a olha para o céu. Eu me viro para ele e pergunto:
- Porque tem vários sofás e camas no meio de uma praça?
- O pessoal costuma vir muito aqui quando não tem nada para fazer, e há alguns anos atrás, o prefeito decidiu fazer um cinema ao ar livre. Todo mês ele coloca um telão no prédio da frente, e sentamos aqui para assistir algo. É bem legal.
- Nossa, vocês não trabalham nessa cidade não? Estudam ou algo do tipo, porque, pelo o que eu estou vendo, vocês têm muito tempo livre.
Ele começa a rir e concorda com a cabeça.
- Não me leva a mal, todo mundo aqui trabalha, mas não é sempre que se tem coisa para fazer.
- Com o que você trabalha exatamente?
- Já te falei, em uma empresa.
- E o que essa empresa faz?
Estreito meus olhos e fixo o olhar nele. Com muito tempo de experiencia lidando com pessoas interesseiras perto de mim e indo a jantares e festas relacionadas ao trabalho do meu pai me rendeu alguns conhecimentos. É a segunda vez que eu pergunto, e a resposta é sempre vaga, seguida de uma mudança de assunto. Percebo no momento em que ele desvia o olhar, que eu estava certa, ele está mentindo para mim. E vou descobrir o porquê.
- Você está mentindo.
- O que?
- Você está mentindo para mim, não tem empresa nenhuma, e a julgar pela desavença com o pessoal da praia e pelas histórias que me contou, diria que talvez você trabalhe com algo ilegal.
Por um segundo ele parece ligeiramente surpreso, mas logo recobra a postura e olha para mim com um ar mais sério.
- Além de você estar me chamando de mentiroso, está me chamando de criminoso?
Percebo que ele está claramente irritado, porém não consigo me segurar. Odeio que tentem me fazer de idiota, que mintam na minha cara, prefiro que a pessoa assuma que faz coisa errada do que a mentira.
- Exatamente. Que bom que você entendeu, agora só explica a situação antes que eu adicione babaca a lista. - Disse me sentando ao colchão
- Presta bastante atenção: O que eu trabalho ou deixo de trabalhar não é da sua conta, eu não faço nada de errado, nunca matei ninguém, nem roubei dinheiro de gente inocente, ou desviei fundos de uma empresa para aumentar minhas riquezas igual ao seu pai.
-O que você sabe sobre meu pai? Você nem sabia meu nome até...
Então algo me vem como um tapa na cara, ele sabia, claro que ele sabia. Me deixou pensando que eu estava saindo por cima enquanto ele estava me usando. Para que? Eu ainda não sei.
- Você sabia quem eu era?
Ele não me responde, e isso é o suficiente para saber o que eu preciso. Como se percebesse a besteira que cometeu, começa a balançar a cabeça e a ficar claramente nervoso. Levanto na mesma hora com toda a raiva do mundo, começo a andar na direção oposta da praça, onde tem uma movimentação de carros, e até vejo alguns taxis parados do outro lado da rua. Percebo que ele levanta junto comigo, então o encaro e assumo uma postura agressiva. Falo com todo o ódio que percorre em meu corpo no momento:
- Eu deveria saber desde o início, você foi persistente, simpático e não se incomodou por não saber meu nome, simplesmente porque você sabia o tempo todo. Já lidei com pessoas como você antes, que só vem atrás por conta do dinheiro, e já aturei muito pior. Eu preferiria que você tivesse me contado desde o início, do que tivesse mentido para mim e me feito de trouxa o dia todo. Agora, faça algo de útil e fique longe de mim.
Dei as costas a ele e sai, ouvi ele andando atrás de mim então começo a acelerar o passo, até correr e entrar dentro do primeiro taxi que eu vejo. Consigo ouvir ele chamando meu nome a distância, o motorista olha para mim com um quê de interrogação, falo o endereço e ele me leva para casa.
Nem por um segundo eu me viro para olhar para atrás.