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No dia seguinte acordo sem saber o que fazer. Me reviro na cama pensando em todas as coisas que eu estaria fazendo se estivesse em casa. Começo a imaginar as festas da alta sociedade, as boates que ia com as filhas dos amigos do meu pai. Pensei em todas as coisas que eu tinha e como eu faria de tudo para recupera-las, em todo o conforto da minha antiga vida. Nunca que eu conseguiria fazer todo o dinheiro que meu pai faz, nem graduação eu tenho, e nunca pretendi fazer.
Estico minha mão para procurar o celular no meio das cobertas, vejo que já é quase meio dia e começo a imaginar a hora em que eu cheguei em casa ontem. Pelo tempo que fiquei com Rafael, provavelmente muito tarde. Vi que tinha várias ligações perdidas, principalmente do meu pai, que eu não fazia questão de atender, nem de retornar, afinal foi ele que me expulsou de casa. Também tinha uma ligação de Matteo e de Morena, e algumas mensagens do pessoal que conheci ontem. Resolvi retornar a ligação de Matt para ver o que eles queriam. Ele atendeu no segundo toque.
- Alô. Milena, está tudo bem?
A voz dele parecia bem preocupada, acabei me lembrando que avisaria quando chegasse em casa. Nem pensei nisso, não estou acostumada a dar satisfações. Meu pai nunca me perguntou aonde eu ia ou quando eu voltava.
- Está tudo certo sim. Cheguei em casa bem tarde e acabei dormindo na mesma hora.
- Nós ficamos preocupados, eu e a Morena. Você pode nos encontrar?
- Claro, não é como se eu tivesse algo para fazer mesmo.
Marcamos um lugar e desligamos. Decidi levantar para tomar um banho e escolher minha roupa. Acabei colocando um top tomara que caia preto com uma calça jeans rasgada de cintura alta. Coloquei uma botina e peguei um casaco de couro. Decidi comer algo antes de sair, fui até a cozinha e abri a geladeira. Procurei algo para comer que já estivesse pronto, nunca aprendi a cozinhar, sempre foi a empregada da casa que fez tudo. Resolvi só comer um sanduiche, já que não sabia cozinhar nada do que tinha, depois teria que descobrir como fazer.
Procuro por minhas chaves e saio, assim que desço as escadas me lembro que não tenho carro. Decido ligar para Matt novamente e pedir uma carona, ele nem hesita e já avisa que está a caminho, então sento nas escadas da entrada da minha casa. Ouço um barulho de ronco de motor de longe, olho para onde o sol está vindo, na rua que dá na praia. Quando o carro aparece em minha visão, fico impressionada. Ele estaciona na frente da minha casa com uma Porsche Boxter na cor amarela. O veículo é um conversível, bem rebaixado, e é um dos carros mais lindos que já vi. Fico de boca aberta, e dou uma volta no carro para olha-lo todo. Eu sempre quis uma Porsche, meu pai sempre falava que iria me dar uma, porém como eu já tinha outros dois carros, e nunca precisei mais do que isso, nunca cobrei dele. Olho para o Matt que esta dentro do carro despreocupado e somente pela minha expressão ele abre um sorriso presunçoso e diz:
- Eu não roubei esse carro, se é isso que está pensando.
- Como você conseguiu dinheiro para comprar um carro desses? Você deve ter minha idade.
- Eu tenho vinte anos. - Ele diz como se fosse uma grande diferença. - E eu trabalhei para isso, e tive um pouco de sorte.
- Trabalhou com o que?
Pergunto e estreito meus olhos, o que eu faço sempre que estou desconfiada. Tenho quase certeza que ninguém conseguiria tanto dinheiro assim, a não ser que já tenha nascido de uma família rica.
- Em uma empresa...
- É, você e mais todos nessa cidade, é a única resposta que sempre me dão.
Ele levanta uma sobrancelha, e faz uma expressão idêntica a minha quando quero alguma informação. Mas logo, ao ver que eu estava realmente irritada, ele balança a cabeça e volta ao normal. Respirando fundo ele começa a me explicar:
- Eu sou socio de uma empresa que vende produtos alimentícios. - Ele fala, dando de ombros.
Por algum motivo, não acredito no que ele diz, mas só concordo e mudo o assunto, não vai ser o enfrentando que vou conseguir a verdade. Então entro no carro e pergunto para onde nós vamos, tínhamos combinado um endereço, mas ele não tinha me contado o que tinha no lugar.
- Então, Milena. – Ele fala meu nome bem devagar, silaba por silaba. – Você vai descobrir quando chegarmos lá. Enquanto isso, a senhorita poderia me contar porquê você saiu da Itália para vir morar aqui.
- É uma longa história, tive alguns problemas com meu pai e ele me cortou, quer que eu aprenda a me virar sozinha.
- E por que fazer isso aqui e não lá?
- Ele não queria que eu fosse correndo até ele quando a situação apertasse. Se ele está em outro país fica mais fácil me evitar. E minha mãe era brasileira, então acho que isso influenciou na escolha do lugar. Ela sempre dizia que ia me trazer aqui um dia e me mostrar onde ela cresceu.
- Sua mãe concordou com você vir sozinha? - Ele segura o volante com força, o assunto o incomodava um pouco.
- Minha mãe morreu, há muito tempo. Eu não tenho outros parentes. Tinha meu pai, mas agora estou sozinha.
Ele olha para mim, e coloca sua mão em cima da minha.
- Você não está sozinha, qualquer coisa que precisar pode me chamar.
Forço um sorriso, sei que o gesto dele é legal, porém não consigo deixar de pensar porquê ele me falaria isso se nos conhecemos ontem. É do meu condão acreditar sempre no pior das pessoas, mas infelizmente essa é a realidade, seres humanos, quando tem o poder da escolha, tendem a escolher o errado. Talvez por ser mais fácil. Percebo que estamos até agora parados, então aponto para a rua e falo:
- Sabe, o carro não vai chegar até lá sozinho.
- Haha! Engraçadinha você.
Então ele começa a andar, passamos por varias ruas e ele vai me falando onde fica alguns lugares interessantes pelo caminho. Após uns trinta minutos ele chega ao que parece um parque. Porém no centro dele há uma construção bem alta, com um elevador panorâmico. É bonita de um jeito diferente, não é completamente fechada, não tem nenhuma parede ou parapeito, somente pilares e o piso a cada andar, parece ter sido colocada ali não para ser apreciado, e sim conseguir ver a vista lá de cima. Estacionamos na frente do parque e Matt abriu a porta do carro para mim.
- Esse prédio foi colocado aí pelo prefeito, não tem nada nos andares, você pode descer em qualquer um que quiser para simplesmente olhar a vista. Nós chamamos de O Mirante. E o melhor lugar são os dois últimos andares. Vamos subir?
Olho para cima, impressionada pela altura, e percebo que não consigo ver os últimos andares. Sigo o Matt pelo parque, logo chegamos ao elevador e quando estamos subindo, Matt aponta para um lado, mandando eu olhar. É uma das vistas mais bonitas que já vi, conforme nós vamos subindo, mais lugares consigo ver, a minha direita consigo ver a praia, quer logo percebo que vai até o fim da cidade. No centro da cidade, vejo a praça que Rafael me levou ontem, e até consigo ver minha rua daqui. Então quando estamos quase no ultimo andar Matt manda eu fechar meus olhos, hesito apenas por um segundo, então eu fecho. Quando o elevador para ele me puxa para fora e vai me guiando.
- Tudo bem, pare bem aqui – Ele solta de mim e sinto ele se distanciando – Pode abrir os olhos.
Todo o ar sai dos meus pulmões na mesma hora. Se a vista já era bonita do elevador, de lá do topo era mil vezes mais impressionante. Era possível ver a cidade inteira, todos os campos, praias, prédios. Vou andando para a frente, hipnotizada pela vista, até ouvir uma voz familiar:
- Toma cuidado, não tem nada nos impedindo de cair lá embaixo.
Olho para trás e vejo a Morena, e os outros amigos deles, então dou um sorriso. Percebo que ela está certa, não tem nenhuma parede ou guarda corpo impedindo a gente de cair lá embaixo, só bastaria um passo em falso ou um simples empurrão para cair a morte súbita, mas de alguma forma, torna tudo mais impressionante. Dou meia volta, para olhar para eles.
- O que vocês estão fazendo aqui?
- Você é nova na cidade, e precisa de gente pra te mostrar tudo. Pelo menos tudo o que importa. – Disse um garoto loiro.
Abro um sorriso, fico feliz em saber que tem gente que queira me ajudar. Sentamos na beirada do prédio e coloco meu casaco, dou graças a deus por não ter esquecido dessa vez, pela altura do prédio, aqui está bem mais frio que lá embaixo, e bate muito mais vento. Passamos um bom tempo conversando, eles ficam fazendo várias perguntas sobre mim, e não posso negar, também faço sobre eles, talvez porque nunca tive amigos de verdade, principalmente que tivessem uma realidade diferente da minha. Mas a vida deles me fascina, e eu fascino eles, talvez por eles passarem muito tempo uns com os outros e não conhecerem gente nova. Um deles, acho que o nome dele é Gabriel, me perguntou no que eu estava pretendendo trabalhar na cidade.
- Não sei, nunca tinha pensado no que eu faria da vida. Não tenho nada em mente.
- Bem, tem vagas para recrutamento da polícia, e acho que a lanchonete está procurando garçonete.
Viro rapidamente para ele com um olhar mortal, ele não pode estar falando sério. Olho para ele, um garoto jovem, talvez tenha em torno de vinte e cinco anos, cabelos loiros bem escuros, olhos acinzentados. Esperava encontrar ele rindo da minha cara, porém seu rosto mostrava uma expressão muito séria. Reviro meus olhos e falo com desprezo:
- Como se eu fosse trabalhar como garçonete.
- Tem algum problema nisso? Acredito que seja muito melhor que passar fome.
- Ser uma simples garçonete não atende as minhas expectativas, e não corresponde com os meus gastos. Essa não é uma opção. E não quero mais ouvir você me dando essa sugestão novamente.
Ele olha para mim impressionado, com as sobrancelhas levantadas. Percebo que outras pessoas também me olham assim, incluindo Matt e Morena. Não entendo porque essa reação, não é como se eu tivesse falado algo demais, é somente a realidade. Eu sou muito melhor do que uma garçonete, estou acima disso. Antes que eu pudesse perguntar o porquê daquelas expressões, ouço o elevador abrir e olho para sua direção. Vejo um grupo sair do elevador e logo reconheço o garoto de ontem que tinha falado com Rafael na praia antes dele ir embora. Esse garoto me olha, percebe logo que estou encarando, ele tira o celular do bolso e faz uma ligação, virando de costas para mim. O grupo se reúne e senta do outro lado do edifício. Desvio minha atenção deles e fixo o olhar em minhas mãos, ouço alguém se aproximando de nós e falando com o Gabriel. Eles conversam brevemente, com uma amabilidade falsa, até que o outro pede para falarem em particular e se distanciam. Tento ouvir a conversa, mas só ouço relances:
- Não vou fazer isso... – ouço Gabriel falar – Não é uma de nós.
- Nós dois sabemos que você pode torná-la uma de nós. Já fez isso com gente inocente antes.
- Porque não tive escolha...
Percebo algo fazer sombra em mim e sinto um calafrio na mesma hora.
- Milena? Queria falar com você. Me explicar.
Ouço sua voz me chamar e me desconcentrar da conversa, olho para cima, já sabendo quem vou encontrar. Rafael. Ignoro o que ele diz e olho para a paisagem novamente.
- Você está tampando o sol.
- O que? Milena, estou falando sério, queria me desculpar por...
Olho para ele com raiva, não queria falar com ele, não queria que ele aparecesse na minha frente. Muito menos aqui, em volta de todo mundo. Então tento evitar o assunto, e ser o mais arrogante o possível.
- Você completou a escola? Creio que não, pelo seu completo retardo mental. Vou te explicar algo, estamos a quilômetros do chão, o que significa que além do ar ser mais rarefeito, ele é mais frio. E considerando que este é o prédio mais alto da cidade e não tem nenhuma parede para nos proteger, aqui bate muito vento. Ou seja, a única coisa que estava me esquentando era o calor do sol. Então você poderia sair da frente do sol e ir para qualquer outro lugar, de preferencia para bem longe de mim.
Percebo pelo canto do olho Morena dar uma risadinha, não consigo evitar e sorrio também. Porém minha felicidade dura pouco. Ele não sai do lugar, e se abaixa para falar mais perto de mim.
- Me escuta, por favor, não vou sair daqui até você falar comigo.
Assim que ele diz isso, eu me viro, olho bem para ele, percebo uma faísca de esperança em seus olhos. Dou um sorriso e me levanto, ele se levanta junto. Então me desvio dele em direção a saída, dando as costas a ele, só viro a cabeça para dizer:
- Não tem problema, então saio eu.
- Milena, estou falando sério, eu estive esperando para falar com você. – Ouço ele gritar atrás de mim.
Continuo me distanciando e respondo sem me dar o trabalho de gritar, somente falando normalmente:
- Eu esperaria sentado se fosse você, pode demorar.
Então quando estou quase chegando ao elevador, sinto uma mão segurar meu braço e me girando, me forçando a ficar de frente a ele. Rafael segura meus dois braços com força, me impedindo de me mexer e me machucando. Ele me puxa para perto dele. Eu sinto meu coração bater forte em meu peito, e por um minuto o medo me dominar, ele poderia facilmente me machucar ou me jogar daqui de cima se quisesse. Eu deveria mesmo estar com medo. Sei que ele trabalha com algo ilegal, e apesar de alegar que não era um assassino, não sei se acredito nele. Porém o medo que eu sentia era muito pequeno comparado a outra emoção, então ele passa, e a raiva vem. Quem ele pensa que é para me segurar assim? Tento me soltar dele, me debato em seus braços para que me solte, mas ele não cede.
- Me solta, agora.
- Não vou soltar até você me ouvir.
- ME SOLTA AGORA!
- Você vai me escutar por bem ou por mal.
- Isso é uma ameaça?
Paro de tentar me soltar e olho bem em seus olhos castanhos. Estou tão perto dele que consigo sentir seu cheiro, de sabonete e o amaciante de suas roupas. Sua expressão, que antes também era de raiva, se suaviza. Percebo um nó se formando em minha garganta. Contudo o seu aperto em meu braço não afrouxa.
- Solta ela.
Olho para Matt, que estava bem perto da gente. Logo percebo que não só ele estava prestando atenção na gente, tanto o meu grupo, quanto o dele já estavam de pé e tinham se aproximado da gente. Todos nos olhavam fixamente, como se esperassem algo para agir. Gabriel e o outro garoto que estavam no canto, não tinham saído do lugar, porém dividiam seus olhares entre nós e os outros, como se esperassem que todos começassem a brigar. Sinto as mãos de Rafael apertarem ainda mais em mim, solto um gemido de dor, mas logo me contenho, não posso deixá-lo saber como estou me sentindo.
- Você não manda em mim. – Rafael diz com ódio para Matt – E não se mete no que não é seu.
- Eu me meto porque você a está machucando, e claramente ela não quer falar com você.
Algo toma conta de mim e, por instinto, dou um chute o mais forte possível nele, acertando a sua coxa. Ele me solta e se afasta, mais por surpresa do que por dor. Não espero pela reação do grupo ou até mesmo dele. Entro no elevador correndo, antes que alguém possa me impedir, e vou embora. Não me viro nem por um segundo. Mas sei que seus olhos estão cravados em minhas costas.
Assim que o elevador se fecha, solto o ar, e percebo que prendi minha respiração por todo esse tempo.