Do que adiantaria? Não ajudaria em nada o meu pai se estivesse morta.
Normalmente eu levo por volta de três horas saindo de Palo Alto, em
San Francisco, até a minha cidade natal. No entanto, a estrada está mais
deserta e sem o trânsito consigo chegar um pouco mais rápido, eu acho. Meu
celular começa a tocar alto fazendo meu coração disparar com o susto, mas
não atendo. Provavelmente é a Nathy querendo saber onde fui parar.
Droga!
Na minha pressa e desespero esqueci completamente de deixar uma
mensagem. Paro o carro no encostamento e retorno sua ligação.
- Alô?
- Cadê você? Estava morrendo de preocupação! Sumiu da festa e não
te encontrei em casa... Oh não! Eu estou atrapalhando alguma coisa?
Finalmente deixou de ser caretinha e está na cama de um cara gostoso?
Nathy não me dá nenhuma brecha para responder! Caramba! Como ela
consegue falar tanto sem dar uma pausa para respirar?
- Não, ami-miga... - Minha voz sai entrecortada com os pequenos
soluços.
- Candice, está me preocupando. O que aconteceu? Onde você está?
Inspiro fundo e solto o ar pela boca antes de responder.
- Estou indo ver meu pai... Ele está no hospital, Nathy.
Posso escutar minha amiga arfando no outro lado da linha.
- Por que não me avisou? Eu iria com você! Está com o meu carro?
Eu não o achei no estacionamento.
- Nem pensei amiga, só precisava sair logo daí. Desculpe pelo
carro...
Fungo e seco o nariz, encostando a testa no volante.
- Eu não me importo com isso! Só acho que você não deveria estar
dirigindo nessas condições, eu poderia levá-la...
- Eu estou conseguindo dirigir, não se preocupe comigo. Quando eu
chegar lá te aviso, ok? Só me faça um favor... avise aos nossos professores
em comum na segunda se eu não voltar a tempo?
- Claro amiga, mesmo se eu não avisar eles saberão que algo
aconteceu. Vão sentir falta da melhor aluna, se eu não fosse sua amiga
sentiria inveja!
Solto um pequeno riso e balanço a cabeça. Nathy sempre implica
comigo sobre eu ser estudiosa. Diferente dela, que tem uma família com
dinheiro, eu não posso me dar ao luxo de perder minha bolsa de estudos.
Além do mais, prometi ao meu pai.
- Te amo sua louca, preciso ir agora...
- Também te amo, amiga CDF linda! Mantenha-me informada...
Finalizo a ligação e volto minha atenção à pista escura.
Já estou a caminho, papai.
***
Adentro o estacionamento do Hospital do Coração e fico de boca
aberta com a fachada, ironicamente meu peito dói! Parece mais um hotel de
luxo, imagine quanto vai ser a conta hospitalar... Uma facada.
Corro até a entrada e espero a recepcionista me atender, estou
tremendo dos pés à cabeça e meus olhos estão inchados de tanto chorar, mas
tento manter a compostura.
- Bom dia, meu pai está internado aqui e preciso vê-lo.
- Qual é o nome do paciente?
- Thomas Greece, ele foi internado ontem à noite.
A recepcionista digita as informações no computador com destreza e
logo me olha por sobre o alto balcão.
- Aguarde, por favor. A Dra. Green irá chamá-la.
Como assim? Tenho que esperar para poder ver o meu próprio pai?
- Não posso ver o meu pai antes?
- Infelizmente são ordens, a doutora gostaria de conversar com você
antes de levá-la ao quarto.
Sento-me angustiada na sala de espera e observo o interior do hospital
para passar o tempo. É tudo tão limpo e bem iluminado, as cadeiras e sofás
são confortáveis e o estilo lembra mesmo a de um Hotel SPA. Será que os
pacientes recebem um tratamento de massagem como parte da internação?
Sorrio com esse pensamento, tão logo o sorriso surge em meus lábios ele
some. Isso aqui não é brincadeira, meu pai está mal e talvez precise de
cirurgia.
- Senhorita Greece?
Aquela mesma voz feminina e forte do telefone chama pelo meu
nome. Levanto o olhar e me deparo com uma mulher usando um jaleco
branco, seus cabelos ruivos estão presos em um alto coque. Sua altivez é um
tanto intimidadora, mas quando fito seus olhos ternos sinto empatia.
- Sim... sou eu!
Levanto-me do assento para conversar melhor e fico uns quinze
centímetros mais alta do que ela. Que engraçado, a primeira vista ela parecia
bem maior, deve ser sua postura.
- Vou direto ao ponto com você, o seu pai sofreu infarto agudo do
miocárdio causado por entupimento das artérias. A caminho do hospital ele
teve uma parada cardíaca, mas a equipe conseguiu fazê-lo bater sozinho
novamente. Tivemos que administrar alguns remédios para tratar de
coágulos e fizemos cateterismo...
Assinto catatônica, meu rosto molhado com a torrente de lágrimas que
cai sem eu precisar sequer piscar.
Eu quase perdi a única pessoa que tenho nessa vida!
Nunca conheci minha mãe, ela me abandonou com meu pai depois que
nasci e nunca quis saber de mim, então não fiz questão de saber sobre ela
também. Papai diz que ela foi sua namorada e que haviam terminado antes
dela descobrir que estava grávida. Quando ele soube da gravidez quis
reconciliar, porém ela não aceitou, e se não fosse pela insistência do senhor
Thomas eu nem estaria aqui hoje! Meus avós já são falecidos, lembro-me
pouco deles, pois eu ainda era pequena quando estavam vivos. Portanto, só de
pensar na possibilidade de meu pai morrer é terrível. Como se eu fosse
jogada num abismo escuro e sem fim, engolida pelas sombras num vortex. A
ânsia de vômito volta, sinto a visão escurecer e fico tonta.
- Candice? Você está bem?
A doutora segura meu braço quando minhas pernas se dobram como
gelatinas.
- Eu... não. Não estou nada bem. - Fecho os olhos esperando a
vertigem passar.
Ela me ajuda a sentar na cadeira mais próxima e tenta me acalmar.
- Acalme-se, seu pai está estável agora.
- Eu quero vê-lo! Por favor, me deixe ver meu pai...
Dra. Green assente rapidamente, seu rosto é um misto de sobriedade e
compaixão.
- Tudo bem, eu só preciso que você entenda que ele vai precisar
continuar com o tratamento. Precisa tomar os remédios todos os dias daqui
para frente. E se por acaso ele tiver qualquer sintoma, teremos que pensar na
cirurgia.
- Está bem, quando ele pode ter alta?
- Devemos monitorar o ritmo cardíaco e fazer o tratamento intensivo,
se tudo ocorrer bem ele será liberado amanhã à tarde.
Percorro pelos corredores seguindo os passos da doutora, quando ela
para em frente à porta do quarto começo a estremecer novamente. Prendo a
respiração e adentro o pequeno cômodo, meus olhos buscam pela figura do
meu pai e o encontram deitado e adormecido na maca. Seu aspecto frágil e
pálido me deixa sem ar, mas o que me dói mais é ver tantos tubos
intravenosos em seu corpo inerte. Ando até ele e toco delicadamente a sua
mão, ele está tão gelado! Seguro o fino cobertor e puxo até que lhe cubra
melhor.
- Vou deixá-los a sós. Se tiver alguma dúvida me chame.
Murmuro um agradecimento e a ouço sair enquanto continuo fitando o
rosto do papai. Avisto uma cadeira acolchoada e sento-me ao lado da maca,
fico ali observando o rosto pacífico dele enquanto dorme. Suas pálpebras se
movimentam e o assisto abrir os olhos lentamente.
- Pai? - sussurro.
- Candice? O que está fazendo aqui, filha? - Sua voz soa quase
inaudível.
- Como assim o que eu faço aqui? O senhor me deu um baita susto,
foi isso! Está no hospital, se lembra de algo?
- Sim querida, mas não precisava vir e atrapalhar seus estudos...
Levanto-me e me aproximo do seu rosto, lhe beijando a face.
- Paizinho, pare de bobagem! É claro que eu viria! - Suspiro
quando vejo sua expressão de culpa, como se ele fosse um incomodo para
mim.
- Pai, eu estou falando sério. Por que não me ligou antes? Você se
sentiu mal de repente?
Ele fecha seus olhos azuis com força e balança a cabeça.
- Já havia sentido alguns sintomas antes, mas não sabia que era o
coração. Achei que fosse o estômago ou algo parecido...
Acaricio seus cabelos loiros curtos, mal se nota os fios grisalhos. Meu
pai ainda é jovem e em forma, por isso é tão difícil de entender. Como ele
pode ter sofrido um infarto? Tem somente trinta e nove anos, nunca fumou,
não bebe, e raramente come besteiras! Sempre gostou de correr e fazer
caminhadas... Eu simplesmente não compreendo.
- Deveria ter ido ao médico, pai. Você prometeu que ia se cuidar
enquanto eu tivesse fora. Não faça mais isso, ok?
- Aprendi da pior forma, filha. Não se preocupe comigo, não vou dar
essa bola de novo. - Volta a fechar os olhos e então noto sua respiração
ofegante.
- Ficarei com você até te darem alta, já pedi para meus amigos me
passarem anotações das aulas e avisar meus professores...
- Não! Candice, você deve voltar para faculdade. Não precisa ficar
aqui, eu estou bem. Foi só um susto. - Não sei de onde ele tirou as forças,
mas segura minha mão firmemente.
Ele está louco se acha que vou deixá-lo sozinho!
- Pai! Já conversei com a médica, ela disse que talvez você tenha alta
amanhã. Não vou embora.
- Você é teimosa, filha. Era para você estar focando nos seus estudos
e não se preocupando com seu velho!
Meu celular toca e verifico o número que está ligando. É a Nathy!
Esqueci de avisar que cheguei bem!
- Amiga! Foi mal, eu me esqueci de ligar.
- Percebi. Está tudo bem?
Olho de relance para o meu pai e gesticulo para ele dizendo que já
volto. Caminho até a porta, saindo para o corredor.
- Nathy, meu pai é um cabeça dura... ele está tentando amenizar toda
a situação.
- Eu já sabia que ele iria fazer isso! Senhor Thomas não gosta de te
preocupar, amiga.
Apesar de todos o chamarem de "senhor", inclusive eu, papai está
longe de ser um idoso. Por isso reviro os olhos, pois Nathy pronunciou essa
palavra de forma sedutora. Faz isso só para implicar comigo, como de
costume!
- É... eu sei. O pior é que ele estava me escondendo o jogo sobre sua
situação financeira! - Passo os dedos pelas minhas madeixas loiras,
enrolando as pontas. - A médica já me avisou do seguro, ele não cobre tudo.
Vou pagar sem ele saber, papai não pode se estressar por causa do coração.
- Nossa! Se precisar de dinheiro emprestado eu posso falar com
minha mãe...
Nunca! Eu amo a minha amiga como uma irmã, mas nunca faria isso.
Ainda mais pedir dinheiro para sua mãe, elas não se dão bem!
- Não é necessário, eu tenho minhas economias. Juntei cada centavo
de quando trabalhei como recepcionista no consultório dentário.
- Ah, verdade, mas me avise se mudar de ideia, ok?
- Ok...
Desligamos e passo rapidamente na lanchonete para tomar meu café da
manhã, quase almoço, antes de voltar ao quarto. Retorno com a barriga
forrada e me acomodo na cadeira novamente, percebendo que papai apagou,
aproveito e fecho os olhos para um cochilo...
- Senhorita?
Uma voz calma me desperta do torpor. Apuro minha visão borrada
com o sono e vejo uma enfermeira.
- Oi? - Digo um pouco grogue, ainda despertando.
- Senhorita, me perdoe a intromissão, mas já está dormindo faz
algumas horas e notei que não comeu nada... Até o seu pai já almoçou e
voltou a dormir.
Que exagerada, eu fui dormir pouco depois de uma hora!
- Obrigada. Pode me informar as horas?
Ajeito-me no assento e sinto os músculos gritarem de dor. Dormi
numa posição horrível! Massageio a nuca com desespero, mas assim que
começo a acordar para valer várias sensações de incomodo me afligem.
Primeiro é a bexiga cheia, preciso urgente ir ao banheiro! A segunda é a fome
corrosiva, meu estômago está doendo já implorando por comida, de novo!
- Querida, são duas horas da tarde de domingo.
O que? Não é possível! Estou dormindo por vinte e quatro horas?
vinte e quatro?
Meu queixo cai, estou pasma. Fiquei praticamente em coma e ninguém
me acordou? Pensando bem eu não dormi por um dia inteiro e ainda viajei de
carro na madrugada. Estava exausta, fisicamente e emocionalmente.
O lado bom disso tudo é que meu pai logo terá alta, assim espero!
Olho para ele deitado em sua fina maca, dormindo... ao menos já
acordou e fez suas coisas antes de voltar pro seu sono restaurador.
Corro para o banheiro antes de passar no refeitório do hospital, compro
dois sanduíches naturais e um suco de laranja para matar o que estava me
matando: a fome. Aproveito e respondo as centenas de mensagens dos meus
amigos. Retornando ao aposento onde meu pai está internado, deparo-me
com a doutora no corredor.
- Olá, era você mesmo quem eu estava procurando - diz com um
pequeno sorriso.
- Sim? Ele já pode ir?
- Felizmente sim, já dei alta. Seus batimentos cardíacos estão bons e
não houve nenhuma recaída. No entanto, ele continuará tomando alguns
medicamentos como parte do tratamento.
Assinto aliviada. Finalmente meu pai pode voltar pra casa!
- Preciso que algum responsável siga até a recepção para receber a
conta. Logo ele poderá ser liberado.
Vou até o local indicado e espero a atendente me informar o total dos
gastos, minhas mãos tremem de nervoso e expectativa. Preencho algumas
papeladas e, quando finalmente recebo a conta, quase caio para trás. Por dois
dias de internação, mais os exames médicos, as medicações e o procedimento
de cateter eu terei de pagar vinte mil dólares! Vinte mil!
Já era... Eu só tenho míseros três mil na poupança! Como faço?
- Hã... Tem como eu pagar uma parte agora e o resto em prestações?
A mulher me olha séria, afinando os lábios.
- Você tem até noventa dias para pagar o total.
Entrego o meu cartão com as mãos suando frio, e rezo para conseguir
esse dinheiro, ou terei que pagar juros e de quebra ficar com o nome sujo!
Nossa... Ainda tem as medicações da receita para comprar!
Prendo o choro e tento raciocinar.
Preciso encontrar um emprego urgente e que pague bem.
Super bem!