Capítulo 10 Agora Você Sozinho

Sentado no meio-fio Apolo contempla o bar do outro lado da rua. Suas pernas tremem, a respiração acelera, da testa brotar um suor frio enquanto as mãos se unem numa inconsciente rogativa.

Em pleno meio-dia de domingo o povo veio para o bar aliviar as frustrações de uma semana maldita(quem não teve uma semana maldita nesses dias?). Música alta e muita bebida. Mesmo a uma distância razoável Apolo é capaz de sentir um cheiro... talvez algo parecido com ossos quebrados e cerveja.

- Não gosto disso... - protesta enfim.

- O medo continua, o medo, o medo sem fim... - começa Dionísio enquanto Juliana encostada no poste os assiste com um olhar distante de desdém - ...o medo, o medo, tudo parece uma questão de medo. O

medo realmente é muito importante, nos impede de sermos um bando de idiotas suicidas, porém ele precisa ser domado, ele precisa ser controlado. Estamos vivendo numa sociedade de medo selvagem, onde cada humano miserável cultiva seus medos descontrolados e vivem refém deles assim como eu mesmo era refém de meus medos antes daquela mordida. Eu sou um ator, mas isso é apenas uma fachada. Eu estava vivendo uma vida de símbolos vazios, sem trabalho ou dinheiro, mas todos me viam com bons olhos, grandes coisas... era mentira, eu precisei ser mordido pra acordar para a vida, ver como decadente eu era, como medroso eu era, pois somente no momento que eu me vi como eu realmente sou eu pude tomar uma atitude e mudar a minha vida.

- Eu não posso mudar a minha vida sem fazer isso? - questiona Apolo.

- Eu perguntei a mesma coisa para ele... - acrescenta Juliana - ...eu esperava que ele fosse pegar leve comigo e ele disse: a vida não pega leve com ninguém e você não deve pegar leve com ela. A cada grande conquista mais poder você tem e mais as pessoas criam em suas mentes a ideia que não devem mexer com você, pois sua audácia e coragem se transformam em repelente. Os covardes e vampiros sempre querem alvos fáceis de dominar, pois, eles também são medrosos, porém medrosos mais preparados. Eu, então entrei no bar e foi a maior louca...

- O que aconteceu? - pergunta Apolo.

- Não sei, acordei num hospital, mas por não saber o que aconteceu eu deduzo que deve ter sido a maior loucura.

Apolo levanta e encara Dionísio e Juliana.

- Nem adianta olhar assim para a gente, tem que fazer isso sozinho. Afinal de contas, quando aquele desgraçado reaparecer, você estará sozinho. O palhaço mímico que lhe mordeu pode estar morto, mas ele

não é o único por aí. há uma legião espalhada por toda parte, todos sedentos de sangue, cedo ou tarde eles pintaram as caras de branco outra vez e sairão às ruas novamente, não há escolha: ou você se tornar algo mais forte ou entregará até a última gota do seu precioso sangue para esses desgraçados. O que vai ser? Se você não quiser mais ser mordido, tem que aprender a morder. Eu te garanto... depois que você aprender a morder ganhará asas... leões não comem harpias...

Confuso e tremendo Apolo levanta e anda em direção ao bar, pensa as palavras de Dionísio e Juliana ecoando em sua mente, a rosto branco de seu algoz rindo e mordendo seu pescoço, ver então a imagem do próprio chefe rindo com a cara pintada de branco, lembra das coisas que o Dr. Diversão o fez passar e de repente um estalo: "Por que está com tanto medo? Eu já sofri pior!"

II

Dentro do bar sua presença é ignorada, percorre até o maior cara que encontra. Um sujeito parrudo, braços tatuados e jaqueta de couro, mesmo nesse calor.

Não pode deixar de ver o homem e não lembrar do discurso de Dionísio e sentiu pena dele, não era um homem de verdade, era uma criança perdida na existência vivendo uma vida de símbolos - que motivos há de usar uma jaqueta de couro nesse calor se não é apenas para sustentar uma autoimagem gerado por símbolos, mas o símbolo é apenas uma imagem vazia que nossa mente atribui sentido, um símbolo é uma narrativa criada por algum e...

- É hora de dominar a narrativa - diz e escuta a voz de Dionísio em sua cabeça.

- Perdeu alguma coisa aqui? - pergunta o grande homem levantando. Seu semblante era de poucos amigos e não era uma impressão equivocada, estava ficando irritado de ser observado por tanto tempo.

Apolo apenas sorrir e imagina aquele grande homem usando uma maquiagem branca de mímico.

- Eu não quero confusão amigo...

- Mas eu sim. - diz Apolo tirando uma faca do bolso, o clima muda instantaneamente, o bar se cala e o mundo inteiro vira o palco de dois.

- Eu não conheço você e...

- Silêncio. A culpa disto tudo é sua. - puxa a manga revelando um bracinho fino e cheio de hematomas, passa a lâmina sangrando um longo corte para todos verem. Seus olhos correm pelo estabelecimento

e percebe todos ali parado, petrificado assistindo seu pequeno show de horrores. Ansiosos, assustados e curiosos, foi então pela primeira vez na vida que percebeu seu poder sobre as outras pessoas, os símbolos são dele e o mundo agora é o palco de um único ator. Apolo então lambe o próprio sangue.

- Você é louco?

- Você está usando jaqueta de couro no meio deste calor infernal e está me chamando de louco?

Estranhamente a plateia ri o fazendo sorrir.

- Você está se cortando...

- Vocês todos estão se cortando lentamente, estão se mutilando dia após dias, perdendo suas vidas em pró de uma ilusão, uma ilusão que lhe faz cometer besteiras como usar jaqueta de couro no calor. Depois o louco sou eu, vocês comentem a loucura todos os dias e não vem...

- O que você está querendo?

- Liberdade... - solta a faca no chão e acerta um soco contra o rosto do homem que ao sentir a dor revida.

Apolo apenas abre os braços e deixa seu corpo se alvo da fúria, uma soco na cara, no estômago, a visão turva e no meio da agonia e vontade de gritar é engasgada na garganta, tem uma ideia estranha e faz o inacreditável: ri alto, gargalha desafiando as nossas definições de humano.

A plateia sedenta congela, celulares registram todo o carnaval sangrento. O ato do magrinho ensanguentado rindo de todos aqueles hematomas, toda aquela violência e do grande homem. E falando dele, seu oponente assusta e dá um passo para trás. Apolo ver o que Dionísio tanto falava:

A montanha de músculos, a montanha de jaqueta de couro deu um passo para trás, pois era só um humano vivendo uma vida humana de símbolos e estava diante de algo que não conhecia, algo que nunca viu e sua mente bugou, a narrativa agora era dele, e isso era divertido, isso era... genial.

As pessoas se afastaram do homem doido e o homem doido sentiu o poder e o poder o encantou, o poder o dominou, a dor não importava mais, o medo não estava mais ali, a máscara branca havia escorrido do rosto

imundo de cada uma das pessoas ali e por isso ele sorria mais e mais.

- Por que você só não vai embora? - pergunta alguém.

Apolo se vira na direção da pessoa, passa a mão em suas feridas sangrentas e lambe o próprio sangue, se vira para o homem da jaqueta e diz:

- Você bate feito uma mulherzinha! - arrancando os risos da plateia.

O grandão dar outro passa para trás e Apolo pode ler em seu corpo a angústia, a ansiedade, o constrangimento, a raiva e acima de tudo o medo - olá medo, meu velho amigo - e mesmo assim não faz nada, pois está paralisado diante do homem sorridente ensanguentado, como diria Juliana: o poder dói, mas uma vez alcançado...

III

Um instante, um único instante de puro poder e glória. Seus olhos estavam cheios da memória daquele instante onde o grande homem recuou, o grande homem temeu. Agora deitado em sua cama, num quarto

escuro, o medo está ausente, o coração bate forte e não para de pensar naquele grande homem recuando, se ele fez uma montanha recuar, o que mais poderia fazer?

Não se sentia mais fraco, não se sentia mais oprimido, embora o corpo estivesse todo arrebentado - o poder dói - era o preço a se pagar, fecha os olhos e tem sonhos estranhos, sonhos com asas, anjos voando pela cidade, seu próprio corpo nu voando com asas vermelhas sobre a cidade sitiada num dia ensolarado.

Em sua boca vem o gosto amargo doce do sangue e lá no fundo Dionísio rindo enquanto todos os moradores da cidade medíocre o encaram com o horror e admiração, feito as pessoas do bar.

Pela primeira vez em muito tempo tem sonhos bons, não está mais com medo e se sente vivo... o poder dói, a vida dói e o dr. Diversão está rindo, mas do quê?

No silêncio da madrugada e dos doces sonhos uma pergunta brota dos lábios de Apolo, pequena e discreta, ninguém jamais a escutaria ou saberia que ela aconteceu, mas ela existiu, ele perguntou:

- O que você está fazendo comigo?

                         

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