Capítulo 8 O Pacto Dos Derrotados

O óleo de tão usado já estava preto e assim mesmo os pastéis são mergulhados. Apolo e Dionísio sentados em cadeiras dobráveis de uma barraquinha de pastel decadente em algum lugar do fim do mundo assistem os pastéis fritando no caldo negro borbulhante.

- Você não cansa de ser expulso dos lugares?

- Expulsa, expulsa, expulsa é uma palavra muito forte... sabe, eu prefiro dizer que eu fui... convidado a sair com energia.

Um coreano traz dois pastéis em pires branco, coloca entre os dois e diz algo incompreensível.

- Guaraná - diz Dionísio e mostra dois dedos para ele.

- Entendeu alguma coisa do que ele disse? - pergunta Apolo num tom baixo enquanto morde o pastel e toma o guaraná.

- Um pouco, meu japa tá um pouco enferrujado, mas acredito que ele disse que gostou muito de mim, que é uma honra me servir, que ele nunca teve um cliente tão elegante, bonito, gostoso e algo sobre uma

tristeza profunda quanto eu for embora.

Leva um soquinho de Apolo.

- Nem fodendo que ele disse isso!

- Já disse que meu japa tá enferrujado... - morde o pastel na maior gulodice e gosto que despertaria a inveja e a gola no mais santo dos homens. - ... e além do mais que diferença faz o que ele disse ou

deixou de dizer? Eu só queria um pastel, todo resto é obsoleto, se é obsoleto então te pergunto: por que não escuta só o que você quer ouvir? Que diferença isso fará ao mundo?

Pausa para aprecia o pastel que além de lindo está uma delícia, não acredito que essa porra foi frita naquele pinche e ficou gostoso, será que o ingrediente secreto é tétano pra dar O Gostinho?

- Então você foi roubado e te deram uma mordida? - indaga Apolo.

- Se você não entendeu direito isso é porque ou eu não gritei o suficiente na igreja, ou soquei o pastor com pouca força. Daí o meu recado não foi entregue como devia.

- Eu também fui roubado... o filho da puta também me mordeu - mostra o marca no pescoço.

- Então foi um filho da puta que fez isso em você? Nossa! Pensei que tinha sido uma noite de sexo muito doida e que suas costas e bunda estavam muito piores.

- Você não está falando sério.

- Digamos que existe um pouco de verdade e de zoeira nas minhas palavras. Agora chega de fala de mim, já soquei um santo, me fale mais sobre você e o estuprador.

- Eu não fui estuprado.

- O quê? Você nunca assistiu a um filme de vampiro?! Uma mordida no pescoço é um ato tão sensual quanto uma gostosona mostrando os peitos ou uma piroca armada. Com toda certeza isso foi uma violência

sexual, um estupro sem penetração, mas mesmo assim um estupro.

- Que isso cara! Você está exagerando.

- Acho que você nem devia ficar com raiva do tarado.

- Por quê?

- Desculpa dizer, mas... eu sou bem mais gostoso que você e ganhei uma mordida no braço, você foi mordido no pescoço, quer dizer que deixou alguém com mais tesão.

- Você não existe!

- Conheço um pastor com o focinho amassado que discordaria veementemente de você. Anda, continua seu relato, sou todo ouvido pra você.

- Foi numa terça-feira.

- Odeio terças, mas não tanto quanto odeio as...

- Segundas-feiras - completa Apolo apontando para Dionísio que abre o sorriso feito uma criança ganhando um doce. - Estava voltando para casa de bicicleta aí um miserável todo de preto e usando uma...

- Maquiagem de fantasma?

- Não diria que era um fantasma, parecia mais um mímico...

- Que diferença faz? Cara branca é cara branca.

- Enfim, o desgraçado me acertou, apontou a arma para a minha cara, foi horrível, achei que ia morrer ali e agora, pareceu que aquela merda ia durar para sempre... e quando eu achei que estava tudo acabado ele

me morde e atira nos próprios miolos...

- Merda!

- É, merda... eu me sinto melhor tendo alguém para conversar sobre isso.

Dionísio dá uns tapinhas nas costas de Apolo, os dois entreolham.

- Parece que o mesmo filho da puta ferrou a gente. Sabe... a gente devia se unir. Quer vê uma coisa legal? - existe algo de inexplicável, porém reluzente no rosto silencioso de Apolo - Hei, Japa mais dois pastéis para a viagem.

O coreano diz algo incompreensível e coloca mais dois pastéis crus no óleo negro.

- Beleza! Também te amo Japa - volta--- se para Apolo - cara, depois disso você vai querer morrer.

- E isso é bom ou ruim? - pergunta Apolo torcendo o rosto numa receosa careta.

- Cara, - aperta as bochechas de Apolo - isso é maravilhoso!

II

- O que significa isso? - pergunta Apolo no escuro.

Dos dedos frescos emburra o interruptor para baixo como se ele fosse feito de vidro, a luz acende e Dionísio passa a frente de Apolo, estende os braços e girando o corpo mostra o pequeno ambiente de paredes amarelas, uma cama de casal, cômoda pequena, abajur, solitária janela decorada com uma cortina vinho, ao fundo um banheiro pequeno, azulejado em tons de amarelo. Parece redundante dizer isso, mas o Dr. Diversão faz disto o maior espetáculo da terra - e a pior parte é que acreditamos:

- Isso meu querido amigo de mordida é a nossa batcaverna, um lugar só nosso, longe do mundo e de suas mentiras, suas loucuras, um lugar onde não há medo de sermos nós mesmos. Parece simples, parece

humilde, mas é tão grande quanto o céu, afinal é assim a liberdade.

- Está exagerando Dionísio.

- Anham! - Joga o corpo com tudo na cama - Me chame de Dr. Diversão. E não, não estou exagerando, veja bem. Eu sou como você, você foi assaltado, violentado. Por máximo que você tente viver a sua vida

com antes... tem lapsos, viaja na batatinha e você está revivendo aquele dia maldito, está tomando um monte de decisões baseadas em medo e não em lógica, cada dia que você vive é um dia não vivido. Há algo que você não controla e está te devorando, você está se tornando alguém que não gosta, a cada dia que passa você experimenta um pedaço da morte. Certo?

Sem palavras e apático, Apolo apenas deixa o corpo cair na cama ao lado de Dionísio, ao mesmo tempo que está aberto para ele, sente-se derrotado, incapaz de levantar outra vez.

- Eu sei bem como é isso - diz Dionísio mergulhando nas profundezas da alma do outro, será esse o estupro é definitivo? - Eu também sofro isso todos os dias. Este meu sorriso, este meu rosto bonito é

a máscara que sustento todos os dias para não quebrar de medo. Eu tenho medo todos os dias e quando soquei aquele filho da puta santo não era por heroísmo de coisa nenhuma e sim malcriação de uma

criança assustada e com medo. O que somos nós? O que estamos nos tornando Apolo?

Apolo levanta o olhar e procura Dionísio, procura algo profundo e encontra uma misteriosa coisa assustadora e bela acontece na simplicidade da dor.

- Dionísio, o que você está tentando me dizer?

- Olha o medo outra vez, meu velho amigo, ele está segurando a minha língua, estou com medo de ouvir uma outra coisa além da que quero, mas seus olhos estão tão claros... eu posso confiar?

- Talvez você esteja cansado... - começa Apolo e Dionísio sacode a cabeça fazendo sim - ...de viver com tanto medo e queira a sua vida de volta. Você quer ajuda para recuperar a sua vida - suas palavras

lentas e o sincronismo com os movimentos de cabeça do Dr. Diversão parece haver algo de telepático entre eles, ou será entre nós?

- Eu já pensei nisso diversas vezes... e acho que essa é a única coisa que me dá paz na hora de dormir, além dos remédios é claro, mas acredito que eu preciso reencontrá-lo...

- Tá falando do moleque? Eu disse que ele cometeu suicídio...

- Sim, sim e levou um pedaço da nossa vida com ele e temos que pegar de volta, temos que voltar a viver. - as mãos de Dionísio se unem em súplica - Por favor amigão, eu preciso da minha vida de volta. O

que me diz?

- O que Exatamente você quer de mim?

- Que me ajude... que me entenda... eu preciso de respostas... e um pouco de vingança...

- Ele está morto!

- Nós também... temos que voltar a viver... eu quero matar aquele desgraçado outra vez.

Apolo não entende o que ele quer dizer com aquilo, e o pior, está completamente aterrorizado com tudo isso e mesmo assim...

- Eu aceito! - e aperta a mão de Dionísio.

- Acho que o nosso pacto está selado então. Bem-vindo ao primeiro dia do resto da sua vida! - e abre um lindo e assustador sorriso.

            
            

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