- Não fiz nada! - Ela se defendeu em voz baixa, imaginou que aqueles homens eram detetives e que estavam ali para prender o mafioso. - Sou médica, trabalho aqui. - O rosto estava pressionado contra o piso de madeira frio.
- Fica quieta! - Pôs a mão na boca da médica.
Sem emitir som, Lívia reparou nas roupas dos quatro homens, eles não eram quem a médica imaginava.
- Olha, o chefe está ferido! - Um deles apontou para o homem estirado sobre a cama.
O homem barbudo continuou segurando Lívia no chão. Ergueu o rosto para o líder que verificava a situação do chefe.
- Senhor Bianchi, acorde! - Segurou-lhe o punho e verificou a pulsação.
De repente, as pálpebras se abriram. Enrico despertou e, abruptamente, agarrou o braço do homem torcendo-o. Levantou-se e num único movimento passou o braço em torno do pescoço do homem pressionando com força.
- Sou eu, chefe! - O homem gaguejou em desespero.
- Por que vieram tão tarde? - Enrico inquiriu rudemente ao aliviar a pressão que fazia contra o pescoço do homem - Eu quase morri nessa merda e vocês nem mesmo apareceram para me ajudar!
Enrico continuou torcendo o braço do homem contra as costas por alguns segundos antes de diminuir a dor para que ele pudesse responder.
- Não foi tão fácil encontrar o seu paradeiro, senhor Bianchi.
- Vocês são um bando de incompetentes! - Esbravejou cheio de ódio. - Inúteis.
- Perdão, senhor Bianchi!
- Você é um péssimo líder, devia te matar agora! - Enrico tirou a glock da cintura do homem e apontou para a testa.
- Minha filha nasceu ontem, chefe! - disse, com a voz chorosa. - Nem vi a minha bebê porque estava caçando o paradeiro do senhor.
A respiração de Enrico estava alterada e os olhos completamente vidrados. Afastando a pistola, cerrou os punhos e acertou um murro seguido do outro, o sangue escorria pela face alva. Ele encostou o homem esguio contra a parede, marcas arroxeadas apareciam em ambas as faces.
- Viemos o mais rápido que pudemos, chefe! - O subordinado virou a cabeça levemente e cuspiu no chão, a saliva estava misturada ao sangue.
- Chegaram atrasados demais! Eu já estaria morto se dependesse da ajuda de vocês.
Por um momento, Enrico encarou o jovem gângster que continha Lívia no chão, as pupilas da médica estavam cheias de lágrimas.
Para Lívia, agora tudo fazia sentido, aquela cena deu a ela as respostas que precisa para entender quem, realmente, era aquele bandido impiedoso.
- Tire ela do chão e leve-a para o carro! - Ele mandou entre os dentes trincados. - Não faça nada com a doutora até que eu ordene. - Enrico apertou o pescoço do homem - Capiche?
- Sim, chefe!
- Na próxima vez que se atrasar, eu mesmo vou arrancar o seu couro! - esbravejou.
Um dos gângsteres levantou Lívia do chão levando-a para fora da clínica, precisavam dar um fora dali o mais rápido possível antes que a polícia aparecesse.
Em certo momento, tudo à sua volta começou a girar. Enrico não sabia se era efeito da medicação que a doutora Ricci lhe aplicou poucas horas antes ou os sintomas da concussão, teve uma noite tão turbulenta que mal teve tempo para descansar e se recuperar de seus ferimentos. Os olhos escureceram, segurou nas costas da cama tentando permanecer em pé. As pernas bambearam e o sangue fugiu de seu rosto, tentou resistir, mas perdeu os sentidos e foi ao chão.
Com os olhos vendados, a doutora Ricci estava sentada no banco de trás de seu próprio carro enquanto ouvia os capangas de Enrico a vasculhar sua bolsa, celular, tablet e a carteira de documentos.
- Bella ragazza! - O gângster mais jovem sorriu e mandou beijinhos para a mulher vendada no banco traseiro.
- Stronzo! - O mais velho deu um tapa na nuca do comparsa. - O chefe já está furioso e você ainda quer arrumar mais problemas! - Chamou a atenção do jovem inexperiente.
Sentada entre aqueles dois homens, Lívia ouvia as vozes alteradas especulando sobre o tipo de castigo que o tio de Enrico imporia sobre cada um deles.
Os pensamentos estavam acelerados e, enquanto escutava aqueles homens, o medo dominava a sua mente. Ouvia os gângsteres chamarem o chefão de louco enquanto lembravam de tudo o que o tio de Enrico fez contra os seus rivais e, até mesmo, contra os seus próprios comparsas que falavam em suas missões.
Depois de esperar por cinco minutos, o motorista deu a partida no automóvel. Lívia permanecia em silêncio sentindo os cílios roçarem na venda em seus olhos, estava apreensiva, pois já há algum tempo não ouvia a voz de Enrico.
- Depressa! - Um deles falou.
- Onde está o senhor, Bianchi? - O motorista indagou.
- O chefe está no outro carro!
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Lívia foi retirada bruscamente do veículo, não tinha noção de onde estava, apenas seguia os passos do homem que puxou-a com pressa. Ela tropeçou em alguma coisa dura.
- Cuidado com os degraus!
Colocando um pé atrás do outro, continuou dando passos inseguros ao descer a escada. Quando pararam de andar, o homem retirou à venda dos olhos de Lívia e lançou-a em uma cela, como se ela fosse a criminosa
- Por que estão me prendendo? - Olhou para os dois homens sem entender o que estava acontecendo ali. - Sou uma cidadã de bem.
- Nós também somos, doutora Ricci! - A voz máscula estava carregada de sarcasmos
Os dois homens riram por alguns segundos.
- Sou médica e atendo aos meus pacientes naquela clínica.
- Entra logo! - O homem barbudo empurrou-a de volta para trás das grades e, em seguida, trancou a porta com um cadeado.
- Onde está o Enrico? - perguntou, nervosa. - Salvei a vida dele.
- Ora, nós temos algo em comum! - Ergueu os braços, sendo sarcástico.
Lívia encarou o homem com marcas roxas no rosto e o lábio superior inchado. Aquele era o homem que Enrico quase matou.
- Nós sempre salvamos o chefe. - disse um dos rapazes - o senhor Bianchi não costuma ser grato, ele acha que nós não fazemos mais do que a nossa obrigação.
- Por favor! - implorou. - Tenho um cachorro que não come nada desde ontem.
- Tenho uma esposa que deu à luz e eu nem estava ao lado dela quando minha filha nasceu. Olha o tamanho da gratidão do senhor Enrico Bianchi! - o homem mostrou a face inchada - A doutora devia ter ficado feliz por ele não ter machucado a senhorita.
Com tristeza nos olhos, Lívia segurou as grades. Só queria ter a chance de conversar com Enrico. Estava disposta a jurar que não entraria em contato com a polícia se ele a deixasse partir.
As horas passavam e, gradualmente, a cela ficava mais clara. Lívia estava sentada no banco reto e gelado quando levantou o rosto e olhou para a janela quadrada.
A luz do sol invadia a prisão fria e inóspita. Lívia lembrou dos anos em que morou na França e da oportunidade que recebeu para trabalhar no Brasil.
Se conseguisse sair dali, ela estava decidida a fugir para bem longe de Enrico. Pretendia arrumar tudo e partir para um país onde não pudesse ser encontrada.
Ao olhar para o outro lado das grades, viu uma mulher robusta que trazia uma bandeja com o café da manhã. A senhora de meia-idade tinha linhas na testa vincada, ela abriu a cela e deixou a refeição ao lado de Lívia. Não disse uma única palavra.
- Hei, senhora! - Lívia se pôs de pé e segurou as grades. - Posso falar com Enrico?
- Coma! - Foi a única palavra de ordem que a voz crepitante disse.
Sem titubear, a mulher deu-lhe as costas e seguiu pelo corredor mal-iluminado.
Por mais que a cela fria e solitária lhe causasse arrepios, não era a primeira vez que mantinham presa. Aquela cela trazia recordações de tempos distantes, imagens de um velho guarda-roupas onde ela era posta de castigo, no orfanato católico onde cresceu, reacendeu em sua mente.
Por ser muito focada nos estudos, ela era considerada uma nerd e tinha dificuldades de fazer amizades. Por isso, acabava sempre sendo vítima das brincadeiras de mal gosto das outras meninas. Enfurecida, Lívia revidava com socos e puxões de cabelos e, por isso, era obrigada a passar o dia trancada no armário do castigo.
Lívia comeu um pedaço da torrada e tomou o suco. Não tinha notícias de Enrico e nem mesmo sabia o que ele pretendia fazer com ela.
- Stronzo! - murmurou. - Farabutto! - Ela xingava Enrico enquanto comia.
O coração estava tomado pela raiva. Intimamente ela desejou que os ferimentos dele piorassem ao ponto de levá-lo à morte.
Naquele momento, nem mesmo o juramento de Hipócrates poderia incentivá-la a salvar aquele mafioso frio e sanguinário outra vez.