Algumas vezes não era suficiente.
Algumas vezes a combinação de vento e chamas frustrariam os melhores esforços que os homens poderiam fazer.
― Kat?
A voz na porta da cozinha era estridente. Três batidas na madeira se seguiram.
― Kat, sou eu!
Minhas juntas endurecidas reclamaram quando eu me desvencilhei da cadeira de madeira que eu me afundei quando o céu ainda estava escuro. Eu tentei atravessar o quarto antes que a minha mãe batesse na porta de novo e acordasse todo mundo. Ela não era famosa pela sua paciência.
― Por favor, silêncio. ― Eu sibilei quando eu rachei a porta.
Minha mãe piscou para mim no meio da luz do amanhecer.
― Você está horrível. ― Ela me informou. A lista de qualidades dela nunca tinha incluído tato.
― Desculpa, eu não priorizei minha rotina de beleza essa manhã. ― Eu abri mais a porta para que ela pudesse passar. Ela trouxe o cheiro azedo de fumaça com ela, mas isso não poderia ajudar. Quando teve um incêndio nas montanhas próximas, a névoa e o fedor inevitavelmente flutuaram para Hawk Valley.
Minha mãe foi direto para a garrafa de café, suspirou quando a encontrou vazia e com muito barulho começou a encher a garrafa na torneira.
― Há novos caminhões e equipes de incêndio em toda parte. ― Ela disse num tom que implicava que a presença deles estava arruinando o dia dela. ― Eu nem poderia pegar meu café nesta manhã. A linha estava a dez minutos do Ed.
― Que droga. ― Eu resmunguei, pensando em todas as pessoas que amariam que uns dez minutos de espera por um café fossem o maior de seus problemas essa manhã.
― Sim, foi mesmo. ― Ela disse, sem entender meu sarcasmo.
A máquina de café apitou quando aquecido. Eu esfreguei meus olhos, começando a sentir os efeitos físicos dos horrores da última noite. Mentalmente eu não poderia ainda, não poderia absorver direito os tormentos emocionais que viriam. Não há fim no horizonte. Seriam muitas lágrimas e funerais e, no momento certo, a pura desesperança se acalmaria, mas não haveria fim. Só uma nova e triste realidade. E uma criança órfã.
― Kathleen, você está bem? ― Minha mãe parecia preocupada agora. Ela realmente não era uma sem coração. É que às vezes o medidor de sensibilidade dela emperrava.
Peguei uma lágrima na minha bochecha. ― Não acredito que isso tudo é real. ― Eu disse.
Ela assentiu e, pela primeira vez, uma expressão de dor passou pelo seu rosto. Heather era sua sobrinha, de qualquer forma. E ela era minha prima.
― Eu sei. ― Eu disse. ― Eu nunca pensei que eu veria o dia em que eu seria um pouco grata pelo câncer ter levado minha irmã tão nova. Mas eu tenho que dizer que eu estou feliz que ela não viveu para ver a morte de sua única filha.
Eu estiquei a mão para pegar a caneca de cerâmica do armário acima da pia. Meus dedos passaram pela excêntrica coleção de xícaras em tons pastéis e se fecharam ao redor de uma caneca de lembrança que anunciavam uma fileira de extravagantes pinheiros verdes abaixo das palavras "Felicidade de Hawk Valley" numa caligrafia vermelha. Existiam dúzias como essa, vendidas na loja da Avenida Garner que pertence a minha prima Heather e administrada com o marido dela, Chris. Ela mesma as desenhou.
Depois que eu servi uma xícara de café para minha mãe, eu enchi uma para mim mesma. Nós duas bebemos nosso café preto, uma das poucas coisas que tínhamos em comum. Nós bebemos nossas xícaras num silêncio triste enquanto eu pensava sobre como o mundo parecia diferente de doze horas atrás.
Os ventos tinham ficado muito fortes na última noite, despertaram por alguma colisão meteorológica que provavelmente teria feito sentido para mim nos meus dias acadêmicos. Minha única preocupação era que o barulho manteria Emma e o bebê acordados. Felizmente minha filha de três anos e meio não tinha herdado meus péssimos hábitos de sono, mas o bebê era outra história. Ele tinha quatro meses de idade e era a primeira noite longe dos seus pais. Ele fez um rebuliço como o vento que batia nas paredes de fora e assobiava através das pequenas rachaduras que encontrou. Eu o balancei por uma hora inteira até que ele se acalmasse, mas eu não me importei. Era bom sentir o peso quente de uma criança de novo. Agora que a Emma passou pela primeira infância, ela frequentemente se recusava a ser abraçada.
Quando a Heather me perguntou se eu cuidaria do bebê Colin por uma noite para que ela e Chris pudessem aproveitar um aniversário romântico na cabana deles no alto das montanhas, eu nem hesitei em aceitar. Ela quase mudou de ideia e o levou, mas Chris riu, chamou-a de mamãe coruja e os dois saíram para a viagem de aniversário sozinhos.
Colin tinha finalmente dormido quando eu o ajeitei no berço portável no quarto da Emma e foi quando eu ouvi a primeira sirene. Poderia ser qualquer coisa. Um acidente de carro. Um cabo de força cortado. Eu não me debrucei sobre eles. Como eu estava de saída do quarto, Colin soltou o choro afiado e eu permaneci na entrada por um momento para ver se ele estava acordando, mas ele simplesmente caiu no sono mais uma vez.
Horas depois, eu fui acordada por uma ligação histérica da irmã do Chris, Jane. Ela era a namorada de muito tempo do chefe do corpo de bombeiros local, então ela ouviu as notícias antes. O incêndio tinha se movido rápida e impiedosamente, engolindo hectares inteiros meros momentos antes de de repente irromper uma chuva com fúria, não extinguindo completamente, mas dando às equipes a chance de lutar de volta. Os primeiros socorristas na cena tinham a péssima tarefa de checar meia dúzia de cabines que foram engolidas pelo fogo. Somente uma estava ocupada. Ainda seria necessária uma identificação formal dos corpos, mas todo mundo sabia que aquela cabine pertencia à família Ryan por gerações. E Jane confirmou às autoridades que o irmão dela e sua esposa tinham dirigido até lá ontem à noite.
Agora eu não poderia parar de pensar sobre o solitário e agudo choro de Colin. Eu me questionava se aquele foi o momento que seus pais se viram cercados pelo fogo. E me perguntava se um dos mistérios trágicos do universo tinham acontecido, se aquela criança de alguma força saberia o que tinha acontecido há quilômetros lá nas montanhas.
― Mamãe? ― Emma entrou na cozinha como um anjo sonolento na camisola azul pálido.
― Oi, amorzinho. ― Eu disse, estendendo a mão para ela.
Ela permaneceu onde estava, olhando para mim solenemente. Ela era grande o bastante para guardar memórias da última noite, de ser acordada pelo som dos adultos soluçando.
― Você está chorando. ― Ela disse.
― Venha aqui, minha garotinha linda. ― Minha mãe disse e se agachou com os braços abertos. Emma me olhou de relance e foi para a avó.
Emma se permitiu ser levantada no colo da minha mãe. Bocejou e disse:
― Colin está fazendo barulho.
― Ele acordou? ― Perguntei. Ela assentiu.
― É, ele está fazendo barulhos.
Eu tinha pensado que ouviria se ele chorasse. Abaixei minha xícara de café.
― Vou ver.
Tinha sons ininterruptos vindo do berço do Colin, mas no segundo em que ele me viu, irrompeu em um lamento profundo. Eu o segurei enquanto dizia palavras calmantes e controlava a vontade de chorar para o meu coração não se quebrar em um milhão de pedaços por conta do quanto esse bebê tinha perdido.
― Alguém tem uma fralda fedorenta. ― Eu disse com um falso entusiasmo e eu fiz cócegas nele depois de colocá-lo no tapete de trocar. Ele sorriu para mim.
Quando eu voltei à cozinha, encontrei minha mãe alimentando a Emma com um prato de biscoitos de chocolate, mas descobri que essa manhã eu poderia me abster de discutir sobre as vantagens de um café da manhã saudável.
Peguei uma mamadeira da geladeira, uma que tinha sido preparada pela Heather e coloquei na cadeira com o bebê. Ele se agarrou ansiosamente a ela e me olhou com aqueles olhos azuis arregalados que me lembravam de outra pessoa. Heather tinha olhos castanhos. Seus olhos azuis vieram da família de Chris e parecia que Colin continuaria com eles.
― Você vai conseguir fazer isso por quanto tempo? ― Minha mãe perguntou.
― Fazer o que?
― Tomar conta desse bebê. Você já se exige demais entre seu trabalho, escola e cuidar da sua filha.
Cerrei meus dentes.
― Está se oferecendo para ajudar?
Ela evitou a questão. ― Os pais do Chris estão mortos, assim como a mãe da Heather. O pai dele está vivo, mas, confie em mim, ele certamente não vai contribuir. E não pense na confusão que é a irmã do Chris. Jane não consegue nem cuidar de si mesma.
Emma estava nos observando com os olhos arregalados assim que mastigou todos seus biscoitos, por isso eu não retruquei que essa não era hora de difamar pessoas que estavam devastadas.
― Eu só estou pensando em você. ― Minha mãe fungou porque não respondi.
― Então me ajude passando meu celular. ― Eu disse. ― Está bem ali no balcão.
Em algum momento enquanto eu cochilava na cadeira da cozinha, Jane me mandou uma mensagem. Eu levantei minhas sobrancelhas com a mensagem embora as novidades não fossem surpreendentes. Claro que ele viria. Chris tinha sido seu pai e, embora eu soubesse que eles não tinham uma boa relação, imaginei que as notícias tivessem sido um choque terrível.
― Nash está a caminho. ― Eu disse.
― Quem? ― Minha mãe perguntou.
Suspirei.
― Nash Ryan. Filho do Chris. Lembra dele, certo? ― Ela franziu o rosto.
― Sim, vagamente.
― Ele está vindo de Oregon. Jane acha que ele estará aqui essa noite.
Ela deu de ombros.
― Eu também não contaria com a ajude dele se é o que você está pensando.
Na verdade, eu estava pensando em Colin. Eu estava pensando em como ele tinha um irmão que nunca conheceu e como esse irmão era agora o parente vivo mais próximo.
Colin acenou seu pequeno punho no ar assim que terminou sua mamadeira e eu o apoiei no meu ombro para arrotar.
Eu não tinha ideia do que esperar da volta do Nash Ryan. Já tinha um pouco desde quando o nome dele provocava todo tipo de sentimentos imprevisíveis dentro de mim. Por alguns confusos anos na adolescência, eu pensava que estava apaixonada por ele, antes de entender que amor não significa seguir cada passo de um cara enquanto consumida por uma cobiça obsessiva. Isso não era nada, apenas uma paixão patética que eu mal pensava. Eu só esperava que, pelo bem do menininho em meus braços, Nash tivesse interesse nele. Colin precisaria de todo amor que ele pudesse dar.
Mais do que tudo, eu esperava que Nash tivesse se tornado um homem melhor do que os rumores diziam.